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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.55 no.123 São Paulo Dec. 2005

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Valorizações afetivas nas representações de contos de fadas: um olhar piagetiano

 

Affective valorizations in fairy tales representations: a piagetian view

 

 

Maria Thereza Costa Coelho de Souza1

Instituto de Psicologia da USP

Endereço para correspondencia

 

 


RESUMO

O construtivismo de Piaget e sua teoria da inteligência dispensam apresentações. Menos conhecidas são suas concepções sobre o papel das valorizações afetivas na construção do conhecimento e no desenvolvimento da criança. As escolhas de objetos e aspectos da realidade, para interagir, bem como as modalidades de julgamento moral, também sofrem a influência das valorizações afetivas. Assim, a seleção de qualidades admiráveis (materiais ou abstratas) nos outros e em si mesmo, necessariamente se relaciona ao desenvolvimento da afetividade. Este trabalho pretende discutir o papel dos sentimentos nas representações de dois contos de fadas, efetuadas por crianças de diferentes faixas etárias. Para isso, serão apresentados extratos de protocolos de pesquisa da autora referentes a dois contos de fadas dos Irmãos Grimm, com destaque para os aspectos relacionados às qualidades admiráveis e não-admiráveis dos personagens escolhidas pelas crianças como mais interessantes.

Palavras-chave: Valorizações afetivas, Piaget, Contos de fadas.


ABSTRACT

Piagetian constructivism and his theory of intelligence dispense presentation. However, his conceptions about the role of affective valorizations in the construction of knowledge and children development are less known. The choices of objects or reality aspects and the types of moral judgement are also influenced by affective valorizations. Thus, according to Piaget, the selection of interesting and admirable qualities (material or abstract ones) in others or selves, are necessarily linked to emotional development. This paper aims to discuss the role of affectivity as interests in children's representations of two Brothers Grimm’s fairy tales. Some parts of interviews are presented to illustrate the characters' admirable or not admirable qualities, which were pointed by children, depending on their age and development.

Keywords: Affective valorizations, Piaget, Fairy tales.


 

 

APRESENTAÇÃO

O construtivismo de Piaget e sua teoria da inteligência dispensam apresentações. Menos conhecidas, contudo, são as concepções do autor sobre o papel das valorizações afetivas na construção do conhecimento e no desenvolvimento da inteligência e da moralidade. Para este autor, as escolhas de objetos, ações e aspectos da realidade para interagir, assim como as modalidades de julgamento moral, sofrem a influência das valorizações afetivas. Assim sendo, a configuração e seleção de qualidades admiráveis (materiais ou abstratas) nos outros e em si mesmo, necessariamente se relaciona ao desenvolvimento do juízo moral, da inteligência e da afetividade. Com base nas afirmações anteriores, este trabalho pretende discutir o papel dos sentimentos (positivos ou negativos) nas representações de contos de fadas efetuadas por crianças de diferentes faixas etárias. Pretende ainda demonstrar as relações entre os interesses, as valorizações afetivas e as virtudes relacionadas às qualidades admiráveis e não-admiráveis de personagens de diversos contos de fadas, à luz da perspectiva piagetiana. Para isso, serão apresentados extratos de protocolos de investigações realizadas pela autora, referentes a dois contos de fadas dos Irmãos Grimm (As Três Penas e As Moedas-Estrelas), com destaque para os aspectos relacionados às qualidades admiráveis e não-admiráveis dos personagens escolhidos pelas crianças como mais interessantes. É importante ressaltar que Piaget não pesquisou a afetividade diretamente, optando por descrever sua evolução, em correspondência com o desenvolvimento da inteligência, considerando indissociáveis nas condutas os elementos afetivos e os cognitivos, ainda que tenham naturezas diferentes. Considerou tarefa difícil estabelecer indicadores empíricos objetivos para a afetividade, uma vez que a mesma se organiza em sistemas abertos e mais suscetíveis de transformações, se comparados ao sistema intelectual/lógico. Contudo, suas concepções permitem aos pesquisadores seguir “pistas” sobre como investigar as relações entre afetividade e inteligência.

 

O CONSTRUTIVISMO GENÉTICO-DIALÉTICO DE PIAGET

Nunca é demais lembrar que o interesse de Piaget foi sempre pela construção do conhecimento e suas transformações ao longo da vida. Como ela começa? Que fatores a influenciam? O autor buscou sua origem nos reflexos do recém-nascido, seu “arsenal” inato, ponto de partida para sua adaptação ao mundo. A teoria psicológica da inteligência, construída a partir das indagações epistemológicas, é o produto científico que pretende demonstrar como se dá a evolução da inteligência desde o nascimento até a vida adulta. Esta evolução ocorre na interdependência entre sujeito e objeto; entre estrutura e gênese, os quais se transformam e, ao mesmo tempo, se conservam no jogo de interações com o mundo.

Não se trata aqui de relembrar a clássica teoria dos estágios de desenvolvimento da inteligência, mas de apontar o seu estatuto psicológico, ou seja, de ilustrar como se dá a construção do conhecimento sobre o mundo e sobre si mesmo ao longo da vida. Esta construção, como sabemos, passa por etapas e ruma para uma meta final, a qual corresponde ao ápice do desenvolvimento, após o qual as transformações se darão em extensão, com o enriquecimento trazido por novos conteúdos, mas sem o aparecimento de uma nova qualidade estrutural. Piaget defendeu dois princípios para o desenvolvimento psicológico: 1) o de que ele ocorre numa seqüência constante e universal, podendo variar somente em termos de ritmo; e 2) o de que a construção de um nível posterior integra necessariamente as dos níveis anteriores (Piaget, 1964).

Assim, o autor se mantém fiel à busca pela gênese das construções, acrescentando a isto o aspecto dialético (da interdependência), isto é, a impossibilidade de se pensar o desenvolvimento como decorrente de uma só variável, de uma só estrutura. Para ele, estrutura e gênese se relacionam, no sentido de que uma estrutura que num nível é a melhor e mais abrangente, no nível imediatamente superior é sub-estrutura de uma nova forma (estrutura) construída e assim sucessivamente. Igualmente, sujeito e objeto se relacionam dialeticamente em termos de um engendrar transformações no outro e reciprocamente. Este contexto de interdependência entre sujeito e objeto, entre estrutura e gênese confere ao seu construtivismo o caráter genético-dialético.

 

AÇÃO, OPERAÇÃO, INTERAÇÃO

Um dos meios para diferenciar as perspectivas construtivistas e interacionistas é buscar o tipo privilegiado de mediação que cada abordagem focaliza, já que para todas elas, o conhecimento não está nem unicamente no sujeito, nem somente nos objetos ou no meio, mas é construído a partir das relações entre um polo e outro da interação sujeitoobjeto. Mas, nessa interação, qual mediação é privilegiada? Para algumas, é a interação social enquanto fonte de elementos que permite ao sujeito construir a sua subjetividade. Para outras, a linguagem faz a mediação privilegiada, pois permite ao individuo ter referências iniciais para suas construções lingüística e psicológica individuais. E ainda, para outras perspectivas, a cultura faz a mediação central entre indivíduo e mundo transformando-o e sendo transformada por ele.

Tomando como base o contrutivismo piagetiano devemos lembrar que para esta abordagem a mediação privilegiada entre sujeito e objeto e responsável direta pelas organizações é a ação (física ou mental). A atividade exercida sobre o mundo é, pois, a matéria-prima que possibilita as construções das estruturas da inteligência e dos conhecimentos. Isto significa que o pesquisador piagetiano apoiará suas conclusões na observação das ações que os indivíduos executam no mundo e, sobretudo nas coordenações e articulações entre as ações. Temos, portanto, na obra de Piaget, forte ênfase sobre este papel da ação, que se tornará operação lógica e que ocorrerá também no contato com o outro (interação). Ao definir operação racional o autor diz que se trata de “agir em pensamento” num sistema mais amplo de ações coordenadas e reversíveis. Nas interações com os outros temos ações e operações de ambas as partes, promovendo transformações e descentrações de pontos de vista. Piaget reconheceu a importância das interações sociais para o desenvolvimento mental. Entretanto, manteve-as como condição necessária, mas não suficiente para explicar as transformações qualitativas do desenvolvimento da inteligência (Piaget, 1965/1977).

