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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.56 no.125 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

Ciclo básico de alfabetização e heterogeneidade: os desafios da prática pedagógica

 

The challenges of practical pedagogy in heterogeneous literacy classes

 

 

Marli Lúcia Tonatto Zibetti*

Universidade Federal de Rondônia – Campus de Rolim de Moura

 

 


RESUMO

Utilizando instrumentos da pesquisa do tipo etnográfico, este trabalho tem por objetivo discutir as implicações para a prática pedagógica da implantação do Ciclo Básico de alfabetização em uma escola pública da rede estadual de ensino em Rolim de Moura – RO. Os dados analisados revelam que a suposta continuidade de uma professora com a mesma turma de alunos durante os dois anos iniciais do ensino fundamental prevista pelo Ciclo, não ocorre na realidade pesquisada, uma vez que há uma intensa rotatividade de crianças devido às condições sociais e econômicas das famílias atendidas. A heterogeneidade do grupo, em decorrência do alto índice de transferências recebidas e expedidas, depara as professoras com o desafio de trabalhar com classes heterogêneas. Desafio enfrentado solitariamente pela docente, uma vez que faltam condições materiais e de apoio pedagógico para o desenvolvimento de uma prática pedagógica mais adequada às necessidades daqueles alunos.

Palavras-chave: Professor, Aprendizagem, Sistema educacional.


ABSTRACT

Based on ethnographic research, we discuss the implications of the Basic Cycle (Ciclo Básico), meaning the first two school years, to the pedagogical practice into a public school of the state system in the city of Rolim de Moura, interior of Rondonia - Northwestern Brazil. The data analyzed reveal that the expected continuous work of the same teacher with the same group of students during the two first years of school does not really happen. The great mobility of children due to social and economic conditions makes the teacher work with different children every year. The heterogeneity of the group, due to the high number of transferred children, brings as a consequence very heterogeneous classes to teach. This challenge is faced solitarily by the teacher, once there is no help and no pedagogical support for the development of a pedagogical practice more adequate to the necessity of the students.

Keywords: Teacher, Learning, Educational system.


 

 

INTRODUÇÃO

O fracasso do sistema educacional em alfabetizar as crianças de classes populares no Brasil suscita a necessidade de conhecer e compreender as complexas questões envolvidas no ensino da leitura e da escrita. Questões estas que muitas vezes são discutidas isoladamente. Ora se enfatiza a necessidade de formação dos professores, ora se culpabiliza os próprios aprendizes por seus “problemas de aprendizagem” ou, ainda, implantam-se políticas públicas por decreto desconsiderando-se a imbricação de todas estas e outras variáveis no processo de escolarização (Souza, 2002; Viégas, 2002; Barreto e Souza, 2004; Barreto e Souza, 2005).

As práticas pedagógicas desenvolvidas em classes de alfabetização ainda são pouco conhecidas pela pesquisa. Acreditando que este conhecimento seja fundamental para que se possa construir um projeto educacional que considere todas as variáveis envolvidas no processo de escolarização das crianças em fase de alfabetização e, principalmente, para contribuir na adequação dos projetos formativos às necessidades dos profissionais da área, a autora tem se aproximado do cotidiano das salas de alfabetização no contexto em que está inserida.

Considerando as afirmações de André (1995, p.35) de que as investigações sistemáticas sobre o cotidiano escolar devem levar em conta: “(1) o encontro professor-alunoconhecimento nas situações sociointeracionais de sala de aula; (2) as relações construídas pelos agentes da instituição escolar; e (3) os fatores socioculturais mais amplos que afetam a dinâmica escolar” a investigação voltou-se para a prática de uma professora alfabetizadora sem, no entanto, perder de vista os determinantes externos que influenciam a configuração da realidade escolar. Desta forma, ao investigar o cotidiano do trabalho docente, as dificuldades e possibilidades da prática pedagógica, buscou-se compreender que implicações tem a organização do sistema em forma de ciclos nesta realidade e como a professora lida com estas demandas.

A problemática que envolve a docência nesta realidade está relacionada à reorganização do sistema escolar em forma de ciclos. A eliminação da reprovação entre as séries, como uma medida utilizada pelo sistema educacional com vistas a enfrentar o fracasso escolar. Em Rondônia, a rede estadual de ensino implantou, a partir de 1998, o Ciclo Básico de aprendizagem, reorganizando as duas primeiras séries do ensino fundamental de forma a eliminar a reprovação entre elas, garantindo maior tempo aos alunos para o processo de alfabetização e buscando a diminuição dos índices de abandono e retenção.

Ao investigar a materialização desta política no cotidiano de uma escola pública, constatou-se que a efetivação da progressão continuada das crianças entre uma série e outra, promovida pela adoção dos ciclos, acentuou a heterogeneidade entre as crianças de uma mesma turma, obrigando os professores a trabalharem, ao mesmo tempo, com crianças alfabetizadas, crianças que estão iniciando a aprendizagem da leitura e da escrita e crianças que apresentam um domínio bastante elevado destas competências. Esta realidade é enfrentada pelas professoras que atuam nesta etapa da escolarização com o desafio de ensinar grupos de crianças que estão em diferentes momentos do processo, encontrando uma série de dificuldades para levar a bom termo a tarefa de alfabetizar.

Neste texto apresenta-se, inicialmente, o método, o campo, a professora participante e os procedimentos utilizados para a produção dos dados. Na apresentação e discussão dos resultados inicia-se com uma breve exposição sobre os objetivos e as condições de implantação do Ciclo Básico em Rondônia, com vistas a situar o contexto no qual a professora atua. Em seguida, a partir de cenas do cotidiano da sala de aula, analisam-se as alternativas criadas pela professora para atender a heterogeneidade da turma com a qual trabalha. Heterogeneidade acentuada, no contexto estudado, em função das condições sociais e econômicas da comunidade em que a escola está inserida e em decorrência da organização da escolarização em forma de ciclo.

