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Boletim de Psicologia

versión impresa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.55 n.123 São Paulo dic. 2005

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Resgatando o afeto1

 

Rescuing affect

 

 

Ana Lúcia Francisco

Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)

Endereço para correspondencia

 

 


RESUMO

Pretende-se, a partir de uma breve cartografia de alguns aspectos da paisagem subjetiva contemporânea, trazer algumas reflexões acerca do lugar do afeto na contemporaneidade, de forma a buscar subsídios que possam auxiliar a levantar algumas proposições direcionadas ao resgate deste afeto. Espera-se que as reflexões aqui trazidas possam contribuir não só no âmbito da clínica, considerando-se os sofrimentos psíquicos daqueles que demandam por atenção psicológica, mas possam, também, ter ressonâncias no campo social, na medida em que apontam para a necessidade de um permanente exercício de cidadania.

Palavras-chave: Afeto, Contemporaneidade, Subjetividade, Sofrimentos psíquicos.


ABSTRACT

This work aims to discuss the role of affect in contemporary life, based on a brief picture of some aspects of contemporary subjectivity, in order to bring some subsidies to its rescue. We hope that these considerations may contribute not only to the clinical practice, considering psychic suffering of those demanding psychological attention, but also to the social field, as they point to the need of a permanent citizenship exercise.

Keywords: Affection, Contemporary, Subjectivity, Psychic suffering.


 

 

A proposição deste tema, resgatando o afeto, me parece rica, instigante e de uma atualidade extremamente necessária, pois uma temática desta natureza remete a um conjunto de questões que têm, como pano de fundo, a gradual perda da condição amorosa e, portanto, de uma das condições fundamentais de humanização. A reflexão sobre o resgate do afeto se desdobra, ainda, em outras indagações: de que forma, ao preço de que, em nome de que desejos os afetos foram se configurando? Com que roupagens eles se apresentam, hoje? Quais são, enfim, seus objetos de investimento?

Vale a pena lembrar que, etimologicamente, a palavra resgate tanto significa recuperar, salvar e reanimar quanto conservar, defender, preservar e proteger. Seja para recuperar ou proteger, o que está em jogo é o afeto e para que possamos recuperá-lo ou protegê-lo é preciso que o situemos, em seus caminhos e descaminhos, reflexão que pretendo empreender como uma forma de contribuição e busca de parcerias.

Afeto, também em seu sentido etimológico, pode ser compreendido como “um estado psíquico ou moral (bom ou mau), afeição, disposição de alma, estado físico, sentimento, vontade” (Houaiss, 2000). O afeto decorre, via de regra, de estímulos externos ou de representações e fantasias estando, invariavelmente, dirigido a algo ou alguém. Afeto implica em uma relação dialógica, de reciprocidade, estabelecida entre o afetar e o ser afetado.

Há uma íntima relação entre afeto e subjetividade. Segundo a perspectiva adotada por Guattari e Rolnik (1993, p.31), os processos de subjetivação:

“Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia...) quanto de natureza infrahumana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens).”

Este campo de forças, totalmente imbricado, seria propulsor na construção da subjetividade, expressa em modos de ser, de sentir, de pensar, de agir, enfim, de se estar no mundo. Neste sentido, subjetividade e cultura estabelecem uma relação dialógica se constituindo e se configurando em um processo mútuo de afeta-ção.

Seria lugar comum afirmar que, sem dúvida, o sujeito contemporâneo difere do sujeito clássico, mesmo porque mutações culturais e mutações subjetivas são indissociáveis, ainda que não caminhem, necessariamente, no mesmo passo. Talvez, este descompasso entre mutações subjetivas e culturais possa auxiliar a pensar o lugar do afeto na contemporaneidade e possibilidades de se resgatá-lo.