Igualmente, ao falar da cooperação, destaca o seu caráter de "operar com", para enfatizar, mais uma vez, a força e o estatuto da ação em seu modelo. Nesse sentido, a operação é, como diz Piaget, uma ação que só pode ser entendida num sistema de ações coordenadas e reversíveis. A eleição da ação como mediação privilegiada é, assim um importante diferencial do construtivismo piagetiano em relação a outros modelos construtivistas.

 

ESTRUTURA E CONTEÚDO, INTELIGÊNCIA E AFETIVIDADE

Para finalizar esta apresentação geral a respeito do construtivismo de Piaget temos que mencionar as relações entre estrutura e conteúdo; entre inteligência e afetividade, as quais estão diretamente ligadas à sua visão dialética. Sabemos que sua teoria interessou-se mais pelas estruturas da inteligência, isto é, pelas formas de organização da atividade (física e mental), do que pelos conteúdos presentes nas diferentes formas, ou seja, os domínios de onde podemos inferir essas estruturas. No limite poderíamos dizer que, para Piaget, as estruturas se constroem sobre quaisquer conteúdos, não se podendo privilegiar uns em detrimento de outros. Contudo, não se pode estudar o desenvolvimento apenas com a noção de estruturas, uma vez que estas são deduzidas pelo pesquisador a partir dos conteúdos (observáveis) aos quais se aplicam. Esta necessidade dos conteúdos é evidente no modelo piagetiano ainda que esses conteúdos não se confundam com as estruturas que os organizam. Um exemplo clássico é o dos esquemas motores, as formas de organização da atividade sensório-motora. Estes esquemas gerais (pegar, por exemplo) podem se aplicar a diferentes conteúdos (pegar objetos, pegar na mão da mãe, pegar o urso de pelúcia, etc), mas tem a mesma forma de organização: o “pegar”, que é generalizável a partir de seqüências de ações semelhantes.

Raciocínio semelhante foi aplicado por Piaget para tratar das relações entre inteligência e afetividade. Ambas são importantes para a construção do conhecimento e estão sempre presentes nas condutas humanas. A inteligência é responsável por organizar estruturalmente as condutas e a afetividade por conferir-lhes conteúdos, apresentando-lhes metas para suas escolhas. Não há, para Piaget, conduta nem unicamente afetiva, nem somente cognitiva ou racional, da mesma maneira que não há desenvolvimento nem unicamente estrutural, nem apenas baseado em conteúdos. Estes últimos são perfeitamente observáveis, quando focalizamos os interesses manifestados pelos indivíduos, sejam estes essencialmente materiais ou abstratos. A afetividade como reguladora de interesses e de valores afetivos é enfatizada nas concepções de Piaget e evolui contemporaneamente à inteligência, oferecendo ao sistema das condutas a abertura que as estruturas intelectuais não possuem. Isto não significa, no entanto, que a afetividade não possa ser estável ou se conservar em sistemas de regulação, equivalentes para Piaget, à organização em hierarquias de valores. É possível concluir, portanto, que para Piaget, para se pesquisar a afetividade, teremos que nos dedicar aos conteúdos e à energética das ações ou condutas e, assim, ao estudo das valorizações afetivas (Piaget, 1953-1954).

 

VALORIZAÇÕES AFETIVAS: DO VALOR DA AÇÃO AOS VALORES MORAIS

Partindo da idéia sobre o papel motivador ou impulsionador da afetividade, vêse, desde o período sensório-motor, que a criança demonstra valorizar mais uma ação (ou objeto) que outra (o). Para solucionar um problema prático, o bebê coordena esquemas de ação, elevando um à posição de fim e outro à posição de meio. O que poderia explicar esta escolha além da estruturação mais adaptável e inteligente? Pensamos, a partir das concepções de Piaget, que, nesse caso, a afetividade ocupa um papel fundamental, oferecendo a meta, o objetivo e a dimensão do interesse da criança.

O tema das valorizações afetivas é apresentado pelo autor em suas obras iniciais para discutir as primeiras construções da criança: o universo físico, com suas dimensões causais, espaciais e temporais. A evolução sensório-motora, com seu ápice na noção de permanência do objeto, por volta dos 18 meses, retrata, além do progresso das estruturações cognitivas (práticas), o papel das valorizações afetivas. O bebê dá valor às suas ações, seleciona as mais adequadas para solucionar os desafios apresentados nas interações com o mundo, coordena-as, etc. Esta é a origem das valorizações que se seguirão, incluindo os valores morais.

A noção de “valor” inicialmente “prático”, depois representado (ligado à moral da obediência) e, por fim lógico (deduzido) e relacionado à moral da justiça, é central nas concepções piagetianas sobre a moralidade na criança. Junte-se a isso a possibilidade de agir de acordo com uma hierarquia de valores, construída graças à inteligência operatória e a afetividade por regulações e força de vontade. Esta última assume um estatuto importante nas concepções piagetianas, na medida em que é um regulador de outras regulações, tendo um papel equivalente ao da operação racional, quanto ao desenvolvimento do pensamento. Essa dupla regulação afetivo-cognitiva permite articular os interesses com o interesse prioritário, a moral da obediência com a moral da justiça, e passar da heteronomia à autonomia, dos sentimentos semi-normativos aos sentimentos normativos (Piaget, 1953-1954).

Para Piaget, a moralidade é o campo do desenvolvimento no qual as relações entre afetividade e inteligência ficam mais evidentes, já que os juízos de valor racionais estarão sempre inseridos em contextos de relações sociais e de sentimentos. Essa “ponte” entre inteligência e afetividade é objeto de pesquisas no âmbito da Psicologia Moral, a qual tem se dedicado, entre outras coisas, ao estudo dos sentimentos, da personalidade e dos valores morais.

Piaget não estudou as valorizações afetivas que são diretamente influenciadas pelo grupo social e pela cultura. Este não era seu objeto de investigação, até porque considerava que a influência cultural estaria mais ligada à ampliação dos conteúdos que às transformações das formas (estruturas). No entanto, os estudos que vão nessa direção poderão, ao nosso ver, complementar discussões iniciadas pelo autor, oferecendo maiores informações sobre as influências dos conteúdos sobre o funcionamento mental.

 

AS VIRTUDES: ESCOLHAS POR ADMIRAÇÃO

Os estudos sobre os valores morais levam também às pesquisas sobre as virtudes, principalmente as virtudes morais. Uma definição possível para “virtude” é a de um aprimoramento de uma qualidade, que por tocar a excelência merece a admiração por parte do outro. O contexto da admiração depende daquele que manifesta a qualidade (virtude) e também daquele que a observa e a admira. Ser capaz de admiração é condição necessária para refletir sobre virtudes, o que demanda certo grau de bem-estar e satisfação consigo próprio. Um risco freqüente, se isto não ocorrer, é passar da admiração à inveja (De La Taille, 2001).

Neste texto não trataremos do sentimento de inveja, estudado pela Psicologia, em geral como manifestação negativa e agressiva da personalidade. Ao selecionarmos o sentimento de admiração estamos optando por um contexto de manifestações positivas, as quais expressam diferentes ênfases nos aspectos merecedores de admiração (ora são aspectos materiais, ora são aspectos abstratos). Além disso, o objetivo é demonstrar como os sentimentos de admiração se manifestam em crianças de diferentes idades e, em tese, capazes de diferentes estruturações cognitivas da realidade. O contexto empírico escolhido foi o da entrevista sobre contos de fadas, repletos de elementos merecedores de admiração. Veremos assim, aqueles aspectos escolhidos pelas crianças para admirar e suas justificativas para isso, que, ao nosso ver, estão diretamente ligados às valorizações afetivas efetuadas.