 

MÉTODO

A investigação da prática pedagógica implica o conhecimento do contexto em que essa prática se desenvolve, uma vez que o conteúdo dessa experiência varia de escola para escola, de sociedade para sociedade e é influenciado pelas formas de transmissão do conhecimento, pela organização das atividades de ensino e pelas relações institucionais que sustentam o processo educativo na escola.

Para conhecer esse contexto torna-se necessário analisar o processo escolar como um conjunto de relações e de práticas construídas historicamente. A construção se dá como resultado de uma trama complexa de tradições históricas, variações regionais, decisões políticas e administrativas, planejamentos técnicos e interpretações particulares, feitas por professores e alunos, dos elementos em torno dos quais se organiza o ensino. A realidade escolar é, portanto, o resultado da construção cotidiana realizada pelos sujeitos concretos que convivem no contexto, envolvidos pela influência das normas oficiais e pelas dinâmicas da realidade escolar e o conjunto das práticas cotidianas que resultam desse processo é o que constitui o contexto formativo real tanto para os alunos quanto para os professores.

Em decorrência disto optou-se pela pesquisa, de cunho etnográfico, na perspectiva de Ezpeleta e Rockwell (1986) para quem os estudos do cotidiano têm como objetivo evidenciar que ao lado de uma história documentada, existe outra história e existência não-documentada da escola por meio da qual ela toma forma material, ganha vida. “A homogeneidade documentada decompõe-se em múltiplas realidades cotidianas. Nesta história não-documentada, nesta dimensão cotidiana, os trabalhadores, os alunos e os pais se apropriam dos subsídios e das prescrições estatais e constroem a escola” (p.13).

A pesquisa foi desenvolvida de agosto de 2001 a janeiro de 2003 em uma escola pública de periferia urbana, localizada no município de Rolim de Moura - Rondônia, situado a 450 quilômetros da capital, com cerca de 47.000 habitantes. Nesta realidade procurou-se investigar, a partir dos registros das observações realizadas na escola e na sala de aula, da análise de documentos coletados durante a pesquisa e das entrevistas e conversas informais estabelecidas com os diferentes sujeitos que convivem na instituição, a prática pedagógica desenvolvida por uma professora alfabetizadora, articulando os dados deste contexto com os determinantes locais, regionais e nacionais dos sistemas escolares.

A professora Marina (nome fictício) é paranaense e migrou para Rondônia em 1985. Tinha 42 anos, à época da pesquisa, e sua primeira experiência profissional ocorreu no Paraná em uma classe de alfabetização, com 16 anos de idade, quando ainda cursava a 8ª série. Desde então tem trabalhado como professora de alunos de 1ª a 4ª séries, inclusive tendo experiência com educação de jovens e adultos e Classes de Aceleração, embora em alguns períodos tenha interrompido a carreira por ter mudado para São Paulo, voltado para

o Paraná e depois migrado para Rondônia. Sua formação inicial ao Magistério deu-se por meio do curso de Educação à distância denominado Logos II (ainda no Paraná) e freqüentava o curso de Pedagogia, durante a pesquisa, por um programa especial para capacitação de professores em exercício oferecido pela Universidade Federal de Rondônia.

Acredita-se que a pesquisa qualitativa, se por um lado não pode servir para generalizações, por outro pode jogar luz e contribuir para a definição e redefinição dos vários elementos que hoje servem de base para a elaboração de pesquisas e análises mais amplas sobre a prática pedagógica desenvolvida em contextos educacionais cujos resultados precisam ser melhorados.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Ciclo Básico em Rondônia caracterizou-se como um projeto de reorientação curricular implantado para resolver o problema do fracasso no processo de alfabetização. De acordo com a Instrução Normativa nº 004/1998 em seu Art. 1º:

“O Ciclo Básico de aprendizagem se constitui numa estratégia pedagógica e organizacional, oportunizando maior tempo ao aluno para o domínio de processos de leitura, escrita e das operações matemáticas em seus aspectos fundamentais, dando continuidade ao processo educativo, num bloco único, totalizando 02 (dois anos) letivos, aglutinando os objetivos e atividades da 1ª e 2ª séries do Ensino Fundamental Regular, não havendo retenção do aluno até o final do ciclo” (Rondônia, 1998).

O Ciclo foi implantado em 1998 com a justificativa de que era necessário “minimizar os altos índices de evasão e repetência nas séries iniciais do Ensino Fundamental” e a referida instrução normativa foi reeditada praticamente sem alterações de 1999 a 2001, sob os números 001/GAB/DE/SEDUC/99 (Rondônia 1999) e 003/GAB/GE/SEDUC/2001 (Rondônia 2001).

Em 2002, a Secretaria de Educação elaborou o Projeto Caminhar CBA que visava a “implantação do sistema de ciclos, objetivando a reorganização do Ensino nas séries iniciais (1ª e 2ª série) do Ensino Fundamental das Escolas Estaduais de Rondônia” (Rondônia, 2002, p. 4), desconsiderando que o Ciclo já estava em funcionamento em várias escolas do Estado, necessitando ser avaliado e discutido e não simplesmente reimplantado por meio de outra determinação legal.

O objetivo fundamental do referido projeto, de acordo com as palavras dos próprios elaboradores era “minimizar os altos índices de evasão e repetência existentes nas séries iniciais do ensino fundamental das escolas públicas do estado de Rondônia, proporcionando ao aluno condições necessárias ao acesso, permanência e progresso escolar” (Rondônia, 2002, p. 7).

