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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.55 n.123 São Paulo dez. 2005

 

IN MEMORIAM

 

Pioneirismo na ciência e na psicologia: Carolina Martuscelli Bori (1924-2004)

 

Pioneer in science in psychology: Carolina Martuscelli Bori (1924-2004)

 

 

Gerson Yukio Tomanari1

Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo

Endereço para correspondencia

 

 

Professora Maria Amelia Matos (1939-2005) e Professora Carolina M. Bori (1924-2004), amigas e companheiras, em São Francisco, 1996.

 

Foi um ano de greve na Universidade de São Paulo. Estávamos em meados de setembro, quando a professora Carolina e eu ainda concluíamos as aulas iniciadas no primeiro semestre da disciplina de pós-graduação “Seminários de Pesquisa em Aprendizagem”. Não imaginávamos, mas aquela foi a última aula desta eterna educadora, que veio a falecer semanas depois, no dia 5 de outubro de 2004, aos oitenta anos de idade.

A professora Carolina formou-se em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1947. Na pós-graduação, foi estudiosa de Kurt Lewin, tendo cursado o mestrado na New School for Social Research de Nova Iorque, em 1952, sob a orientação de Tamara Dembo, e o doutorado na USP, em 1954, sob a orientação de Annita de Castilho e Marcondes Cabral (Martuscelli, 1957; 1959). Foi docente da USP desde 1948, instituição que lhe concedeu o título de Professora Emérita em 1994.

Pioneira. A professora Carolina foi uma verdadeira bandeirante ao militar permanentemente pelo desenvolvimento brasileiro da Ciência, da Psicologia, da Psicologia como Ciência e Profissão, da Análise do Comportamento. Reconhecida e premiada por isso (American Psychological Association, 2002; Ordem Nacional do Mérito Científico, classe Grã-Cruz, 2005), muitos fatos que marcaram a sua densa história de vida são suficientemente eloqüentes e a tornam um ícone de que a Psicologia deve se orgulhar.

Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a professora Carolina assumiu funções de primeira secretária (1973-1977), vice-presidente (1977-1981/1981-1986), presidente (1985-1989) e presidente de honra (1989), tendo acompanhado esta Sociedade e, portanto, a evolução da ciência brasileira, por mais de três décadas. Enfrentou fatos políticos difíceis no país e, durante o período da ditadura, ajudou a configurar a SBPC como uma referência de resistência acadêmica e intelectual (SBPC, 1998).

Na Psicologia, foi sócia fundadora da Sociedade de Psicologia de São Paulo, participou de três diretorias e a presidiu no biênio 1960-1961. Nesta ocasião, contribuiu significativamente para a regulamentação da profissão de psicólogo (a propósito, ela era a detentora do registro profissional número um no Ministério da Educação e Cultura - MEC), bem como para a criação do currículo mínimo para o ensino de Psicologia (Lei 4.119 de 1962)2. Fato importantíssimo para a consolidação da profissão de psicólogo por meio da fundamentação do seu ensino, em bases nacionais, e, sobretudo, em bases científicas. Ao longo dos anos, a professora Carolina teve o privilégio de acompanhar o desenvolvimento e o crescimento da Psicologia em nosso país. Ela viu florescer o primeiro curso de graduação em Psicologia (o curso da USP, iniciado em 1958), assim como os mais de 150 cursos que o seguiram. Consciente e preocupada com a baixa qualidade do ensino no país, ela acompanhou o envelhecimento do currículo mínimo. Nesse tocante, detentora de uma perspectiva singular da Psicologia nacional, a professora Carolina participou muito ativamente dos trabalhos da Comissão de Especialistas no Ensino de Psicologia (Ministério da Educação) que elaborou as atuais Diretrizes Curriculares, assim como atuou com muita propriedade e adequação sobre processos de autorização, acompanhamento e avaliação de cursos de graduação em todo o país.

Na pós-graduação, a professora Carolina ajudou a fundar e foi a primeira presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (1984-1986). No Instituto de Psicologia da USP, conjuntamente com o professor Walter Hugo Cunha, criou a pós-graduação que, hoje, encontra-se sob as bases sólidas que ela ajudou a construir e a consolidar ao longo dos quinze anos em que a coordenou (Morais, 1999). Essa larga experiência a professora Carolina transpôs nacionalmente, por exemplo, quando atuou junto à Capes nas Comissões de Implantação do PADCT (Programa de Apoio à Capacitação Docente e Técnica) e de Acompanhamento e Avaliação de Cursos de Pós-Graduação.