 

A LITERATURA DOS CONTOS DE FADAS: ORIGEM E CARACTERÍSTICAS

Os contos de fadas, desde há muito tempo, constituem literatura atraente para crianças de várias idades e também para os adultos. Estes últimos, ouvintes de histórias de fadas em sua infância, muitas vezes tornam-se contadores destes mesmos contos na idade adulta, mantendo a mesma atenção (ou até mais) em relação aos personagens fantásticos destes enredos.

Coelho (1987) distinguiu os contos de fadas dos contos maravilhosos por possuírem como eixo gerador uma problemática existencial; o herói deve vencer provas para que alcance sua auto-realização. Nos contos de fadas, é imprescindível a presença do maravilhoso, com ou sem a presença das fadas. Os contos maravilhosos, por sua vez, são narrativas sem a presença das fadas e que enfatizam uma problemática social ou relacionada à vida prática. Estes últimos têm origem oriental e realçam a parte material, sensorial e ética do ser humano. Os contos de fadas são de origem celta e apareceram inicialmente como poemas. Os contos clássicos infantis tiveram suas origens bem antes da faustosa corte do rei Luis XIV, no século XVII na França, e nasceram para falar aos adultos. Os estudos da literatura folclórica e popular de cada nação iniciaram-se a partir do século XIX, sendo que a França teve um papel importante no processo de transformação da literatura maravilhosa e na sua migração para o resto da Europa. No século XVII, deve ser destacado Charles Perrault, que buscou redescobrir os relatos maravilhosos numa época em que as narrativas maravilhosas entraram em declínio. De início, não estava preocupado com as crianças; apenas mais tarde pretendeu diverti-las e orientar a formação moral das meninas. Sua primeira seleção de contos é composta de seis contos de fadas e dois contos maravilhosos e recebeu o nome de Histórias do tempo passado com suas moralidades: contos de minha mãe gansa (1697). Os contos aí incluídos são: A Bela Adormecida no Bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As Fadas, A Gata Borralheira, Henrique do Topete e O Pequeno Polegar.

No século XVIII, as fadas passaram a um segundo plano no interesse dos adultos e se recolheram ao mundo infantil. Mais tarde, no século XIX, retornaram, mas não por uma preocupação com as crianças e um entretenimento dos homens, mas sim por uma preocupação lingüística. Foi nesse contexto que os irmãos Jacob e Wilheelm Grimm, estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão passaram a coletar e estudar uma grande massa de textos. Como conseqüência, publicaram os Contos de fadas para crianças e adultos (1812-1822). Destacam-se dentre os contos que foram traduzidos para o português: A Bela Adormecida, Os Músicos de Bremen, Os Sete Anões e a Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, A Gata Borralheira, O Corvo, As Aventuras do Irmão Folgazão, A Dama e o Leão. Também como representantes da literatura infantil desse século XIX, temos Hans Christian Andersen, poeta e novelista dinamarquês, a Condessa de Segur (1856), Lewis Carroll (1865), com Alice no país das maravilhas e, finalmente, Collodi, que em 1883, publica Pinóquio.

 

A PSICOLOGIA E OS CONTOS DE FADAS

Muitas considerações sobre a literatura dos contos de fadas foram feitas do ponto de vista da Psicologia. Autores tais como, Marie-Louise Von-Franz, Bruno Bettelheim e René Diatkine, apoiados em conceitos da teoria junguiana (no caso da primeira autora) e da teoria psicanalítica (no caso dos dois últimos autores) buscaram compreender o significado dos contos de fadas no desenvolvimento intelectual e afetivo das crianças.

Von-Franz (1985) destaca os símbolos presentes nos contos de fadas, especialmente os relatados pelos Irmãos Grimm. Destaca temas como a sombra, a destruição e renovação do rei, a renovação da consciência dominante, a ânima e a renovação, a rendição do ego e a grande mãe e a unicidade. Estes temas são apresentados, tendo como pano de fundo a idéia junguiana de que “a sombra é tudo aquilo que faz parte da pessoa, mas que ela desconhece” e “consiste em partes de elementos pessoais e em parte de elementos coletivos” (Von-Franz, p.12). No que diz respeito aos contos de fada, a autora se pergunta se eles representariam ou não material psicológico e qual sua provável origem e sua função em nossa civilização. Assim, relembra que “antigamente, até mais ou menos o século XVII, os contos de fadas não eram destinados apenas às crianças, mas também aos adultos das classes mais baixas da população como lenhadores e camponeses, divertindo-se suas mulheres a ouvi-los enquanto fiavam” (p.18). Nesta época, havia narradores profissionais de contos de fadas, os quais herdavam essa função dos antepassados ou como uma tradição transmitida de pessoa para pessoa. Segundo Von Franz, os contos estariam relegados atualmente às crianças por se referirem a “material arquetípico” e este é encarado em nossa civilização como algo infantil. Para ela, a interpretação do conto sempre lhe será inferior, assim como ocorre com a interpretação dos sonhos e mitos. Contudo, é necessária porque traz objetividade, abrindo o quadro de referência do sujeito.

Bettelheim (1978/1980) analisou os contos de fadas quanto à sua importância para o desenvolvimento psicológico das crianças e escolheu alguns contos para ilustrar suas idéias, as quais se baseiam na teoria psicanalítica freudiana. Diz Bettelheim:

“Esses contos (referindo-se especificamente aos contos de Perrault), quando éramos crianças, nos introduziram num universo encantado cuja admirável magia nos permitiu dar impulso à nossa imaginação cada vez que as dificuldades da vida real ameaçavam nos abater, o que era freqüentemente o caso” ... “as esperanças, mantidas pelos contos de fadas, nos permitiam superar corajosamente as adversidades, fossem elas reais ou imaginárias” ...”se tivéssemos ficado por conta própria, nossos sonhos seriam limitados por imagens de cólera e vingança, por satisfações que teriam sido limitadas ao campo muito restrito de nossa experiência. Os contos de fadas graças à sua imensa variedade de acontecimentos e situações, graças às suas ricas - e muitas vezes ricas demais - descrições de prazeres, nos permitiram tecer à sua imagem fantasias otimistas que nos arrancavam de uma mundo no qual nós estaríamos bem mais descontentes de habitar” (p. 7-9).

Para o autor, todos nós necessitamos do reconforto proporcionado pela imaginação para que possamos viver o mundo das realidades quotidianas, as quais, sem a contribuição dos sonhos noturnos e diurnos nos pareceriam talvez muito penosas para poderem ser suportadas. Mas nós as toleramos porque esperamos a chegada de dias mais favoráveis. São essas esperanças que os contos de fadas inculcam na criança, num período de sua vida no qual ela não pode vislumbrar ainda a confiança de que seus esforços valerão a pena para a realização de seus anseios mais caros, de seus desejos mais ardentes. Referese ainda ao valor dos contos para o adulto que os conta às crianças. Para ele, essas histórias ou aquilo que retemos delas, nos fazem viver intensamente não somente as alegrias, mas também os medos de nossa infância. Bettelheim nos diz que a origem dos contos é, ao mesmo tempo, antiga e moderna. Antiga, porque os contos sempre foram transmitidos por tradição oral, e são, por isso, tão antigos como qualquer outro tipo de invenção literária. Contudo, os contos são também tão modernos quanto outros gêneros literários, pois continuamos a criá-los hoje, como se fazia desde o início da história da humanidade. O mesmo autor também menciona o fato, tal como Von-Franz, que os contos não foram originalmente uma literatura voltada exclusivamente para as crianças; eram contados por adultos pelo prazer e edificação dos jovens e dos velhos; falavam do destino do homem, de suas provas e tribulações, de seus medos e esperanças, de suas relações com seu próximo e com o sobrenatural, e isto sob uma forma que permitia a cada um executar o conto com prazer e, ao mesmo tempo, meditar sobre seu sentido mais profundo.

O autor lamenta o fato de que, nos dois últimos séculos (e ocidental), tenha passado a vigorar a idéia de que esta literatura diga crianças e não traga nada de importante para os adultos. A este respeito, que esta diferenciação de gostos literários só tende a alargar o que chama separa as experiências ricas de significações para uns e para outros.