A implantação de políticas educacionais como a organização da escolaridade em ciclos e a progressão continuada, de acordo com Freitas (2004, p. 3), é parte dos embates dos anos 90 “que procuram alterar os tempos e/ou espaços da escola, na medida em que as propostas neoliberais e progressistas foram adquirindo controle sobre o aparato estatal e necessitam pôr em prática as suas idéias sobre educação.”

Para o autor, as propostas pedagógicas voltadas para a alteração dos tempos/espaços escolares, que se materializaram como políticas públicas em diferentes redes no Brasil, podem ser agrupadas em dois grandes grupos. No primeiro deles, o autor reúne as experiências norteadas pela utopia liberal de uma escola eficaz para todos cujo conceito central é o de inclusão. No segundo grupo, situa as experiências que se propõem superar a utopia liberal pela preocupação em ir além da inclusão formal, defendendo uma inclusão com qualidade, na qual necessariamente se discuta o “para quê” da inclusão. Às propostas fundadas nos esforços liberais o autor denomina progressão continuada e àquelas que buscam superar esta visão, denomina ciclos.

Na progressão continuada, segundo Freitas (2004, p.7) os problemas educacionais são tratados sob uma ótica economicista com o objetivo de liberar fluxos e enxugar custos. E, de acordo com o autor, “os liberais acreditam de fato na utopia de uma escola que ensine tudo a todos dentro do próprio sistema capitalista.” Diferentemente desta perspectiva as propostas do segundo grupo, que o autor denomina ciclos, buscam alterações nos tempos e nos espaços da escola de uma forma mais ampla, a partir de uma visão crítica das finalidades educacionais da escola. “Está em jogo mais do que simplesmente liberar fluxos, ou sair-se bem em avaliações de sistema ou, ainda, tirar a avaliação formal juntando séries em planejamentos plurianuais. Eles são mais que uma modernização-conservadora.”

No Estado de Rondônia, verifica-se a adoção do que o autor denomina progressão continuada, embora a denominação utilizada seja a de ciclos, inclusive porque coexistem duas formas de organização: os dois anos iniciais do ensino fundamental como Ciclo Básico de Alfabetização, enquanto os dois anos finais continuam organizados como 3ª e 4ª séries, não havendo, do ponto de vista pedagógico ou de gestão escolar, nenhum tipo de atendimento ou acompanhamento que diferencie as duas formas de organização a não ser a supressão de reprovação entre a 1ª e a 2ª etapa do Ciclo, com a substituição do sistema de avaliação anteriormente feito por notas, pelas fichas de acompanhamento, preenchidas bimestralmente. Desta forma, as professoras enfrentam sozinhas as dúvidas e preocupações oriundas da necessidade de ensinar e avaliar na progressão continuada do ciclo de alfabetização.

Além disso, conforme Freitas (2004), o que ocorre nesse tipo de alterações nas políticas de seriação são mudanças que se restringem ao processo pedagógico, objetivando ampliar para um número maior de alunos a aprendizagem sem, no entanto, alterar as finalidades da escola convencional e, portanto sem alterar efetivamente as condições nas quais ocorre o trabalho docente.

A constatação remete aos resultados da pesquisa de Gomes (2004, p. 48) que revela a “tortuosa trajetória das propostas à sala de aula” nas escolas brasileiras. Segundo o autor, parece ter havido uma “reinterpretação” dos ciclos “como promoção automática” e também uma “resseriação dos ciclos, retardando a reprovação.”

Uma das premissas básicas que sustentam a implantação dos Ciclos no estado de Rondônia é a continuidade das mesmas crianças, nas mesmas turmas com o mesmo professor, visando garantir a continuidade do processo de aprendizagem previsto pela progressão continuada das crianças entre uma série e outra, conforme explicitado nos documentos oficiais:

“É de fundamental importância a permanência do professor na mesma turma, ao longo do ciclo visando assegurar:
• A continuidade do processo;

Melhores condições de acompanhar o desenvolvimento dos alunos, de identificar suas necessidades e propor medidas para saná-las;
O entrelaçamento afetivo da relação aluno-professor” (Rondônia, 2002, p.22).

Ao analisar os dados de transferência da escola em que se realizou a pesquisa tornou-se evidente que na realidade em questão a “continuidade” prevista no projeto não se realiza, pois em torno de 25% das crianças do Ciclo Básico migraram de uma escola para outra nos anos de 2001/2002 e 2003 (período compreendido pela pesquisa).

Durante a permanência na sala da professora Marina, ficaram evidentes as constantes mudanças de alunos. A cada vez que uma etapa da observação era realizada percebia-se que havia alunos novos na turma e alguns alunos da professora haviam sido transferidos. O elevado número de transferências recebidas e expedidas demonstra a realidade social das famílias atendidas pela escola, as quais se deslocam constantemente em busca de trabalho. No caso da escola pesquisada, os pais mudam-se para outros municípios e/ou para a zona rural e, ao contrário do que ocorria há alguns anos atrás em que as crianças abandonavam a escola, os pais têm se preocupado em levar as transferências. Esta mudança de comportamento está relacionada a uma maior conscientização das famílias em relação à necessidade de permanência das crianças na escola, mas principalmente, pelas mudanças na legislação.

Atualmente, respaldados no Estatuto da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares acionam a justiça quando há crianças em idade escolar fora de sala de aula, levando as escolas a não mais recusarem a matrícula de alunos durante determinados períodos do ano ou por falta de vagas, conforme ocorria anteriormente. De maneira que, a partir da solicitação da família, a escola expede o documento de transferência sem exigir atestado de vaga de outra instituição como era comum em anos anteriores. Dessa forma, estatisticamente constatou-se uma redução no índice de abandono (de 3% em 2000 para 1,5% em 2003), enquanto aumentaram os números relativos às transferências e persistiram os índices de reprovação: em torno de 21% ao final do ciclo na escola pesquisada.