Diversos estudiosos das ciências humanas e sociais na tentativa de compreender os fenômenos que envolvem estes processos de mudança, ainda que por caminhos e metodologias diversas, concordam quanto ao fato de que o sujeito da contemporaneidade convive, paradoxalmente, com uma “formidável liberdade”, nos dizeres do psicanalista Melmam (2004), ao lado de uma trágica desorientação, pois vem se perdendo de seus referenciais.

Tal como já foi apontado por alguns autores como Birman (2000), Costa (1994), Roudinesco (2000) e Debord (1997), entre outros de grande peso, a sociedade atual se caracteriza pela cultura do espetáculo e pela cultura narcísica que, num processo de retroalimentação, nos incitam, sub-repticiamente, a consumir e a assumir seus ideários de sucesso e de beleza. Se de um lado somos produtos destas identidades descartáveis, ao assumi-las e encarná-las, também, nos tornamos produtores. Além disso, o sujeito do cogito, inaugurado pela modernidade a partir de Descartes, o sujeito que acreditava ser capaz de, pela razão instrumental, dominar a natureza, vai se percebendo órfão de suas verdades absolutas e de suas certezas. O homem contemporâneo assiste e vive, de forma um tanto atônita, mudanças de valores, de noção de família, educação, religião, nação, etc. Da Poian (2001, p.18), em seu riquíssimo texto A Psicanálise, o sujeito e o vazio contemporâneo, citando Badiou, traz a seguinte reflexão:

“A única verdade que o mundo atual aceita é a do mercado e da moeda. Fora disto, cada um está encerrado em sua tribo, buscando identificações a valores cada vez mais difíceis de serem encontrados e, na falta destas identificações, tentando identidades que têm a ver com imagens propostas pela mídia, na qual o poder do dinheiro aparece como central”.

Parece haver um sentimento coletivo de saturação, de excesso: de informações que sequer conseguimos processar; de ofertas que visam transformar os desejos em necessidades e que, como tais, têm que ser prontamente satisfeitas. Parece haver um movimento sub-reptício, extremamente desgastante, de reação e de defesa ao excesso que nos atinge, acarretando, por sua vez, a gradual perda da capacidade criativa e das responsabilidades. A existência, entendida como ser-com-os-outros vai se esgarçando.

É pertinente a contribuição trazida pelo psicanalista Melman acerca do sujeito contemporâneo. Em uma entrevista concedida a “Isto é”, em setembro de 2004 (Cortês, 2004), a propósito do lançamento de seu livro O Homem sem Gravidade: Gozar a qualquer preço, Melman considera que o homem contemporâneo é o homem do excesso, na medida em que o excesso tornou-se norma.

“Hoje a saúde mental não se origina mais da harmonia com o ideal de cada um, mas do objeto que possa trazer satisfação. Não há limites. Há uma nova forma de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a pátria e os ideais. Essa nova economia psíquica é organizada pela exibição do prazer e implica em novos deveres, dificuldades e sofrimentos” (Melman, 2004, p.10).

São inúmeras as dificuldades e os sofrimentos que advêm desta nova forma de subjetivação, pois as vivemos na própria pele. Perdidos de nós mesmos, “a incerteza do sentimento de existir ocupa um lugar singular na expressão do sentimento de viver” (Da Poian, 2001, p.19). Em paralelo a esse sentimento de vazio existencial, a angústia e o desamparo, constituintes do humano, chegam a níveis insuportáveis. O desamparo e a angústia deslocam-se de seu lugar estruturante para se tornarem traumáticos, como bem lembra Figueiredo (2003), transformam-se em agonia. Como uma resposta defensiva a essas vivências traumáticas, a capacidade de criar, de pensar, de elaborar as experiências, de construir projetos compartilháveis se pulverizam. Ainda citando Figueiredo (2003, p. 26-27).

“Cria-se, então, uma área de experiências carentes de representação compartilhada, afetos não suportados e, por isso, insuportáveis, que podem produzir efeitos desintegradores e mortíferos.”