Ainda que os contos possam variar nos detalhes segundo as diferentes culturas, pode-se, ainda segundo o mesmo autor, encontrar as mesmas intrigas fundamentais no mundo todo. A este respeito, Hétier (1999) demonstra essa universalidade dos temas apresentados pelos contos. Isto nos mostra que o homem não foi capaz jamais, em parte alguma, de afrontar os caprichos da vida sem recorrer às fantasias que, divertindo-o e reconfortando-o, lhe traziam alívio imaginário para as tensões e angústias que o oprimiam.

Os contos poderiam propiciar, então, ajuda particular à criança. Esta é, muitas vezes, incapaz de visualizar concretamente, com seus próprios meios, seus medos e esperanças. Os contos a ajudam no sentido de apresentar-lhe personagens sobre os quais ela pode projetar suas esperanças e suas angústias. Porque os contos de fadas colocam em cena as angústias, alguns acham erradamente, segundo Bettelheim (1978), que eles insinuam o medo na criança. Na opinião do autor, quem assim pensa esquece que “o homem tem excelentes razões para inventar os contos de fadas e que estes não existiriam se não fossem contados e escutados com prazer, por motivos igualmente válidos” (p. 12). Os contos possuem, então um papel muito importante: fornecer ocasião para concretização das angústias e também da possibilidade de dominá-las. Além disso, afirmam para a criança que cada espectro mau tem o seu inverso, e que o segundo é mais poderoso para fazer o bem do que o primeiro para fazer o mal. Aí está alguma coisa que a criança dificilmente consegue imaginar sozinha quando está dominada pela angústia. Até os ogros têm esposas que tentam proteger deles seus filhos e que, no final das contas lhes dão a prata e o ouro do ogro, como acontece no Pequeno Polegar.

Em suas considerações, Bettelheim destaca ainda a importância do contar o conto de fadas, classificando esta experiência de duplamente pessoal. Em primeiro lugar, do ponto de vista do narrador, pois o contar é modelado pela personalidade do narrador, que insiste sobre certos detalhes mais que sobre outros. Em segundo lugar, do ponto de vista do ouvinte, que pede para que determinado trecho da história seja aprofundada ou explicada. O conto deixa aflorar tanto a imaginação do contador como do ouvinte, o que lhes permite adaptar suas idéias e sentimentos. A história pode corresponder às necessidades e às aspirações do momento, as quais se expressarão numa ou noutra interpretação. Esta poderá mudar com o tempo, à medida em que as necessidades e os desejos tomarem um curso diferente. Ainda segundo o autor, conforme a criança vai crescendo e aprofundando sua experiência do mundo, o mesmo conto ganhará em significação. Com isto, quer destacar a importância do adulto contar histórias às crianças, uma vez que estes, mais amadurecidos que as primeiras, podem apresentar as histórias de múltiplas maneiras. Se, por um lado, o adulto pode enriquecer os contos ao contá-los às crianças, ele pode também empobrecê-los ou desvirtuá-los. Isso é o que as versões ou adaptações para televisão ou cinema fazem em geral. Quanto a este assunto, Bettelheim é enfático:

“não deixam grande coisa para a imaginação da criança e insistem demais em coisas secundárias em detrimento da significação profunda. Assaltando ao mesmo tempo os olhos e os ouvidos, passando muito rápido de uma cena à outra, insistindo sobre o espetacular e o sensacional, essas versões submergem a criança em um entretenimento tão rápido que ela não tem tempo para refletir sobre o sentido profundo da história que se esconde sob a superfície. Ela é obrigada a aceitar o conto tal como o fez o diretor, para agradar ao maior número de pessoas e para fazer dela um sucesso imediato. Mas trata-se de histórias que só demonstram toda sua riqueza com o tempo e que devem ser contadas freqüentemente e lentamente para as crianças” (p. 23).

O mesmo autor (Bettelheim,1980), destaca que, para produzir seu efeito benéfico sobre a criança, o conto deverá ter um final feliz, porque assim, representará para ela o que será o desenvolvimento psicológico saudável, apesar de todas as dificuldades que possam surgir.

As idéias de Bettelheim foram compartilhadas pelo psicanalista francês René Diatkine (1993), o qual procurou explicar o fascínio das crianças pelos vilões dos contos infantis, defendendo a leitura dessa literatura para a formação de adultos saudáveis. Trabalhando no Centro de Saúde Mental do XIII distrito de Paris, fez durante muitos anos o acompanhamento de crianças, sobretudo psicóticas, por meio de contos infantis. Dizia Diatkine:

“É o jogo entre a linguagem do cotidiano e a do texto dos contos que enriquece o imaginário infantil... o que fazemos não é uma terapia, é algo muito maior. É uma bela higiene mental, uma preparação para o futuro.” (Diatkine, 1993).

Contudo, o autor alertava que a leitura dos contos não deve ser encarada como aprendizado escolar, pois, para ele, ler o conto é uma brincadeira que deve ser repartida com prazer. Assim, considera que os pais, que forçam seus filhos a ler para acelerar o seu aprendizado, cometem um grande erro. E acrescenta que a TV não é a maior inimiga dos livros, como se pensa. Isto porque a entonação tranqüila da voz dos pais ou daquele que lê uma boa história para a criança, sempre prevalece sobre a diversão eletrônica. Nesse sentido costumava ser enfático: “São os pais que tem preguiça de ler para os filhos e preferem colocá-los diante da TV”. Sobre a atração que os contos exercem sobre as crianças ao longo da história dos povos, o autor considerava que o imaginário infantil se enriquece com as narrativas, com começo, meio e fim. A criança sabe distinguir a linguagem do cotidiano da dos contos e ao ouvir as histórias, ou ao lê-las, ela cria um espaço em sua cabeça para um mundo mágico literalmente fabuloso. Aprende assim, a reagir a situações desagradáveis e a resolver seus conflitos pessoais.

E concluía: “O que nós psicanalistas fazemos, com conhecimento, porque já estudamos, deveria ser feito pelos pais: acompanhar os filhos, sentar para ler e narrar histórias. Simples assim. As descobertas serão surpreendentes.” (Diatkine, 1993).

 

AS REPRESENTAÇÕES DE CONTOS DE FADAS: AS PESQUISAS DA AUTORA

Piaget (1926) demonstrou seu interesse pelas explicações construídas pelas crianças ao longo da vida, para os fenômenos externos e internos e desenvolveu o método clínico-crítico, inspirado no método da entrevista psíquica criado pela psiquiatria, e também no método da observação pura, desenvolvido pelos naturalistas. Seu método clínico define temas a serem investigados e o segredo de sua prática é saber construir hipóteses de trabalho que possam ser testadas diretamente na interação com as crianças, sob a forma de perguntas desencadeadoras, as quais permitem conhecer o tipo de pensamento em jogo. O autor indicou ainda a importância para o pesquisador, de ter experiência ampla no método para não sugerir respostas a seus sujeitos e também para saber diferenciar as crenças desencadeadas pelo interrogatório das crenças anteriores trazidas à tona pela situação de pesquisa (espontâneas).

Com base no método clínico de Piaget e também no interesse em pesquisar as relações entre afetividade e inteligência, foram realizadas seis pesquisas, as quais consideraram os aspectos afetivos e cognitivos de crianças, de diferentes idades e de ambos os sexos, envolvidos na apreensão e interpretação de alguns contos de fadas. Cada uma das investigações apresenta objetivos distintos, mas sempre subordinados ao objetivo global do programa de pesquisas da autora, qual seja, estudar as relações entre afetividade e inteligência no desenvolvimento psicológico, utilizando, para isso, contos de fadas e tendo como perspectiva teórica de base a teoria de Jean Piaget. Os procedimentos metodológicos também foram semelhantes e as distinções estão apresentadas para cada uma das pesquisas, constituindo-se na leitura do (s) conto(s), pedindo para que a criança recontasse a história ouvida e entrevista sobre a história, com base em protocolos desenvolvidos para este fim. Os procedimentos de análise se relacionaram ao agrupamento por semelhança dos argumentos apresentados pelas crianças como justificativas para suas respostas, construção de categorias e tabulação dos resultados em termos de freqüência absoluta e relativa.