De acordo com informações da escola, alguns alunos acompanham os pais durante a colheita nos sítios da região e alguns retornam depois. Em algumas ocasiões, nem chegam efetivamente a freqüentar outra instituição, pois retornam com o mesmo documento expedido pela escola após 30 ou 40 dias de ausência. Quando esses alunos retornam, são rematriculados como se fossem alunos novos, nem sempre nas mesmas turmas em que estavam, por falta de vaga ou por opção de horário.

Essas ausências, ou mudanças geram uma descontinuidade nos processos de aprendizagem dos alunos, principalmente daqueles que estão em fase de alfabetização, pois as formas de encaminhamento pedagógico são bastante distintas de uma professora para outra e mais ainda de uma escola para outra, além das dificuldades de adaptação inerentes a qualquer mudança, principalmente quando envolve crianças de sete ou oito anos. E as dificuldades que esta alternância de alunos gera no processo de alfabetização, não são consideradas pelas políticas educacionais e raramente são discutidas nos projetos de formação.

A intensa rotatividade de alunos na escola pesquisada impede a continuidade do mesmo grupo durante as duas etapas do Ciclo Básico e reflete-se no andamento do trabalho pedagógico, pois implica na inserção constante de novos sujeitos, demandando da professora uma atenção especial aos novos membros, principalmente enquanto eles ainda não se apropriaram da dinâmica de funcionamento da aula.

Além da preocupação em garantir a inserção dos diversos sujeitos que entram na turma ao longo do ano e, principalmente no início da segunda etapa do Ciclo, a professora depara-se com a heterogeneidade do grupo em relação aos níveis de conhecimento de que estes sujeitos são portadores. Ao concluir a primeira etapa do Ciclo em 2001, apenas um dos alunos da professora Marina não estava alfabetizado. Ao iniciar o ano em 2002, com o ingresso de oito novas crianças em sua turma, dentre as quais sete não estavam alfabetizadas, a professora deparou-se com um quadro de dificuldades que a angustiava: “Eu não sei o que fazer”, afirmou referindo-se à necessidade de avançar com os alunos mais adiantados e, ao mesmo tempo, trabalhar com as dificuldades específicas dos que precisavam mais (Observação 12/03/2002).

Esse contexto desafiava a professora a encontrar caminhos para desenvolver seu trabalho e permitir que os alunos avançassem em seus conhecimentos e ela assumia esta tarefa com esforço e grandes dificuldades. Como não havia na escola uma prática de planejamento e discussão coletiva dos problemas enfrentados, Marina lançava mão dos saberes desenvolvidos ao longo de sua trajetória profissional e das informações recentes dos cursos de formação que estava freqüentando, nem sempre alcançando os resultados esperados e muitas vezes culpando-se por isso.

Estas questões defrontavam a professora com dilemas próprios da tarefa de educar neste contexto: como atender ao mesmo tempo e com a mesma adequação alunos já alfabetizados e alunos que ainda não liam? Como garantir que todos conseguissem apropriar-se dos conteúdos mínimos exigidos para que, dentro do tempo estabelecido pelo sistema, pudessem avançar para a 3ª série?

No próximo item, a partir de cenas recortadas das observações da sala de aula, analisam-se as dificuldades e possibilidades do trabalho pedagógico com crianças que se encontram em diferentes momentos do processo de aprendizagem da leitura e da escrita.

Atendimento à diversidade no processo de alfabetização

Com grande experiência docente e freqüentando, ao mesmo tempo, graduação em Pedagogia e um curso de aperfeiçoamento em alfabetização, a professora Marina revelava sua crença na aprendizagem das crianças e sua capacidade de mobilizar os saberes adquiridos ao longo da profissão, criando novos saberes à medida que se deparava com os desafios que a prática impunha.

Diante da heterogeneidade do grupo de alunos com os quais trabalhava, Marina fazia uma opção consciente pelo atendimento preferencial às crianças com maiores defasagens de aprendizagem. Opção esta que se materializava em diferentes encaminhamentos na prática pedagógica.

A Cena 1, a seguir, mostra alguns procedimentos construídos pela professora para atender aos diferentes grupos de crianças que tinha em sua turma. Um procedimento adotado invariavelmente ao longo do período de observação e também utilizado por professoras bem sucedidas (conforme Kramer e André, 1984): aproximar as crianças com maiores dificuldades posicionando-as em carteiras das primeiras filas na sala de aula. Ao iniciar a aula, ela chamava para os primeiros lugares as crianças que queria atender com prioridade. Às vezes explicitando para a classe esta intenção, outras vezes apenas chamando-as pelo nome e pedindo que ocupassem determinados lugares. Mas o desempenho cognitivo das crianças não era o único aspecto observado pela professora para agrupá-las. Como explicou durante conversa com a pesquisadora, utilizava também as observações que fazia constantemente sobre seus alunos para planejar os agrupamentos que propunha em aula.

 

CENA 1 – “ATIVIDADES DIVERSIFICADAS”

Às 14 horas as crianças retornaram da aula de Educação Física e a professora organizou as duplas pedindo, gentilmente, que algumas crianças trocassem de lugar. Trouxe alguns alunos que precisavam mais acompanhamento para perto dela nas primeiras carteiras da fila à sua direita. (A sala estava organizada com as carteiras dispostas duas a duas em três fileiras afastadas umas das outras). Ajustou as duplas que pensou de acordo com a afinidade das crianças e seus desempenhos.

