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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.55 n.124 São Paulo jun. 2006

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O papel da diferença na construção da identidade1

 

The role of difference into the identity construction

 

 

Marian A. L. Dias Ferrari

Universidade Presbiteriana Mackenzie

 

 


RESUMO

O trabalho teve por objetivo realizar uma revisão do conceito de identidade, apontando para o papel do reconhecimento da diferença neste processo. A abordagem vai desde as concepções psicanalíticas de delimitação do ego corporal, passando por contribuições da teoria crítica, bem como da Psicologia Social para refletir sobre o papel da separação entre natureza e cultura na constituição da identidade bem como a produção de identidade na cultura narcisista. Como fio condutor desta abordagem, constata-se que a capacidade em relacionar-se com a diferença e o não-eu constitui-se em ponto essencial na produção deste processo identitário, estabelecendo-se, portanto, que a falta de contato com o outro e o reconhecimento das diferenças podem acarretar falhas no processo de produção da identidade.

Palavras-chave: Identidade, Diferença, Preconceito, Teoria crítica, Psicanálise, Narcisismo.


ABSTRACT

The article aims to review the concept of identity, pointing to the role of difference recognition in this process. The analysis includes the psychoanalytical conceptions of corporal ego limitation, passing through contributions of the critical theory and social psychology as well, to reflect upon the role of nature and culture separation on the construction of identity. It also reviews some most recent ideas of identity production into the narcissistic culture. The ability to deal with the difference and the opposite self are pointed out by the authors reviewed as key elements to the production of this identity process, hence establishing that the lack of contact with the other and the absence of differences acknowledgement may impair the construction of identity.

Keywords: Identity, Difference, Prejudice, Psychoanalysis, Critical theory, Narcissism.


 

 

O cenário no qual se insere o processo de produção de identidade como um dos elementos formadores da subjetividade aponta para a idéia de contágio. A incorporação de modos de ser ocorre atualmente de forma rápida pelo contato entre grupos, indivíduos e bens de consumo. Em decorrência das alterações extremas pelas quais o processo de produção de modos de existência tem passado em um intervalo curto de tempo na história, novas redes de relações têm se constituído como importantes pontos de apoio na construção da subjetividade. Se até bem pouco tempo atrás tais processos se davam principalmente por transmissão através de parentesco, filiação e demais forças verticais (nas instituições como a família e o Estado, por exemplo) atualmente outras forças (como os meios de comunicação) contaminam os modos de ser de forma horizontal, propondo novas situações para a formação da subjetividade (Delleuze e Parnet, 1980). Diante de tal transformação, torna-se necessária a retomada, dentro do campo de conhecimento da Psicologia, do conceito de identidade, mais especificamente no que diz respeito ao papel do reconhecimento do outro e da diferença dentro deste processo. Este ensaio busca refletir sobre o tema transitando entre os campos da Psicanálise, da teoria crítica e da Psicologia Social.

Tradicionalmente, a noção de identidade traz a idéia de algo idêntico a si mesmo presente, por exemplo, nas equações matemáticas e na lógica formal. Esta noção tem seu correspondente na Psicologia, quando ela considera a repetição quer dos comportamentos, quer dos aspectos emocionais como traço de identidade, associando-o a uma suposta natureza que remeteria à imutabilidade no modo de ser dos sujeitos. Porém, a pergunta sobre quem se é, só pode ser compreendida diante da multiplicidade do mundo (Schmidt, 1997). Desta forma, a questão sobre a identidade no campo da Psicologia se dá tanto pelo rompimento com a unicidade e mesmidade encontradas na natureza como pela constatação de sua mutabilidade.

Adorno (1985) ilustra tal rompimento nos lembrando da Odisséia vivida por Ulisses. No final da longa jornada do herói, que busca (re)conquistar sua identidade, é necessário que ele negue parte de quem foi, parte de seu eu, disfarçando-se. O disfarce acaba por revelar a Ulisses suas facetas até então desconhecidas. De modo geral, as aventuras dos heróis gregos nos remetem a este tipo de situação: ao se tornar autônomo frente ao destino (ou seja, às forças da natureza) o herói se descobre, de forma renovada. Crochik (1997) nos lembra que a natureza, aqui, é tomada em seu caráter mais abrangente e se refere também aos desejos e impulsos presentes no próprio homem. Trata-se, portanto, da eterna díade natureza-cultura e da relação estabelecida entre ambas.