Isto posto, passaremos a apresentar, resumidamente as investigações realizadas, com o objetivo de demonstrar as diferentes ênfases no percurso/programa de pesquisas da autora.

Na primeira investigação (De Souza, 1990), foram estudados os aspectos afetivos e cognitivos de 30 crianças, de nove a onze anos, expressos nos modos de recontar uma história de fadas: a do Chapeuzinho Vermelho. Os dados foram obtidos em escola particular da cidade de São Paulo, a qual concordou com a realização das entrevistas, bem como obteve autorização dos responsáveis legais pelas crianças envolvidas na investigação. Foram denominados aspectos cognitivos, aqueles referentes à capacidade das crianças reconstruírem a história lida anteriormente, abstraindo os seus elementos principais, e interpretando seu conteúdo e sua mensagem. Foram considerados aspectos afetivos, aqueles relativos à ressonância do mundo interno da criança sobre o conto de fadas. Neste trabalho foram observados três modos básicos de reconstituição: nível I- reconstituição “fantasiosa”; nível II- reconstituição “concreta” e nível III- reconstituição “interpretativa”. No nível I, o tipo de reconstituição foi caracterizado pela distorção do texto originalmente lido, com a inclusão (por justaposição e sincretismo) de elementos exteriores, em sua maioria, subjetivos e relativos a outros contextos. A reconstituição de nível II, por sua vez, apresentou fundamentalmente características tais como o apego excessivo à realidade do texto lido e a necessidade de incluir todos os mínimos detalhes do enredo para recompor “verdadeiramente” a história. Finalmente, a reconstituição denominada de nível III, caracterizou-se por uma interpretação que contemplou os elementos “reais” da história, juntamente com os elementos presentes nas suas entrelinhas e também incluiu intenções dos personagens e relativização de contextos (real e possível). Os três modos de reconstituição da história foram associados a três dos quatro períodos de desenvolvimento da inteligência, segundo Piaget: o período pré-operatório, o operatório-concreto e o operatório-formal. A análise das relações entre os aspectos afetivos e cognitivos das crianças se configurou em três estudos de caso, nos quais se buscou discutir as correspondências constatadas entre as características do pensamento e da afetividade, à luz das técnicas projetivas, das provas operatórias e do próprio conto de fadas em questão.

A segunda pesquisa (De Souza, 1995), com 30 crianças, de ambos os sexos de uma escola particular da cidade de São Paulo, deu continuidade à primeira, em duas direções. Em primeiro lugar, ampliou o estudo dos modos de reconstituição de histórias de fadas, para mais duas faixas etárias (sete e oito anos), e em segundo lugar, verificou que os modos de reconstituição observados no primeiro estudo permaneceram os mesmos, também para outros três contos de fadas dos Irmãos Grimm (O Lobo e os Sete Cabritinhos, Rapunzel e As Três Penas), mas com níveis de transição entre eles, o que forneceu maior riqueza de detalhes sobre os elementos envolvidos nas diferentes interpretações. Além disso, na amostra estudada, foi constatada uma correspondência entre os aspectos característicos dos diferentes modos de reconstituição da história e os aspectos de desenvolvimento do pensamento expressos nas provas operatórias, o que complementou dados do primeiro estudo.

A terceira investigação (De Souza, 2001), também com 30 crianças de ambos os sexos e de uma escola particular da cidade de São Paulo, pretendeu comparar dois tipos de representação (gráfica e oral), de dois contos de fadas: As Três Penas e As Moedas-Estrelas. O objetivo foi investigar como as crianças, de sete a dez anos representavam os dois contos de fadas por meio de um desenho e oralmente. Tratou-se de estudo que buscou correspondências entre as representações gráficas e orais e que supôs que a primeira (por intermédio de imagens) era mais precoce que a segunda (verbal) no desenvolvimento da criança. A hipótese de pesquisa não foi confirmada e verificou-se que a utilização de representações gráficas foi problemática para as crianças, sobretudo as mais jovens da amostra (de sete anos de idade), uma vez que tiveram dificuldade em sintetizar a história lida numa imagem global. Já as crianças mais velhas resolveram esse impasse representando a história sob a forma de uma história em quadrinhos, o que não ocorreu às crianças mais jovens. Refletindo sobre a instrução dada (“desenhe a história que você ouviu”), a partir da interlocução com outros pesquisadores, no Brasil e na Suíça, concluiu-se que esta era mesmo de difícil elaboração por parte das crianças, em especial aquelas com menor capacidade de coordenação cognitiva. A reconstituição oral, tida inicialmente como mais difícil, no entanto, não trouxe problemas para as crianças, de maneira geral, mesmo para as mais jovens, pois para sua realização, a experimentadora ia fazendo perguntas à medida em que a criança recontava a história, o que lhe oferecia diretrizes para a recontagem, o que não ocorria com a instrução dada para a reconstituição gráfica. Os dados demonstraram, mais uma vez, que as representações de histórias de fadas fornecem elementos importantes sobre o desenvolvimento do pensamento e julgamento de crianças de várias idades.

Tendo em vista as considerações efetuadas a partir das pesquisas anteriormente apresentadas, decidiu-se ampliar as investigações sobre as representações de histórias em quatro aspectos: a) em primeiro lugar, incorporando reformulações nos protocolos de entrevista para que os mesmos pudessem captar também elementos do desenvolvimento afetivo das crianças; b) em segundo lugar, aprofundando as investigações que utilizam contos de fadas para que se pudesse verificar até que ponto estes poderiam ser instrumentos úteis para a pesquisa psicológica; c) em terceiro lugar, ampliando o número de crianças pesquisadas, o que permitiria análises quantitativas mais refinadas; e d) elaborando indicadores e categorias de análise sobre a afetividade das crianças, a partir das concepções de Piaget.

Assim, em 2001, uma quarta investigação foi realizada com 80 crianças, de primeira a quarta séries do Ensino Fundamental, com idades entre sete e onze anos. Os pesquisadores ajustaram os protocolos de entrevista, elaboraram categorias de análise a partir dos dados brutos, bem como analisaram e interpretaram os resultados com base nos estudos de Piaget. Indicadores da afetividade surgiram nas entrevistas, diretamente ligados aos interesses das crianças por um ou outro personagem e preferência por um ou outro aspecto da história. A investigação permitiu um estudo minucioso dos argumentos elaborados pelas crianças para justificar suas respostas, assim como suas escolhas