Disse à pesquisadora depois: - “Rafaela trabalha muito bem com Bianca; O Anderson e a Inês acertam-se muito bem; O Kevin é um excelente ajudante para qualquer criança; A Lucia só trabalha com aquela colega (Andréia)”.

Depois pediu que guardassem os materiais (cadernos, lápis, borracha, lápis de cor que já estavam sobre a mesa) e cruzassem os braços para ouvir um texto que ela ia ler sobre as abelhas. O texto era da revista Globo Ciência e falava dos cuidados a serem tomados com as abelhas; que elas picam como proteção das colméias, etc.

A maior parte das crianças ouviu o texto com atenção. Algumas conversavam entre si. A professora parou uma vez e disse que depois perguntaria sobre o texto. Ao concluir a leitura e fazer algumas perguntas as crianças quiseram responder todas de uma vez. Algumas levantando o braço, mas falando ao mesmo tempo: “Eu já levei picada de abelha!” E foram breves minutos de atenção.

Em seguida, a professora distribuiu cópias do texto da poesia “As abelhas” do livro de Vinícius de Moraes (A Arca de Noé). Disse que era uma música e que depois que lessem iriam cantar e colar no livro cuja capa construíram no dia anterior. (Um livro sobre o tema Abelhas).

A sala concentrou-se no trabalho. Não havia crianças circulando. Algumas leram o texto antes e em seguida dedicaram-se a pintar o desenho (ilustrações do próprio livro de onde foi retirada a poesia). A professora circulou entre as carteiras, lendo com as crianças. A pesquisadora fez o mesmo e eles demonstraram gosto em ler o texto, rindo com expressões como “A aaaaabelha mestra...”.

A professora cantou a música com eles duas vezes.

Somente após todos terem lido, chamou a atenção deles para outra atividade. As crianças reclamaram que queriam terminar de pintar. Outras pediram para levar o texto para casa. A professora então propôs que colocassem na capa para não sujar, prendeu as folhas com um clipe (ajudada pela pesquisadora) e deixou que levassem. Deu mais alguns minutos para que pintassem e propôs o trabalho em grupos diferenciados. Antes de encaminhar esta atividade, as crianças lancharam (lanche servido pela professora e pela pesquisadora na sala) e foram para o recreio.

Às 15:50 retornaram. Propôs que o grupo à sua esquerda (várias duplas) escrevesse tudo o que sabiam sobre as abelhas. Para a dupla à sua frente, propôs a escrita com letras móveis da palavra abelha (Nilson e Danilo). Entregou para algumas duplas um envelope com as letras em número exato para montar palavras e foi questionando as crianças até chegarem à forma convencional (três duplas) (Observação, 12/03/2002).

Após encaminhar as atividades com a sala toda, começava o atendimento nas carteiras, sempre pelas crianças com maiores dificuldades, evidenciando sua preocupação constante com este grupo, inclusive esforçando-se para preparar atividades diferentes para atendê-los. Este esforço da professora em propor atividades adequadas às necessidades de seus alunos revelou-se como um grande desafio em sua prática: “Mas o que eu vejo que eu ainda tenho bastante dificuldade, ainda, é com trabalho diferente. Eu já pelejei com essa questão, mas não tem como, mesmo!” (Entrevista, jan. 2004).

O desenrolar da aula, presente na Cena 1, exemplifica como, nas duas atividades iniciais, todas as crianças foram envolvidas. Durante a leitura da música pelas duplas, Marina acompanhava nas carteiras, garantindo, por meio deste procedimento, que as crianças que ainda não estavam alfabetizadas também tivessem acesso ao conteúdo do texto que haviam recebido e não ficassem limitadas a pintar o desenho que o acompanhava. Esta atitude foi observada em muitas oportunidades e mostrou que para a professora as atividades precisavam fazer sentido para os alunos e por isso não exigia que fizessem a tarefa apenas por fazer, mas sim compreendendo o que estava sendo solicitado.

No terceiro momento, foram propostas três atividades distintas para os diferentes níveis de desempenho existentes no grupo. Enquanto Nilson e Danilo montavam a palavra com letras móveis, outras três duplas montavam palavras com um grau de desafio extra. Ao fornecer palavras recortadas com letras em número exato, a professora os desafiava a escrever com todas as letras exigidas pelo sistema alfabético, o que normalmente não ocorre com crianças na hipótese silábico-alfabética. Ao terceiro grupo, a tarefa atribuída foi registrar seus conhecimentos sobre as abelhas, tema em discussão naquele dia.

Ao fazer um levantamento dos aspectos desfavoráveis à implantação dos ciclos por meio de evidências de várias pesquisas, Gomes (2004, p. 44) destaca que “o trabalho comum para toda a classe, sem atividades diferenciadas (persistência do modelo frontal)” aparece como um dos fatores apontados pelas pesquisas. No trabalho de Marina, pode-se compreender o esforço que este tipo de organização didática demanda por parte dos professores e a importância de poder estudar esta problemática durante os cursos de formação, pois de acordo com a professora, esta foi uma das maiores contribuições do curso de aperfeiçoamento em serviço que freqüentava, ao contrário da ênfase à teoria dada pela graduação em Pedagogia.

Como exemplificam os encaminhamentos presentes na Cena 1, um trabalho desta natureza exigiu por parte da professora a articulação de inúmeros fatores na produção de uma ação nova: a definição da seqüência de atividades para a aula, a preparação de materiais adequados, a antecipação de formas de encaminhamento, inclusive pensando nos agrupamentos propícios para aquele trabalho e no desempenho das crianças específicas envolvidas nas tarefas.