Frente a tal situação, quando a saída não pode ser a de elaboração e o direcionamento produtivo destes “afetos não suportados” resta ao sujeito neutralizar esta carga de violência, instalando-se o sentimento de nada sentir, ou descarregar imediatamente o que não lhe é suportável, buscando prazeres instantâneos que, por serem instantâneos, acabam por produzirem o mesmo efeito, o vazio de sentimentos.

Além disso, imerso em sua dor de viver, o sujeito contemporâneo torna-se incapaz de fazer investimentos afetivos, pois tal como nos lembrou Freud (1917/1980), em situações profundas de dor, quer física ou psíquica, o indivíduo retrai-se totalmente dos estímulos externos, adotando uma postura narcísica defensiva. A este respeito, Arendt (apud Da Poian, 2001, p.16) lembra que “A dor é um fim último sem qualquer subordinação a outro objeto .... Aquele que sente dor cessa de sentir qualquer outra coisa a não ser a si mesmo”.

É importante frisar que este esboço da cartografia subjetiva do homem contemporâneo não tem por finalidade atestar que estamos em um beco sem saída e que, portanto, não há nada a ser feito. Muito pelo contrário, esta cartografia tem por objetivo levantar algumas propostas, pensar uma utopia, utopia no sentido atribuído por Santos (1996). Para este sociólogo, a utopia requer uma compreensão profunda da realidade, uma posição crítica frente a esta realidade, pois será a partir desta atitude que haverá a possibilidade de compreender o que não foi feito, por que não o foi e que saídas são viáveis. O próprio autor em sua reflexão sobre a utopia, diz:

“A utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar” (Santos, 1996, p.323).

Pois bem, a partir do que foi sucintamente exposto, resta perguntar o que efetiva e afetivamente pode ser feito? Claro que, também, não existem respostas prontas ou mesmo receitas de como melhor proceder, sobretudo porque a busca por respostas depende, radicalmente, de um trabalho coletivo. Ainda assim é possível, ao lado de tantos outros parceiros que vêm se debruçando sobre esta temática, levantar algumas proposições que possam nos nortear frente a este profundo sentimento de mal-estar que todos experimentamos.

É especialmente interessante lembrar a concepção de vazio na tradição chinesa, bastante diferente da que adotamos em nossa tradição ocidental. Enquanto que nesta tradição o vazio, muitas vezes, significa o nada, o que nos paralisa, naquela o vazio pode ser visto como o pleno, como possibilidade de múltiplas manifestações, múltiplas ações, múltiplas relações. Entretanto, pensar este vazio como pleno de possibilidades, implica, necessariamente, um “desapego de todas as determinações, de todas as formas de apego, sobretudo do eu, do ego, um ícone simbólico tão importante em nossa cultura” (Luz, 2001, p.50).

Parece que adotar esta concepção frente ao vazio, ora experimentado, pode ser produtivo, pois possibilita entrever algumas saídas. Um olhar retrospectivo para o que foi construído, sobretudo neste último século, levará à percepção de que o que deixamos para trás, no afã de sermos modernos foi, sobretudo, nossa capacidade de proteger e manter a herança cultural que vem permitindo à humanidade ser humana, qual seja, nossa condição de criar projetos sociais compartilhados. A partir do momento em que se confundiu singularidade com individualidade, em que a busca de soluções sociais passa a ser realizada individualmente, pois parece não haver mais esperanças para estas soluções sociais, valores como solidariedade, fraternidade e igualdade, entre outros, se diluem, restando-nos, apenas, como diria Birman (2000), o engrandecimento grotesco de nossa própria imagem, ela mesma sem referências, porque destituída de todos os outros que lhe servem como suporte. Se a fraternidade surgiu, segundo o relato de Totem e Tabu abordado por Freud (1913/1980), de uma revolta contra uma ordem instituída, talvez hoje, novamente, seja necessário que os irmãos se unam contra alguns valores instituídos na contemporaneidade, sobretudo aqueles relacionados à competitividade e à obtenção de sucesso e prazer a qualquer preço. Que possamos nos unir contra a ética da eficácia e da excelência, como valores supremos, restaurando o espaço da convivência, da afetividade e a ética do cuidado como bens imprescindíveis a uma vida digna, por que não? Não me parece que se trata de propostas abstratas, sem condições de cumprimento; pelo contrário, estão aí os grupos fraternos tais como alcoólicos anônimos, vítimas de violência, entre outros, mostrando a enorme eficácia da solidariedade na busca de soluções para os problemas e para a resignificação de nossas experiências; estão aí trabalhos educativos, artísticos, profissionalizantes, entre outros, desenvolvidos por um conjunto de organizações, tanto de iniciativa pública como privada, dando exemplos de como o exercício de cidadania, através da solidariedade e fraternidade, podem devolver a condição humana a muitos que a perderam.