Porém, o processo de constituição da identidade não se traduz apenas pelo domínio da natureza, como resposta ao medo e ao desconhecido nela depositados. Ao domesticá-la e representá-la (seja na ciência ou no senso comum) a natureza transformada emobjeto da cultura aponta para uma cultura também repetitiva em seus modos de pensar e ditar comportamentos. O processo de constituição de identidade necessita de um ‘entre’, uma suspensão no tempo e no espaço que não se restringe quer ao domínio da natureza, quer à repetição promovida pela cultura. Sob este ponto de vista, é a própria relação dialética com o conflito entre natureza e cultura, entre repetição e elaboração e a superação destes impasses através da ruptura que gera o processo de produção de identidade.

 

IDENTIDADE, PERSONAGEM SOCIAL E POLÍTICA

O conflito entre natureza e cultura não se dá apenas em termos individuais, como um trabalho psicológico solitário. A busca pela identidade pessoal é a encarnação de todo um complexo sistema de relações sociais presentes antes mesmo da existência do sujeito no mundo. Sob este aspecto, trata-se de uma questão política, uma vez que a ideologia presente no tecido social toma corpo no modo como se constituem as identidades. As redes sociais, o contexto e as forças presentes nas relações estabelecidas são fatores poderosos capazes de realizar ou paralisar reposições constantes das personagens que nos atravessam. Tais personagens estão embebidas da ideologia presente em um dado contexto histórico e social incorporado ao processo de produção de identidade. Ciampa (1987) vai denominar “personagem” exatamente esta atualização social de modos de ser. A escolha do termo aponta para a compreensão do autor de que se tratam de máscaras, construções datadas no tempo e no espaço. Apenas com o auxílio destas personagens é que ocorre o trânsito entre a aparência do mesmo e a metamorfose, em constante alternância. Assim, a transformação é movimento constante na produção da identidade na qual, para dar conta desta metamorfose, as personagens se articulam sucessivamente.

O autor também aponta para a dialética presente na “metamorfose que é a identidade” (Ciampa, 1987, p.128). Num primeiro plano, a identidade pode ser entendida como traço estático capaz de definir os sujeitos ao longo da vida, distinguindo-o dos demais. Porém, identificar-se também significa tornar-se igual ao outro. Igualdade e diferença acontecendo ao mesmo tempo. Um exemplo de Ciampa nos ajuda a compreender a questão: o nome. O prenome me identifica, nele me reconheço como único. Mas também possuo um sobrenome que provoca a diluição dentro da família a qual pertenço. Tanto a singularização quanto a simbiose provocadas por meu nome completo ajudam a formar a identidade. E é esta aparente contradição entre os significados da identidade que nos mostra o movimento envolvido nos modos de produção da identidade nos quais as articulações da diferença e da igualdade se atualizam no sujeito.

Ao enfocar o processo de produção, estabelece-se uma visão da identidade que ultrapassa a representação estática, uma visão em que as diversas personagens são parte deste processo, numa constante atualização. Neste sentido, a identidade implica tornar-se singular através da criação de múltiplas e sucessivas personagens numa orquestração de igualdades e diferenças perante si mesmo e o outro através da história. Dito de outro modo, as múltiplas relações e seus contrastes propiciados pelo contexto convocam as personagens, ressaltando o caráter relacional da identidade (Schmidt, 1997). As personagens encenadas pelo sujeito ao longo de sua história estão diretamente relacionadas com o poder do sujeito diante de suas personagens e com o contexto em que ele se insere. A cristalização, a protelação das transformações (inerentes a qualquer sujeito) aponta para a perda de potência do sujeito ou o seu impedimento por parte do contexto em que ele se encontra. Assim, para pensarmos sobre o processo de produção de identidade, temos de pensar, ao mesmo tempo, naquilo que se repete (por compulsão) e na imprevisibilidade. Assim, a identidade possui:

“elementos visíveis e invisíveis, constantes e imprevisíveis, sociais e individuais, manifestos e ocultos, universais e particulares, permanentes e em mutação” (Crochik, 1997, p. 57).

 

IDENTIDADE E DIFERENÇA

A riqueza de informações, a facilidade de comunicações com as mais diversas partes do planeta de forma quase que instantânea são elementos de contágio destas redes formadas por coletivos, grupos e instituições que acabam por afetar em muito a formação daquilo que somos e pensamos coletivamente. Sob este ponto de vista, ocorre um paradoxo: mais e mais prevalece a noção de sujeito como individual, solitário e indiviso como se estivéssemos diante de um conjunto (mera soma entre as partes) de isolamentos.