Embora se esforçando para atender de forma equilibrada os diferentes grupos que compunham sua turma, Marina não conseguia garantir, a contento, o atendimento à diversidade de necessidades dos alunos e em decorrência de sua opção pelas crianças com desempenho mais elementar, considerou que não conseguiu o mesmo atendimento em relação aos mais adiantados, como afirmou na última entrevista realizada:

“Porque ali dentro da sala, só um professor, ele não dá conta. Porque tem horas que são três níveis. Até pra você estar agrupando... então o que eu faço: sempre um tem que estar com prejuízo. Os que eu vejo que estão com mais prejuízo hoje na minha turma são os alfabéticos. Porque você precisa estar dando atenção pros outros. E esses [os alfabéticos] poderiam crescer muito mais” (Entrevista jan./ 2004).

Além da dificuldade de atendimento no momento de execução da aula, Marina revelou também as dificuldades oriundas da falta de materiais e ao tempo que precisava empregar na preparação dos recursos necessários ao atendimento dos diferentes grupos que tinha em sala.

“O que eu mais acho dificuldade é na hora de preparar as atividades. Este é o X da questão! Porque se você pensa em três tipos de agrupamentos, então é difícil, sozinha, sem parceria então é muito difícil! Até material de pesquisa, porque hoje, você sabe que não é qualquer tipo de atividade que você pode estar propondo pro aluno. Então pra você estar pensando sozinha na atividade do meu aluno, pra esse, pra aquele, pra aquele outro... Sem local de pesquisa, porque biblioteca nós não temos, sem ninguém pra tá te ajudando, sem uma parceria, é muito difícil” (Entrevista, Jan/2004).

Ao falar em parcerias Marina referia-se às colegas da mesma série e também à supervisora da escola, pois conforme deixou claro ao longo da pesquisa, não conseguiu estabelecer com elas trocas efetivas para o planejamento e a preparação de materiais, o que para a professora seria potencializado pelo trabalho conjunto, a exemplo do que ela estimulava que seus alunos fizessem em sala de aula. Situação que evidencia como os problemas oriundos da docência são enfrentados solitariamente pelas professoras no interior das escolas.

E o aspecto mais desafiador na prática de Marina foi o atendimento a um aluno cujo desempenho estava aquém do esperado, preocupação esta revelada pela professora na primeira entrevista realizada no início da pesquisa. Ao ser questionada sobre suas maiores preocupações em relação à sala de aula ela afirmou “Aquele aluno que eu não consegui alfabetizar ainda.”

Esta preocupação mobilizou a professora, ao longo da pesquisa, a criar diferentes formas de trabalho com Nilson, além daquelas que utilizava com os demais alunos da turma que ainda não estavam alfabetizados. Sua preocupação com Nilson revelava-se no atendimento constante às suas necessidades, potencializado pela criação de um ambiente de ajuda mútua que se materializava na organização da sala em duplas e na recomendação explícita de que as crianças auxiliassem umas às outras. Nos dois fragmentos de registro abaixo destacados, pode-se constatar o olhar atento da professora ao desempenho de Nilson, bem como a rede de apoio construída pelos colegas em torno do aluno e estimulada pela professora.

“Nilson está agrupado com um colega que já sabe ler. A professora pede que o colega o ajude, quando for a sua vez escrever, ditando as letras que faltam. Afasta-se da carteira deles e vai atender outros alunos. Depois de alguns minutos percebe que Nilson anda pela sala e vê o que está acontecendo. O lápis está com a ponta quebrada e ele vem até a carteira da pesquisadora mostrando o lápis, que lhe diz que não tem apontador ou estilete. A professora se aproxima e pede um apontador emprestado com o Augusto e aponta o lápis para Nilson. Depois volta para a carteira onde ele e o colega estão e pede que este o auxilie. Após alguns minutos a professora volta e vê que o colega estava escrevendo na vez do Nilson. Então pede que o colega deixe Nilson escrever à sua maneira e depois escreva do lado corretamente” (Observação 17/10/2002).
“Nilson não consegue copiar do quadro e então José se aproxima dele e informa para a professora que vai ajudá-lo. A professora autoriza e José passa a ditar as letras para Nilson. De repente Roberto levanta-se, observa no caderno de Nilson onde ele está copiando então vai ao quadro e aponta com uma régua onde é que ele deve olhar para continuar a copiar” (Observação 21/11/2002).

Nas situações em destaque, observa-se como a professora estava atenta ao desempenho de Nilson e, a exemplo dos resultados da pesquisa realizada por Kramer e André (1984, p.530), chama a atenção como a professora “consegue dar aula para a turma toda e, ao mesmo tempo, atender individualmente as crianças.”

Na cena 2, Marina ao dialogar com a pesquisadora revela sua preocupação com o desempenho de Nilson e ao articular seu trabalho com referenciais teóricos a que teve acesso, assume outros procedimentos no trabalho com ele.

 

CENA 2 – “RELACIONANDO TEORIA E PRÁTICA”

A professora alcança a chave de seu armário e pede que à pesquisadora que pegue dois cadernos novos em sua prateleira na sala dos professores. A pesquisadora vai até lá e traz os cadernos. Ela dá um ao Nilson e outro para a Lúcia.

Nilson, de posse do caderno novo desenha formigas em dois tamanhos e escreve do lado alguns traços que parecem imitar letras. Como a professora estava atendendo a um aluno ao lado da carteira em que a pesquisadora está sentada ela mostra o caderno e comenta. “De acordo com o que li na Emília Ferreiro o Nilson não está nem na fase icônica. Está na garatuja ainda. Acho que eu pulei etapas com ele. Eu deveria ter trabalhado outras coisas antes.”