A quinta pesquisa (2003) inseriu-se em projeto global de cooperação CAPES/COFECUB, entre o Instituto de Psicologia da USP e a Universidade de Rennes 2, França. Fazia parte do projeto global de pesquisa, o estudo intitulado Representações de histórias: aspectos afetivos e cognitivos, sob a coordenação desta pesquisadora, do lado brasileiro, e da Professora Gaid LeManer-Idrissi, do lado francês. A pesquisa focalizou a interferência do gênero e da cultura nas justificativas para as argumentações das crianças. Os objetivos dessa investigação foram: a) estudar como crianças brasileiras e francesas representavam uma história de fadas O Senhor Lobo e a Senhora Gata; b) estudar os julgamentos e preferências das crianças em relação aos elementos do conto, tendo como base a teoria psicogenética de Piaget; c) pesquisar a inclusão de elementos ligados ao gênero nos julgamentos sobre o conto; e d) pesquisar as relações entre os tipos de representação, a idade e o gênero. Participaram deste estudo 74 crianças (34 brasileiras e 40 francesas), de quatro a seis anos, de ambos os sexos, voluntárias, que freqüentavam creche ou escola. As categorias de análise foram: a) Escolha ligada ao gênero: a criança utiliza seu gênero para justificar suas preferências; b) Escolha ligada ao conteúdo: a criança utiliza elementos do enredo da história para justificar suas preferências; c) Aspectos interessantes escolhidos (coisas materiais, atributos físicos, habilidades); e d) Qualidades admiráveis escolhidas (coisas materiais, atributos físicos ou motores, virtudes). Foram observadas diferenças na utilização do argumento relativo ao gênero para justificar as escolhas relativas aos personagens. As crianças francesas, de ambos os sexos, utilizaram este tipo de argumento mais freqüentemente que as crianças brasileiras, das quais os meninos usaram este argumento mais que as meninas e somente a partir dos cinco anos de idade, o que poderia estar relacionando com as diferenças culturais das práticas educativas com relação aos meninos e às meninas, na França e no Brasil. Além disso, aspectos materiais e/ou atributos físicos foram escolhidos como mais interessantes mais freqüentemente pelas crianças mais jovens, enquanto que as crianças mais velhas escolheram elementos mais abstratos, o que pode estar relacionado aos níveis de desenvolvimento cognitivo, segundo Piaget, que evoluem do concreto ao formal (abstrato). E ainda, as crianças francesas, mais freqüentemente que as brasileiras, não escolheram aspectos interessantes e qualidades admiráveis dos personagens, o que pode ter ocorrido pelas dificuldades de compreensão das perguntas sobre estes assuntos, sobretudo no caso das mais jovens. Todas as crianças conseguiram julgar as ações e atitudes dos personagens, assim como demonstrar suas preferências quanto aos personagens, de maneira geral, o que pode se relacionar à capacidade de adaptação à entrevista sobre o conto de fadas e também denotar seu desenvolvimento psicológico, em termos cognitivos e afetivos. As meninas da amostra brasileira apresentaram uma tendência a tomar como referência o conteúdo do conto, mais do que elementos ligados ao gênero, para responder questões diretamente ligadas a este aspecto.

Finalmente, em 2003-2005, foi realizado estudo relativo à pesquisa Representações de contos de fadas: afetividade, cultura e cognição (N=80), com crianças de sete a onze anos, de ambos os sexos e alunos do Ensino Fundamental, de uma escola particular da cidade de São Paulo, cujo objetivo principal foi estudar elementos ligados à afetividade, moralidade e inteligência, segundo Piaget, utilizando dois contos de fadas: “O lobo e os sete cabritinhos” e “Senhor Lobo e Senhora Gata”. As análises deste estudo mostraram: 1) que as crianças mais velhas, em relação às mais jovens, tendem a destacar, para suas argumentações, aspectos mais abstratos dos personagens, mais do que aspectos materiais, concretos; 2) que foram detectadas diferenças em termos da objetividade das respostas, ligadas ao fato das mesmas se referirem a elementos do conteúdo dos contos, ao julgamento das ações dos personagens ou às valorizações afetivas (interesses e aspectos admiráveis) inseridos nas argumentações; e 3) que, contrariamente ao esperado pelas considerações piagetianas, as crianças manifestaram um ritmo de estruturação, aparentemente diferente, quando focalizaram os aspectos estritamente ligados ao conteúdo dos contos, ou aqueles que precisaram ser inferidos a partir das histórias, e mais, estavam associados às valorizações afetivas.

 

ASPECTOS INTERESSANTES, ADMIRÁVEIS E NÃO-ADMIRÁVEIS DE ALGUNS CONTOS DE FADAS

Tendo como base o programa de pesquisas mencionado anteriormente, os exemplos dos aspectos escolhidos pelas crianças como interessantes, admiráveis e nãoadmiráveis e suas justificativas, apresentados a seguir, ilustram as informações colhidas nas entrevistas e as categorias construídas para sua análise, o que tem permitido discutir a qualidade das escolhas efetuadas e as relações entre os interesses, virtudes e estruturações cognitivas, tomando como referências as concepções piagetianas de interesses, valores e escolhas por valorização afetiva.

Para isso, focalizamos as respostas das crianças para as seguintes perguntas dos protocolos de entrevista: O que este personagem (escolhido) tem de interessante?; Que qualidades ele tem que você admira?; Que qualidades ele tem que você não admira? (para a história As três Penas). E você acha a menina um personagem interessante?; Que qualidades ela tem que você admira?; Que qualidades ela tem que você não admira?; O que você achou do que ela fez durante a história?; O que você acha que ela deveria fazer? (para a história As Moedas-Estrelas).

As respostas obtidas foram agrupadas por semelhança e foram construídas categorias de análise as quais revelam as qualidades das valorizações empreendidas (ênfases, justificativas, critérios). Estas qualidades de valorização afetivas foram discutidas em termos das concepções piagetianas de afetividade em suas relações com a inteligência no desenvolvimento mental da criança. Tem-se então:

a) Interesse visando o bem material: refere-se às respostas que expressaram interesses pelos personagens e pelas suas ações, numa hierarquia de valores que tinha, em seu topo, os bens materiais. Logo, o interessante, o admirável estava diretamente ligado ao que o personagem possuía, materialmente. A qualidade da valorização, neste caso, esteve mais ligada a concretude do aspecto escolhido, o que estaria relacionado também a um tipo de estruturação cognitiva operatória concreta, a qual focaliza essencialmente aspectos concretos da realidade para refletir. Vejamos alguns exemplos que ilustram esta categoria.

Para o conto As Três Penas (criança da primeira série, sexo feminino):

M - E tem algum personagem nessa história que você gostou mais?
Ren - O Bobalhão.
M - O que ele tem de interessante?
Ren - É...
M - O que ele tem de legal?
Ren - É a sapona que eu achei legal.
M - Ah é? E o que ela tem de interessante?
Ren - Ela dá as coisas pro Bobalhão.
M - E que qualidades que ela tem que você admira, que você gostaria de ter?
Ren - ...
M - A sapa tem alguma qualidade que você gosta bastante, que você gostaria de ter também? Alguma coisa do jeito dela ser...
Ren - ...Nada.
M - E tem alguma qualidade da sapa que você não gostaria de ter?
Ren - ... Não.
M - Por que você gostou mais dela então?
Ren - ... Eu gostei dela porque ela é boa, ela dá as coisas dela pros outros.
M - O que você achou do final da história?
Ren - O Bobalhão foi o rei.
M - Você gostou disso? Por que?
Ren - Porque... a sapa deu as coisas pra ele e ele foi o rei.
M - Você mudaria alguma coisa na história?
Ren - Não.
M - Obrigado.

Não se observou, neste exemplo uma tendência a julgar e valorizar uma qualidade abstrata do personagem, sendo que o que mais chama a atenção é a descrição dos fatos, das ações concretas (o que a sapa fez, o que ocorreu com o Bobalhão no final da história). Isto poderia estar relacionado à estruturação pré-operatória do conhecimento, segundo a perspectiva piagetiana.

Para o conto As Moedas Estrelas (criança de 2ª série, sexo feminino)

M - E você acha a menina uma personagem interessante?
May - Sim.
M - O que ela tem de interessante?
May - ...Ela foi legal.
M - O que ela tem de legal?
May - Bom coração.
M - Que qualidades que essa menina tem que você admira, que você gostaria de ter também?
May - ...
M - Alguma coisa do jeito dela ser que você gostaria de ter também...
May - Nada.
M - E tem alguma qualidade nela que você não admira?
May - Não ter pai nem mãe.
M - É. Por que?
May - Porque eu ia ficar sozinha.
M - É. E o que você achou do que a menina foi fazendo durante a história?
May - Legal.
M - Por que legal?
May - Porque ela ajudou, deu tudo o que ela tinha e depois ela recebeu uma recompensa.
M - Depois ela o que?
May - Ela recebeu uma recompensa.
M - O que você acha que ela deveria fazer nessa história?
May - ... Se ela não fizesse o que ela fez, ela não ia dar as coisas.
M - Ela não ia dar?
May - É, e não ia receber também.
M - Não ia receber?
May - É.
M - Por que?
May - Porque quando alguém dá, tem uma recompensa.
M - Então se ela não desse as coisas dela, o que você acha que aconteceria?
May - Ela não ia receber a recompensa e ia ficar lá sozinha.
M - Por que você acha que ia acontecer isso?
May - Porque ela não ia ganhar a recompensa e ia ficar sozinha.
M - ... E o que você achou do final da história?
May - Muito legal.
M - Por que muito legal?
May - Porque ela ficou rica e feliz pra sempre.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
May - Não.
M - Obrigado por sua ajuda.