Por esta característica, alguns afirmam que estaríamos diante da cultura do narcisismo (Costa, 1986) na qual a posição de isolamento seria tida como um valor a ser alcançado. Porém, na formação deste sujeito tão isolado, freqüentemente descrito como individualista, cada vez mais se reconhece o contágio de mecanismos coletivos de massa como, por exemplo, a globalização da cultura representada pelos grandes conglomerados de comunicação e assim por diante. Único, mas igual a todos; diferente como todo mundo quer ser, são definições peculiares para o modo como estamos vivendo a contemporaneidade. Perde-se de vista a pluralidade presente em nós e nas relações que se atraem e se repelem de acordo com o contexto. A atenção se fixa na unidade, na homogeneidade. Diante desta aparente contradição, mais e mais se descortina a questão do encontro com a diferença: como pensar a identidade sem nos encontrarmos com o diverso?

Matos (1998) afirma que, para haver diálogo na sociedade e entre culturas, é preciso esquecer-se da própria origem. Trazendo a questão para o plano da aquisição de um sentimento de identidade, poderíamos pensar que para haver diálogo entre sujeitos, grupos e sociedade, todos teriam de abandonar-se num esquecimento de si capaz de permitir o encontro com o diverso. A autora aponta para o fato de que a própria palavra diálogo" significa ao mesmo tempo o que une e o que distingue os contrários.

Retomando brevemente os processos psíquicos necessários para a formação do ego, a Psicanálise vai apontar para o fato de que apenas quando o bebê passa a reconhecer todo o seu entorno como não-eu, a partir do limite epitelial dado pelo corpo, é que se inicia a formação do ego propriamente dita (Freud,1996). É como se o bebê estivesse diante de um espelho: o outro atua sob a forma de um ‘eu invertido’ capaz de, ao mesmo tempo, delimitar e pluralizar o eu. Os laços de confiança se estabelecem para que o sujeito se aproxime do outro e do mundo. Se, ao contrário, ele se fixa à origem, diminui o contato com o outro, diminuindo o seu ser (Matos, 1998).

Em termos sociais, temos a mesma configuração: é necessário haver um outro que dê significado e sentido àquele bebê dentro de seu grupo para que ele passe então a ser nomeado e adquira existência. A repetição do mesmo, ainda dentro do pensamento psicanalítico, é associada a uma tendência à inércia, à imobilidade e à morte. Por outro lado, a tendência à vida se manifestaria no encontro com o diverso e a partir disto na proliferação de modos renovados de se posicionar no mundo. O encontro com o diverso, com a diferença, pode tanto se apresentar no outro – na criança com deficiência que vemos passar na rua – como no próprio sujeito, ou seja; naquilo que nele se diferenciou do já conhecido.

Retomando a idéia de um esquecimento da origem de si como condição necessária para o diálogo com o outro, é este movimento de esquecimento que torna possível o aparecimento da diferença no próprio sujeito. O movimento de duplicar-se necessita, além do amparo do outro, da passagem do tempo. Dentro desta perspectiva, Matos (1997) aponta para o movimento de misturar-se, que é inaugurado ao assumir a diferença como condição de existência perante o outro, e como esta posição amplia a própria identidade, permitindo metamorfose e plasticidade consigo e com o outro.

O encontro com o diferente também passa pelo encontro com um corpo diferente. O corpo, sua existência visceral bem como a experiência sensível dos limites epiteliais com o outro, é elemento integrante na emergência de uma imagem de si (Costa, 1986). O corpo, somado ao tempo (a idéia de permanência e de futuro) e à história das suas mutações inerentes à passagem cronológica da vida, é fator fundamental neste processo.

O que ocorre é que atualmente o encontro com a diferença nem sempre é vivido como potência de vida. Ao contrário, diante da escassez de possibilidades de ser e de parecer, o terror e a negação apresentam-se como freqüentes. Aqui, novamente, há a convergência de processos sociais e psicológicos: a valoração negativa dada a tudo que não é igual a mim encontra apoio tanto ‘dentro’ quanto ‘fora’ do sujeito. Embora seja necessário o encontro com o não-eu para o estabelecimento do eu, temos também atuantes forças que nos empurram para a mesmice, para a repetição. Num mundo controlado pelo capital, em que a lógica das ciências e dos saberes se submete às leis do valor e do mercado, perde-se este traço de humanidade que constitui a capacidade de ampliar-se diante do encontro com o diverso. Introjetam-se como traços superegóicos valores cuja principal ameaça é o isolamento, a exclusão através da perda de amor do outro. Diante destas condições, os laços de confiança, de inventividade e de exploração do desconhecido não têm espaço para se realizar. Logo, a singularidade necessária ao processo de individuação não acontece.