A pesquisadora pergunta se ele conhece letras e ela diz que sim. A pesquisadora pede que ela solicite a ele a leitura daquilo que escreveu . Ele lê formiga e formiguinha e ela pergunta que letras precisa para escrever formiga. Ele diz A C P. Ela então pede que ele faça as letras. Ele as escreve. Ela então pergunta porque ele não fez ali as letras. Ele apenas sorri.

A professora diz: “Se eu tivesse percebido antes... Diz que tem como a gente resgatar todas as etapas com a criança e ela aprender a ler e escrever até o final do ano. Eu preciso ajudar”.

Assim que as crianças escrevem e desenham, ela pede que elas a ajudem a escrever as palavras no quadro. “Eu não sei que letras colocar. Vocês vão ditar para mim. FORMIGA: que letras eu uso para escrever?”

Algumas crianças falam: FO. A professora escreve FO e pergunta o que já está escrito e o que precisa colocar. Algumas crianças dizem, o R e ela coloca. E assim vai até o final. Quando a palavra está completa ela pede ao Nilson que diga que letras ela usou para escrever formiga. Do lugar onde a pesquisadora está pôde ouvir apenas algumas letras. Não é possível saber se acertou todas. Em seguida pede que ele conte quantas letras foram usadas. Desta vez foi possível ouvi-lo acompanhar a contagem dos colegas na ordem correta dos números.

A professora usa o mesmo procedimento para as demais palavras: FORMIGUINHA e FORMIGÃO. Pede quais letras, quantas e chama Danilo para escrever o número 11 ao lado da palavra formiguinha.

Lucas que estava há algum tempo pedindo: “Deixa eu, professora, Deixa eu!”. Fala em voz alta com raiva: “A professora só chama o Danilo!”

A professora desenha no quadro três casas de diferentes tamanhos e pede que façam o mesmo escrevendo as palavras ao lado. A professora questiona oralmente como é que chamamos uma casa grande e alguns falam casarão outros casona. Ela diz que o mais comum é casarão e pede que escrevam.

Em seguida vai às carteiras e ao se aproximar da mesa da pesquisadora uma criança lhe mostra o caderno que já estava com a tarefa pronta. Ela observa e vê que o aluno escreveu corretamente e ela disse que esperava que eles usassem o Z em CASINHA e CASARÃO e este aluno (Jéferson) a surpreendeu. Já o seguinte (Orlando), escreveu com Z e ela remeteu-o à palavra casa.

Profª.: “Como você escreveu casa?”

Orlando: “Com S”.

Profa.: “Então aqui (apontando para CASINHA e CASARÃO) a gente mantém o s” (Observação 20/05/2002).

Novamente percebe-se Marina solicitando prioritariamente a participação dos alunos que apresentam maiores dificuldades, despertando, inclusive, a reação de Lucas que se ressentia de não ser o escolhido. Porém o aspecto mais importante na cena 2 consiste na explicitação de como a professora explica as dificuldades de Nilson em relação ao seu processo de alfabetização.

A referência à leitura que fez de Emília Ferreiro e à relação que estabeleceu entre o que leu e o trabalho que faz, é reveladora do quanto à necessidade da sala de aula, tem estado presente em suas interpretações da teoria, ou seja, o diálogo estabelecido por ela com as afirmações da autora permitem a Marina avaliar seu trabalho com o aluno considerando, ao mesmo tempo, o que diz a teoria e os resultados do trabalho que vinha realizando com ele.

O aluno desafiava o conhecimento que a professora tinha sobre alfabetização. Ela não se conformava que ele não estivesse lendo, pois percebia que havia conseguido ajudar os demais que vieram para sua sala sem estarem alfabetizados e não conseguia entender o que acontecia com Nilson, pois ao mesmo tempo em que percebia seus avanços em alguns aspectos, esbarrava em limitações que não compreendia por outro, como ela mesma constatou ao explicar para a pesquisadora que ele não desenhava e passou a desenhar, não conhecia letras e aprendeu várias, porém não as utilizava na hora da escrita espontânea. Era uma criança muito calada e aos poucos foi se soltando, mas quando questionado ainda falava muito baixo e quase não era possível ouvir suas respostas.

Por meio dessas reflexões, a professora concluiu que não forneceu ao aluno as ajudas necessárias ao seu processo de aprendizagem. Demonstrou estar refletindo sobre o que ofereceu a ele e procurando entender como precisaria agir para ajudá-lo. As observações posteriores permitem compreender uma decisão da professora, assumida a partir deste momento: envolvê-lo em outras atividades que não as estritamente relacionadas à alfabetização.

Em sua decisão de “ampliar o universo de conhecimentos” de Nilson, Marina conseguiu envolvê-lo em uma atividade extra-aula. Convidou-o para representar o “Visconde de Sabugosa” na apresentação da sua turma no desfile do dia 7 de setembro. Para isso ela o levou até o centro da cidade para comprar o tecido e tirar as medidas na costureira para a confecção da fantasia. E explicou que fez isso porque acreditava que ele precisava de maiores conhecimentos e, saindo assim para lugares diferentes, poderia ajudá-lo a ampliar o que sabia.

Na sala de aula, passou a fazer solicitações ao aluno as quais o deparavam com o desafio de expressar-se diante de outras pessoas, tais como, dirigir-se à secretaria para pedir algum material, levar recados para outra professora. O reforço extraclasse também foi um dos instrumentos utilizados pela professora na tentativa de auxiliar as crianças com maiores dificuldades. Nilson era chamado para o reforço, mas nem sempre comparecia por ser no horário oposto ao de aula. A professora então procurava alternativas para atendê-lo e, em uma das situações presenciadas durante a observação, utilizou a aula de Educação Física para trabalhar especificamente com Nilson.