A participação ativa da professora Carolina em associações científicas confunde-se positivamente com o próprio desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão (Morais, 1999). A professora Carolina presidiu a Associação Brasileira de Psicologia (1954-1955/1963-1965) e a Associação de Modificação do Comportamento (1969-1973) em contextos que, diferentemente do que temos hoje, eram marcados por terrenos nunca antes percorridos e, portanto, exigiam coragem e espírito de liderança para o desbravamento e para a construção. Fruto disso pode-se ver no importante papel que a Sociedade Brasileira de Psicologia (presidida pela professora Carolina entre 1992-1993) desempenha hoje no cenário nacional, resultado certo de suas contribuições desde o tempo da Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto, antecessora da SBP.

Além das suas significativas contribuições para a Universidade de São Paulo, a professora Carolina deixou marcas positivas em inúmeras instituições de ensino e pesquisa. Na Universidade de Brasília, em particular, compôs a equipe convidada pelo professor Darcy Ribeiro para que, no início da década de 1960, criasse o Departamento de Psicologia. A partir da concepção à época inovadora da UnB, a professora Carolina imprimiu naquele projeto a visão de que ensino e pesquisa são indissociáveis na formação do psicólogo. O projeto foi frustrado pela ditadura militar (Keller, Bori, e Azzi, 1974), mas, felizmente, a marca da professora Carolina nunca o deixou. Em 2000, a UnB concedeu o título de doutora Honoris Causa à professora Carolina (Feitosa, 2005), título também concedido pela Universidade Federal de São Carlos em 2003 (Souza, 2005).

A propósito, o espírito democrático era parte da professora Carolina. Ela era uma defensora dos direitos humanos. Fez parte da primeira diretoria da Associação de Docentes da USP (ADUSP), em 1976. Anos antes, por volta de 1968, exerceu papel central no movimento de democratização da universidade, ocasião em que se deu a reforma universitária que resultou no fim das cátedras na USP.

A professora Carolina de fato militou em favor da ciência, da educação e da sociedade. Coordenou o projeto “Estação Ciência” (1990-1994), hoje uma referência nacional para a divulgação e o ensino de ciências. Na SBPC, fez surgir projetos como “Ciência Hoje”, “Ciência Hoje das Crianças”, “Ciência Hoje pelo Rádio”. Até o seu falecimento, encontrávamos a professora Carolina no NUPES (Núcleo de Pesquisa para o Ensino Superior), local em que ela generosamente recebia, com um sorriso aberto, quem quer que a procurasse para conversar sobre pesquisa, ensino, educação, ciência, Psicologia – ou, simplesmente, para vê-la e cumprimentá-la.

A professora Carolina era verdadeiramente uma cientista e assim foi reconhecida em diversas áreas do conhecimento – biológicas, humanas, exatas. Na Psicologia, era impecável no respeito à diversidade do pensamento. Foi assim que ela orientou, com muita competência e propriedade, mais de 50 dissertações de mestrado e 50 teses de doutorado (certamente a lista de publicações da professora Carolina seria bem mais extensa, caso ela aceitasse ver o seu nome como co-autora dos trabalhos dos seus alunos). Esse grande número de orientações possui uma enorme relevância em si, pois a professora Carolina soube ser generalista no momento em que o desenvolvimento da Psicologia assim o requeria. Em um cenário de poucos doutores e muitas áreas de pesquisa para serem estabelecidas. a professora Carolina formou recursos humanos que se espalharam por todo o Brasil, multiplicando conhecimentos em diversas áreas da Psicologia, bem como profissionais e pesquisadores, muitos dos quais hoje lideram a Psicologia nacional.