Neste exemplo, por sua vez, há uma tentativa de ir além dos fatos e compreender sua relação. No entanto, há ainda um apego a um aspecto da história (o final) utilizado até para justificar o enredo como um todo e as valorizações empreendidas, ou seja, toda a história parece ser explicada em função de seu desfecho.

b) Interesse visando o bem material, mas em busca de equilíbrio nas relações: Esta categoria é similar à anterior, mas já apresenta uma evolução no sentido em que aparecem no discurso das crianças elementos ligados a uma virtude moral nascente. Apesar do bem material ainda ser o principal argumento, já se pode notar que outros fatores estão sendo levados em conta para discutir as relações apresentadas nas histórias. Isto pode significar que a qualidade das valorizações é menos concreta e caminha em direção a abstrações mais amplas, o que seria o movimento evolutivo desejável a partir da perspectiva de Piaget. Vejamos os exemplos:

Para o conto As Três Penas (criança de 3ª série, sexo feminino)

M - E teve algum personagem dessa história que você gostou mais?
Isi - Não.
M - Mas se tivesse que escolher um, qual você escolheria?
Isi - O... rei.
M - O rei. O que ele tem de interessante?
Isi - Ele tem... ele tem mais atitude própria, ele tem mais... como que fala?... opinião. Ele pode mandar.
M - E que qualidades que o rei tem que você admira?
Isi - A coroa, o castelo e só.
M - Por que você admira a coroa e o castelo?
Isi - Porque a coroa é bonita e o castelo é mais grande.
M - E tem alguma qualidade do rei que você não admira?
Isi - A tristeza, eu acho que rei não tem muita felicidade.
M - Por que?
Isi - Porque rei não vive normalmente, ele vive uma história diferente.
M - Mas por que você acha que isso o deixaria triste?
Isi - Porque ele nunca ia ter muita liberdade.
M - Não entendi. Por que ele não teria muita liberdade?
Isi - Porque antigamente eles não tinham controle das coisas, eles também não tinham tantas coisas, as roupas eram meio descoloridas. Antigamente também não tinha muita... alegria.
M - E o que você achou do final da história?
Isi - Eu achei interessante.
M - Por que?
Isi - Porque o único que ninguém achava que tinha autoridade, tinha. O Bobalhão só não mostrava pros outros.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
Isi - Não.
M - Nada?
Isi - Não.
M - Beleza. Obrigado pela sua ajuda.

Ainda que aspectos materiais (coroa e castelo) tenham sido lembrados e valorizados, nota-se um esforço no sentido de ir além disso e refletir sobre as relações entre os diferentes elementos da vida do rei, descentrando-se de um único aspecto e de uma valorização mais unilateral. Isto se relaciona, do ponto de vista cognitivo, ao funcionamento da inteligência operatório-concreta, a qual revela o processo de descentração cognitiva que é (segundo Piaget) contemporâneo ao da descentração afetiva. Deve-se ressaltar que as transformações nas qualidades das valorizações afetivas não são abruptas mas gradativas, o que permite identificar na ilustração acima elementos materiais e também tentativas de relacionar os diferentes elementos do conto.

Para o conto As Moedas Estrelas (criança de 1ª série, sexo masculino)

M - Você acha a menininha um personagem interessante?
Gab - Acho.
M - O que ela tem de interessante?
Gab - Ela tem... eu gostei de todas as coisas, a história foi legal, mais eu gostei mais das moedas de ouro.
M - O que eu queria saber é o que você acha de interessante na personagem, na menina?
Gab - Ela... tem as moedas de ouro.
M - E tem alguma qualidade na menina que você gostaria de ter?
Gab - Não.
M - Ela não tem nenhuma qualidade que você admira, que você gostaria de ter também?
Gab - Não.
M - E tem alguma qualidade nela que você não admira, que você não gostaria de ter?
Gab - Não também.
M - O que você achou do que a menina fez durante a história?
Gab - Eu gostei que caiu um monte de moeda no chão e ela ficou rica. E eu gostei que ela ajudou os outros pobres.
M - O que você acha que ela deveria fazer nessa história?
Gab - ...
M - Você acha que ela deveria ter feito alguma coisa diferente do que ela fez?
Gab - Não, isso aí eu não consigo.
M - Por que não?
Gab - Ela... não sei, acho que não. Todo mundo que é pobre não gosta de ser pobre, e ela fica com dó das outras pessoas que são mais pobres do que ela e ela vai lá dar as coisas para elas. Mas eu não achei legal um pouco porque ela deu as roupas dela, mas eu achei legal porque ela deu o pãozinho dela. As roupas que ela tinha eu não achei legal porque depois ela fica com frio e não tem mais roupa.
M - E se ela não desse as coisas dela, o que você acha que aconteceria?
Gab - Não caía as moedas de ouro?
M - Não sei? O que você acha?
Gab - Acho que é isso?
M - Por que você acha isso?
Gab - ...Não sei...não sei direito falar.
M - Tá bom. O que você achou do final da história?
Gab - Legal porque ela foi dando as coisas dela e no final ela ficou feliz porque ela ficou rica com as moedas de ouro.
M - Você mudaria alguma coisa na história?
Gab - Não.
M - Obrigado pela entrevista.

Apesar das dificuldades para colocar em palavras seus julgamentos, nota-se um esforço de pensar e valorizar vários elementos ao mesmo tempo, as diferentes partes da história e o seu desenlace, o que também revela o exercício de descentração afetiva mencionado acima.

c) Interesse visando a reciprocidade nas relações: Nesta categoria o bem material deixa de fazer parte da hierarquia de valores e o interessante passa a ser o modo como o personagem é, e como ele age em direção à reciprocidade em suas relações. Isto foi considerado mais evoluído do que o apresentado até então, visto que ao valorizar as relações entre as ações, necessariamente ocorre uma mudança na qualidade dos interesses no sentido de priorizar aspectos mais abstratos e menos materiais. Vejamos:

Para o conto As Três Penas (criança de 3ª série, sexo masculino)

M - Tem algum personagem nessa história que você gostou mais?
Mat - Que eu gostei mais?
M - É.
Mat - O Bobalhão.
M - E... o que você acha que ele tem de interessante?
Mat - Ah, ele não era só uma pessoa que todo mundo dizia que era bobalhão por fazer as coisas erradas, mas nem sempre as pessoas tem coisas erradas, por exemplo: uma pessoa que é mais esperta que a outra, tem gente que conta na letra de português, tem um menino na minha classe que tem a letra mais bonita que a minha, mas eu sou mais esperto que ele. Todo mundo tem uma coisa que a outra não tem, eu gosto de futebol outro menino gosta de brincar com bonecos, eu já não gosto. Então cada um tem seu gosto. Então ele podia ser bobalhão numa coisa e ser esperto em outra.
M - O Bobalhão tem alguma qualidade que você não admira?
Mat - ...Ele ser chamado de bobalhão.
M - Porque?
Mat - Porque ele foi mais esperto que os irmãos dele. Ele podia errar umas três vezes, mas continua sendo um Bobalhão, sei lá, ele não devia ser chamado de Bobalhão só porque erra umas vezes, tinha que ser chamado pelo nome dele. Ninguém sabe se ele gostava de ser chamado de Bobalhão.
M - E o que você achou do final da história?
Mat - Interessante.
M - Por que interessante?
Mat - Porque significava que esse tal de Bobalhão não era sempre um Bobalhão. Seria mais um meio Bobalhão e meio esperto.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
Mat - Mudaria.
M - O que?
Mat - Os três ganharem a herança. Esse tal de Bobalhão não ser chamado de Bobalhão.
M - Era isso que eu queria conversar com você, obrigado.