Os investimentos de Marina em alunos como Nilson permitiram constatar sua crença na possibilidade de aprendizagem das crianças. O prazer advindo dos avanços do aluno parecia compensar este investimento e fornecer a energia necessária para que ela continuasse nesta direção. Mas os resultados obtidos com Nilson ao final do Ciclo, frustraram a professora que revelou em uma das entrevistas, como se sentia diante da dificuldade de trabalhar com as crianças que não apresentavam o desempenho esperado:

“Eu me vejo assim... falta assim... acho que... competência pra mim. Como trabalhar com essa criança, sabe? É lógico que tem aquela criança que já passou por algum problema que teve assim. Mas eu acho que desde que ele está ali, e que ele tem habilidade para outras coisas, que ele pensa, se ele chegou até ali, se ele interagiu com os alunos, ele tem capacidade de aprender. Eu acho, é mais demorado? É! Mas ele tem. Eu acho assim até porque a falta de tempo, porque eu não sei a gente não consegue estar mais do lado desta criança. Eu vejo assim. Você acaba, sem perceber, dando mais atenção, até porque os outros te cobram mais, estão mais em cima e aquele sempre fica mais ali do lado, como eu tive o caso do Nilson, o ano passado. Eu vi assim que tem condições de aprender! Agora, o que faltou em mim, eu não consegui o como estar preparando atividade, o como estar agrupando, o como estar trabalhando. Até no reforço mesmo, às vezes eu me via sem saber como trabalhar” (Entrevista – junho/2003).

Conforme explicita Passos (1997) a confiança na capacidade de aprendizagem dos alunos revelada pela professora, é especialmente importante, quando se considera que seu trabalho é com crianças na fase inicial da escolarização. Porém, enquanto as professoras, por acreditarem nos alunos reivindicam melhores condições para atendê-los, as instituições escolares não oferecem recursos materiais, nem espaço físico adequado ao atendimento destas crianças. Na escola pesquisada não havia biblioteca com acervo disponível para consulta pelos professores durante o planejamento, nem para o estímulo à leitura das crianças. Mesmo dispondo de tempo para o atendimento das crianças no horário oposto ao das aulas, não havia na escola nenhum espaço apropriado para a realização deste atendimento e a professora utilizava o pátio da escola para fazê-lo.

As cenas descritas e as palavras da professora traduzem a complexidade presente na tarefa de alfabetizar crianças. Como afirma Talavera (1994) esta complexidade parece ser reconhecida pelos docentes, os quais, no momento de assumir as turmas, preferem outras séries deixando as classes de alfabetização sem professores, ou pensando em abandonar a profissão, conforme palavras da professora durante a pesquisa. “Quantas vezes eu pensei assim: ‘Gente eu acho que eu não quero mais ser professora!’ Até porque a responsabilidade é muito grande, você vê que não é daquele jeito, você começa a ficar angustiada com certas coisas e que você tem que concordar” (Entrevista junho/2003).

 

CONCLUSÕES

Os dados apresentados neste trabalho evidenciam o descompasso entre as políticas públicas implantadas pelos sistemas de ensino e a realidade sócio-econômica à qual estas propostas se destinam, remetendo-nos ao alerta de Costa (1995, p. 46): “não basta tratar a educação isoladamente. É necessário reconhecer sua imbricação com o conjunto das políticas do estado, em particular sua intervenção na chamada área social.”

A desarticulação entre os diferentes aspectos do processo educacional revela que à implantação de políticas públicas não têm correspondido os necessários investimentos em infra-estrutura, condições materiais e humanas para que ocorram as mudanças demandadas pelo contexto pedagógico. Além disso, a ausência de avaliações sistemáticas das políticas implementadas impede sua reformulação e o direcionamento de investimentos em aspectos fundamentais do processo.

Como afirma Freitas (2004, p. 26) é necessário cuidado para que não ocorra uma diluição do papel instrutivo da escola. É preciso enfatizar que as mudanças curriculares não podem “significar a diluição da aprendizagem de conteúdos escolares, ou, o que é pior, a adoção de uma referência cultural local que assuma como norma a si mesmo, impedindo que os estudantes se elevem criticamente sobre essa referência.” Ao não conseguir garantir a aprendizagem a todos os alunos, a escolarização organizada em ciclos escolares, apenas tem oferecido o acesso à escola, mas não o acesso ao conhecimento necessário à continuidade da escolarização.

A análise das condições em que se desenvolvem os processos educativos no interior das escolas aponta para a necessidade de investimentos concomitantes em todos os aspectos do sistema educacional: condições físicas e materiais dos sistemas escolares, formação e valorização dos profissionais da educação a partir das escolas. Envolver as instituições escolares torna possíveis mudanças no coletivo e não em práticas individuais que alcançam pouco resultado no âmbito geral e não garantem o necessário apoio pedagógico aos professores que, por se sentirem solitários, abandonam as classes de alfabetização.

Por outro lado, os processos formativos não podem mais se furtar às necessidades demandadas pela prática pedagógica e precisam abordar o complexo processo de alfabetizar crianças em contextos cada vez mais heterogêneos, inclusive tendo em vista uma educação inclusiva. Neste sentido, mesmo considerando as limitações deste trabalho, entende-se que, ao trazer para a discussão aspectos importantes da prática pedagógica desenvolvida em uma sala de aula de escola pública, em um contexto pouco investigado, contribui-se para estimular pesquisas mais abrangentes que permitam uma melhor compreensão das causas das dificuldades enfrentadas por professoras alfabetizadoras em escolas de periferia urbana.

 

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Recebido em 11/09/2006
Revisto em 30/01/2007
Aceito em 02/02/2007

 

 

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