Apesar desta impressionante capacidade de fomentar e difundir diferentes áreas do conhecimento, a professora Carolina é motivo de muito orgulho para a Análise Experimental do Comportamento, área que ela ajudou a introduzir no Brasil e a fortalecer ao longo dos anos (Matos, 1996a). A professora Carolina recebeu o então professor visitante, Fred Keller, quando de sua vinda ao país no início da década de 1960 para ministrar um curso na USP (ver Todorov, 1996, para conhecer o legado do professor Keller ao Brasil). A área foi então criada e nunca mais parou de crescer. Em companhia do professor Keller e do colega Rodolpho Azzi, a professora Carolina contribuiu para o desenvolvimento do Sistema Personalizado de Ensino (PSI), que há tempos ultrapassou os limites da Psicologia como método de ensino focado no aprendiz (Bori, 1974; Sherman e Keller, 1974).

A professora Carolina deixa saudades. A sua firmeza mesclada a serenidade e doçura eram impressionantes (há uma descrição muito bonita e precisa das características pessoais da professora Carolina feita pela amiga Deisy das Graças de Souza da UFSCar; ver Souza, 2005). A convivência com ela era marcada pela seriedade com que sempre ouvia e falava; nada parecia inconseqüente ou trivial. Essa era uma das características que mantinha em comum com Maria Amelia Matos (1939-2005), companheira de longa e admirável amizade (Tomanari, 2005).

Termino com as recordações que me trazem a foto da professora Carolina, tirada em 1996, ocasião em que estávamos em um congresso na cidade de São Francisco. Dessa época, guardo a agradável lembrança de ter percorrido algumas das ruas riscadas do mapa turístico da cidade, em companhia da professora Carolina e da amiga Maria Amelia, em busca de um presente encomendado pelo neto da professora Carolina. Deixa muitas saudades a personalidade eternamente surpreendente e jovial da nossa querida mestre.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bori, C.M. (1974). Developments in Brazil. In: F. S. Keller &J. G. Sherman (orgs.), PSI - The Keller Plan Handbook (pp. 65-72). Menlo Park, CA: W. A. Benjamin.

Fapesp (Novembro, 2004). Engajamento incansável. Pesquisa Fapesp, 5, 35.

Feitosa, M.A.G. (2005). Carolina Bori recebe o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 1, 2, 263-267.

Keller, F.S.; Bori, C.M. &Azzi, R. (1964). Um curso moderno de Psicologia. Ciência e Cultura, 16, 4, 379-397.

Keller, F.S.; Bori, C.M. &Azzi, R. (1964). Um curso moderno de Psicologia. Ciência e Cultura, 16, 4, 379-397.

Martuscelli, C. (1957). Estudo psicológico do grupo. In: A aparição do demônio no Catulé - estudos de sociologia e história (pp. 84-125). São Paulo: Editora Anhembi.

Matos, M. A. (1996a). Contingências para a análise comportamental no Brasil: Fred S. Keller. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12, 2, 107-111.

Matos, M.A. (1996b). Psicologia USP, 9, 1.

Morais, S.T.P. (1999). Professores universitários e psicólogos contam as suas vidas. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia, USP, São Paulo.

SBPC (1998). Cientistas do Brasil. São Paulo: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Sherman, J.G. &Keller, F.S. (1974). The Keller Plan Handbook. Menlo Park, CA: W. A. Benjamin.

Souza, D.G. (2005). Saudade de Carolina. Contexto ABPMC, 30. Disponível em http://www.abpmc.org.br/boletim/carolina_1.htm (13/04/ 2006).

Todorov, J.C. (1996). Goodbye teacher, good old friend. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 66, 7-9.

Tomanari, G.Y. (2005). Maria Amelia Matos (1939-2005): generosidade, competência e liderança. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21, 2, 255-256.

 

 

Endereço para correspondencia
Av. Prof. Mello Moraes, 1721
05508-030 São Paulo-SP
Tel.: +55-11 3091-1906
Fax.: +55-11 3091-4357
E-mail: tomanari@usp.br

Recebido em: 18/04/2006
Aceito em: 20/04/2006

 

 

1 Os dados biográficos aqui apresentados foram obtidos, em grande parte, do volume especial da revista Psicologia USP (1996b) que, organizado por Maria Amélia Matos, traz depoimentos de pessoas que conviveram com a professora Carolina Bori.
2 Recomendo a leitura da entrevista da professora Carolina, registrada na tese de Sara Morais (Morais, 1999), a respeito dos fatos que fizeram parte desse importante momento da Psicologia brasileira.

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