Com o impedimento do encontro com o outro através desta extrema identificação com os valores sociais, temos o campo propício para a introjeção do preconceito. O preconceito, manifestação individual de origem social, se dá no cotidiano das relações a partir de generalizações já consagradas pelos estereótipos presentes na cultura em que vivemos. Deste modo, o desenvolvimento de atitudes hostis diante de determinado objeto, ao mesmo tempo em que responde a conteúdos psíquicos específicos do preconceituoso, se alimenta tanto dos afetos presentes no indivíduo como também dos estereótipos vindos da cultura na qual este se encontra. A cultura oferece valores que, ao serem introjetados, são mediados pela percepção e pelas necessidades do indivíduo, o que significa que nem sempre são compatíveis com a realidade e por esse motivo, o preconceito está mais relacionado a aspectos psíquicos da formação do eu, em que o mecanismo de defesa da introjeção é acionado, do que a características supostamente existentes no alvo (Crochik, 1997).

Os momentos de conflito e crise pelos quais passamos ao longo da vida em que somos confrontados pelas demandas (psicológicas e sociais) do que devemos ser e as constatações daquilo que não somos, atuam como uma via de mão dupla: ora são facilitadores propiciando o reconhecimento de si como distinto do outro e, portanto, afastam o preconceito como forma de olhar e agir com o outro e para o mundo. Ora a pressão causada pelo conflito atua no sentido de fragilizar o sujeito, buscando como defesa contra tal fragilidade a indiferenciação, a homogeneidade, propiciando a introjeção do preconceito como lugar seguro para se relacionar com o outro (neste caso o igual a si mesmo) e com o mundo.

 

IDENTIDADE: FICÇÃO

Será que adquirimos uma identidade ao longo da vida? Para lidar com a realidade pragmática necessitamos construir certas ficções. Por exemplo, se lembramos todo o tempo da finitude da existência, complica-se em muito a mobilidade e a ação que devemos realizar no mundo. Para nos conduzir, construímos a ficção da eternidade. Diante de tal necessidade, a noção de identidade, não seria também uma ficção? A mistura de múltiplos afetos e personagens vividos em constante metamorfose se mostra insustentável na vida consciente cotidiana que requer linearidade e congruência. É bom esclarecer que a ficção é aqui compreendida dentro da noção psicanalítica, concebida como uma construção tão necessária quanto o contato com a realidade externa e que também é parte da realidade psíquica (Costa, 1986). Neste sentido, a idéia de identidade como ficção seria bem-vinda para a manutenção da vida em movimento. Porém, manter tal ficção, não significa perder a possibilidade de escuta para o inesperado, para o que se diferencia do já conhecido. Vale lembrar que deveríamos também ser capazes de silenciar este aspecto mais prático da noção ficcional de uma identidade estática, mantendo-o em suspensão, por alguns instantes, para que seja possível a partir deste lugar de reflexão e de encontro com a multiplicidade de si e do outro, entrever nossas interrogações e nosso desconhecimento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Adorno, T.W. (1985). Dialética do esclarecimento. (G. A. Almeida, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Original publicado em 1944).        [ Links ]

Ciampa, A.C. (1987). A história do Severino e a estória de Severina. São Paulo: Brasiliense.        [ Links ]

Costa, J. F. (1986). Violência e psicanálise. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.        [ Links ]

Crochik, J. L. (1997). Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe.        [ Links ]

Deleuze, G. & Parnet, C. (1980). Diálogos. (J. Vázquez, trad.). Valencia: Pré-Textos. (Original publicado em 1977).        [ Links ]

Freud, S. (1996). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In: S. Freud, Obras Completas. (Vol XII; J. Salomão, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1911).        [ Links ]

Matos, O. (1998). Sociedade, tolerância, confiança, amizade. Revista USP, 37, 92-101.        [ Links ]

Schmidt, M. L. (1997). Identidade, pluralidade e diferença: notas sobre Psicologia social. Boletim de Psicologia, XLVII, 106, 57-72.        [ Links ]

 

 

Recebido em 19/04/2005
Revisto em 27/03/06
Aceito em 30/03/06

 

 

1 Este trabalho é parte da Tese da autora: Ferrari, M. A. L. D. (2004). Preconceito na publicidade televisiva: vozes e olhares de adolescentes. Tese de Doutorado. Instituto de Psicologia da USP, São Paulo. Endereço para correspondência: Av. Brigadeiro Faria Lima, 1616, cj.610. São Paulo S.P. CEP: 01451-001; E-mail: mariandias@uol.com.br

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