Acredito que a base de todas estas iniciativas é a crença na possibilidade de se construir um mundo melhor e o motor que as aciona é o afeto, a condição de afetar-se pelo sofrimento do outro, compreendendo-o como meu também. Pretendendo-se esta reconstrução, ou mesmo construção, de um mundo e de um homem fraterno, solidário, tolerante e aberto à alegria de novas experiências, a educação tem, também, um papel de suma importância. Uma educação afetiva, voltada às necessidades sociais, que nos cercam e comprometida com a busca de soluções para as dificuldades que atravessamos. Como lembra Garcia (2001, p.64), poeta e educador, “A ousadia do fazer é que abre o campo do possível... Sabemos que o exercício da solidariedade, da igualdade e da fraternidade passa, antes de tudo, por cada um de nós mesmos, no nosso cotidiano” e eu acrescentaria, necessitando, para sua realização, de uma grande dose de paixão, de investimento, de crença neste possível.

Se estamos diante de um evento, entendido, aqui, como um conjunto de circunstâncias em que o sujeito é convocado a decidir ou a inventar uma nova maneira de ser, parece-me que é pela via do resgate do afeto, sobretudo, que esta invenção será possível, o que implica, necessariamente, em comprometer-se e continuar. Que possamos resgatar a alegria de viver, de amar, de compartilhar, de estender nossos braços para ajudar e abraçar aqueles que nos cercam, atos tão simples, mas que, hoje, se constituem como verdadeiros desafios e, possivelmente, como caminhos para o resgate de nossa condição humana.

 

REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Birman, J. (2000). O mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        [ Links ]

Costa, J.F. (1994). A ética e o espelho da cultura. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Da Poian, C. (2001). A psicanálise, o sujeito e o vazio contemporâneo. In: C. Da Poian, Formas do vazio: desafios ao sujeito contemporâneo. (pp.7-23). São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria.        [ Links ]

Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda.        [ Links ]

Figueiredo, L.C.M. (2003). Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.        [ Links ]

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Freud, S. (1980). Totem e tabu. In: S. Freud, Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. XIII). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1913).        [ Links ]

Garcia, P. B. (2001). Paradigma em crise e a educação. In: (???) A crise dos paradigmas e a educação (pp.58-66). São Paulo: Cortez.        [ Links ]

Guattari, F. e Rolnik, S. (1993). Micropolítica: Cartografia do desejo. Rio de Janeiro: Editora Vozes.        [ Links ]

Houaiss, A. (2000). Dicionário eletrônico Hoauiss da língua portuguesa. Versão para Windows. Ed. Objetiva.        [ Links ]

Luz, M.T. (2001). O vazio nas relações sociais na cultura atual. Formas do Vazio: desafios do sujeito contemporâneo. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria.        [ Links ]

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Roudinesco, E. (2000). Porque a Psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

Santos, B.S. (1996). Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondencia
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Recebido em 03/01/05
Revisto em 15/12/05
Aceito em 17/12/05

 

 

1 Tema de Palestra de Abertura da IV Jornada Pernambucana da Sexualidade Humana, realizada no auditório GII da Universidade Católica de Pernambuco, Outubro de 2004.

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