Não é difícil destacar no exemplo acima a ênfase valorativa nas relações entre as ações e suas conseqüências e a comparação com outros contextos, com vistas à compreensão e explicação dos aspectos focalizados como mais importantes. Isto está de acordo com o movimento evolutivo descrito por Piaget, tanto para a inteligência como para a afetividade: do pontual para o geral, do subjetivo para o objetivo.

Para o conto As Moedas Estrelas (criança de 4ª série, sexo feminino)

M - Você acha a menina um personagem interessante?
Mai - Eu acho. Ela é diferente.
M - Por que ela é diferente?
Mai - Porque os outros não são tão bons assim.
M - E que qualidades que a menina tem que você admira?
Mai - Que ela é boa...
M - Por que você admira o fato de ela ser boa?
Mai - ... Não sei... Eu gosto de alguém bom e não de alguém ruim.
M - Por que?
Mai - Porque as pessoas ruins são idiotas. Elas só fazem o mau.
M - E tem alguma qualidade nela que você não admira?
Mai - Não.
M - E o que você achou do que ela fez durante a história?
Mai - Foi bacana.
M - Por que bacana?
Mai - Foi um ato bom.
M - E o que você acha que ela deveria fazer?
Mai - Ela deveria fazer o que ela fez, depende do sentimento dela.
M - Por que depende do sentimento dela?
Mai - Porque se ela é outra pessoa, que é má, que não presta, ela não ia fazer isso.
Então depende do que o coração dela mandar.
M - E se ela não desse as coisas dela o que você acha que aconteceria?
Mai - Ela continuaria pobre. Porque foi com esse ato de bondade que acho que caiu aquelas moedas, tipo uma luz pra ela.
M - Como assim uma luz pra ela?
Mai - Quem ia mandar aquelas moedas? Deus. Então ela teria ficado rica, ela continuaria vagando por aí.
M - O que você achou do final da história?
Mai - Achei legal por causa que todo o sacrifício que ela fez valeu pra alguma coisa.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
Mai - Não.
M - Obrigado.

Novamente, pode ser notada uma tentativa de refletir e valorizar diversos elementos da história que se relacionam, ou seja, que estão articulados, o que confere à valorização e também à argumentação da criança uma qualidade nova (e superior).

d) Virtude moral: A última categoria agrupou as respostas que elegem as virtudes dos personagens como seus aspectos mais interessantes e admiráveis. O caráter e a índole do personagem são os aspectos mais levados em conta para a argumentação das respostas. Como já foi dito anteriormente, as escolhas por admiração refletem um refinamento nas valorizações afetivas uma vez que implicam nos interesses e, ao mesmo tempo, na colocação dos mesmos em contextos amplos de reflexão e de permanência. Vamos aos exemplos:

Para o conto As Três Penas (criança de 4ª série, sexo masculino)

M - E qual personagem da história você achou mais interessante?
Fil - O Bobalhão.
M - Por que?
Fil - Porque ele conseguiu ser o rei no final.
M - E que qualidades que ele tem que você admira?
Fil - Ele é honesto, porque os outros dois não são nem um pouquinho honestos, e pensando que porque eram maiores poderiam chamar os outros de Bobalhão. Fica fazendo tudo pra conseguir o rei, que nem a minha irmã que fazia umas coisas dessas quando tinha que decidir alguma coisa.
M - E o Bobalhão tem qualidades que você não admira?
Fil - Só o apelido dele.
M - Só o apelido dele? Por que?
Fil - Ele não é Bobalhão, ele é mais inteligente que os outros, ele é que devia chamar os outros de bobalhão.
M - E o que você achou do final da história?
Fil - Interessante porque no começo eu pensava que um dos dois ia ganhar, pelo jeito que falou do Bobalhão a gente imagina que é bobo, aí depois ele não é nada disso, é só o apelido que os caras dá.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
Fil - Não... só a sapa que poderia ser uma mulher, pelo menos.
M - Legal. Era isso que queria conversar com você, obrigado.

Para o conto As Moedas Estrelas (criança de 4ª série, sexo feminino)

M - Você acha a menininha um personagem interessante?
Bea - Acho.
M - Por que? O que ela tem de interessante?
Bea - Por que ela é bem bondosa, ela é devota e ela acredita em Deus e acredita que os outros podem ser tão bons quanto ela.
M - Que qualidades que essa menina tem que você admira?
Bea - A bondade e ela é fiel.
M - Por que você admira isso?
Bea - Porque é bom ter né? Se você é bom as pessoas vão ser boas com você e, se você é fiel, com certeza as pessoas vão ser fiéis com você.
M - Tem alguma qualidade na menina que você não admira?
Bea - Não.
M - Nenhuma?
Bea - Não.
M - E o que você achou do que a menina fez durante a história?
Bea - Várias boas ações.
M - E o que você achou dessas ações dela?
Bea - Não é tão legal por que ela ficou sem roupa, mas é bom dar... é bom repartir sua pobreza com quem é mais pobre que você.
M - E o que você acha que ela deveria fazer?
Bea - Não precisaria dar tudo. Ela poderia ir junto com uma criança e fazer companhia pra aquela pessoa que precisava, aí os dois vivessem em harmonia.
M - E se ela não desse as coisas delas, que nem ela deu, o que você acha que aconteceria?
Bea - Acho que ela seria muito má e todo mundo não ia mais querer ficar perto dela por causa que ela ia ser muito má e ninguém ia gostar de ficar perto de uma pessoa má.
M - E o que você achou do final da história?
Bea - Eu achei que foi um final justo.
M - Por que justo?
Bea - Porque ela deu e ela recebeu também. E com o dinheiro ela também podia ajudar os outros, mas aí não fala na história, mas acho que ela ajudou.
M - E você mudaria alguma coisa na história?
Bea - Eu mudaria o final. Eu acho que com dinheiro que ela ganhou ela deveria construir uma casa para ela e para todas as pessoas que ela ajudou para todos ficarem juntos.
M - Obrigado pela entrevista.

Ainda que Piaget não tenha estudado empiricamente o desenvolvimento da afetividade, os exemplos acima indicam o movimento evolutivo por ele apontado, isto é, das valorizações simples e materiais para as que dizem respeito às ações e atitudes, chegando às valorizações mais abstratas relacionadas às virtudes, o que estaria em consonância com sua teoria do desenvolvimento da inteligência.

Os extratos de protocolos ilustram, assim, diferentes qualidades nas argumentações das crianças relacionadas aos aspectos (materiais ou abstratos) escolhidos como interessantes ou admiráveis. Estas qualidades também se manifestaram nas possibilidades de mudanças para os finais dos contos e, aparentemente, seguem uma direção, como já foi dito, que vai do universo material (concreto) para o abstrato, ou seja, crianças mais jovens e das séries iniciais tendem a escolher elementos concretos como mais interessantes, enquanto que crianças mais velhas tendem a manifestar interesses mais ligados à reciprocidade das relações e às virtudes. Esta progressão é compatível com a explicação piagetiana do desenvolvimento, que vai do apego ao concreto à ampliação para o universo abstrato, das possibilidades; do real ao possível. Os bens materiais das personagens chamam mais atenção das crianças mais jovens, enquanto que as mais velhas valorizam mais os elementos ligados às relações ou ao caráter das personagens. Estas diferentes valorizações são possíveis, segundo Piaget, pela evolução do sistema cognitivo das crianças e também pela expansão e estabilidade de suas hierarquias de valores, diretamente ligada à evolução da afetividade.

A continuidade das investigações sobre os aspectos afetivos, cognitivos e culturais permitirá discutir em termos empíricos não somente a pertinência e universalidade das concepções piagetianas sobre as relações entre valorizações afetivas e a inteligência, mas, também, a legitimidade de se estudar o desenvolvimento psicológico por meio das representações de contos de fadas clássicos.

 

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Endereço para correspondencia
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Cidade Universitária
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Tel.: +55-11 3091-4355
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E-mail: mtdesouza@usp.br

Recebido em 09/05/05
Revisto em 03/10/05
Aceito em 10/10/05

 

 

1 Com a colaboração de Marcelo Luiz Caleiro Wild e Veiga (Mestrando do IPUSP)

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