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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.57 n.126 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Quando o silêncio aprisiona1

 

When silence traps

 

 

Alberto Pereira Lima Filho*

International Association for Jungian Studies

 

 


RESUMO

O artigo descreve o fenômeno que, no plano interpessoal, instala-se quando uma pessoa fica aprisionada ao silêncio de outra e, no plano intrapsíquico, configura uma modalidade particular de sofrimento para o sujeito aprisionado, com os possíveis desdobramentos. O silêncio que causa perturbação é caracterizado como a ausência de feedback em um relacionamento interpessoal com um histórico de normalidade, ou como feedback fornecido em intervalos irregulares. O estudo descreve a seqüência de eventos psíquicos e relacionais que se desenvolve, ocupando-se com a leitura do significado psicológico de cada um. Propõe-se a visão do conflito contido nessa vivência como manifestação da função transcendente e como oportunidade para a ruptura com o dinamismo patriarcal e para o início do processo de individuação propriamente dito. As respostas de defesa que surgem são avaliadas como funções do Self, em contraste com os hábitos do ego e da consciência, que podem ser superados criativamente. Um caso clínico é apresentado como exemplo.

Palavras-Chave: Silêncio, Feedback, Defesa, Funções do Self.


ABSTRACT

The article describes a phenomenon that occurs when a person is trapped into the silence produced by another person, on the interpersonal level; on the intra-psychic level, it imposes a peculiar mode of suffering to the person who remains imprisoned, with all its’ outcomes. The silence that disturbs is characterized by the lack of feedback in an interpersonal relationship, which once was based on contact, or by feedback that is provided at irregular intervals. This paper describes the sequence of psychic and relational events, which develops under such circumstances, taking into account the psychological meaning of each one of them. The conflict experienced within such a relational mode is viewed as a manifestation of the transcendent function and as a mean to overcome the patriarchal dynamism in favor of the individuation process. The defense responses, which arise, are evaluated as functions of the Self, contrasting with the habits of the ego/consciousness system, which must be creatively surpassed. A clinical case illustrates the author’s views.

Keywords: Silence, Feedback, Defense, Functions of the Self.


 

 

INTRODUÇÃO

O silêncio revela seus diversos significados, funções, propósitos e mistérios no palco em que, deliberada ou inconscientemente, as pessoas desempenham seus dramas e comédias relacionais. Desta afirmação decorre que, para se alcançar o significado do silêncio, a atmosfera que ele instala, o que promove e o que o impede, é necessário examiná-lo: 1) dentro do contexto no qual ocorre; 2) a partir do locus que ocupa no sistema consciênciainconsciente, não apenas no campo relacional, como também na experiência individual. O que quero enfatizar é que há uma ressonância subjetiva, um processo de decodificação ou de interpretação, que se apresenta como resposta interna, simultânea a um silêncio percebido como evento externo. Vejo esse fenômeno como expressão da função transcendente.

A escolha do tema decorreu da observação de que os fenômenos relacionais aqui descritos e interpretados incidem nas vidas de mais de 50% dos clientes adultos, homens e mulheres, atendidos em psicoterapia, em especial na faixa dos 30-40 anos, mesmo quando se considera a imensa diversidade de tipos de personalidade dessa população. Em que pesem os distintos repertórios de recursos e limitações apresentados pelos clientes, o cotidiano analítico tem revelado que a dinâmica e a estrutura da situação relacional se repetem.

 

MÉTODO

Tomaram-se como fontes para o exame do conflito aqui descrito os relatos de pacientes colhidos em sessões psicoterápicas ao longo de 26 anos de trabalho clínico. Notas foram tomadas ao término de várias sessões psicoterápicas e delas extraiu-se grande parte do material clínico que deu ensejo a este estudo.

O texto que segue abrange os resultados da observação clínica e consiste em: a) uma síntese do trabalho analítico empreendido na tentativa de compreensão dos dados examinados; b) um esforço de sistematização e c) uma tentativa de teorização sobre os fenômenos observados, sob a perspectiva da Psicologia Analítica e de elementos teóricos da Análise Experimental do Comportamento. Embora distintas, estas duas teorias ofereceram subsídios compatíveis para a leitura e para a interpretação dos fenômenos observados.

 

COMPREENSÃO E SIGNIFICADO DE UM CONFLITO INTERPESSOAL: DINÂMICA E ESTRUTURA DO PAR RELACIONAL SILENCIOSO-CATIVO

Este estudo focaliza uma modalidade específica de silêncio: a ausência unilateral de feedback em um relacionamento interpessoal, qualquer que seja a natureza da relação. Os pólos relacionais serão referidos como “o silencioso” e “o cativo”.

Posição do cativo: uma pessoa que experienciou reciprocidade em um relacionamento, tendo sido levada a crer que a comunicação e o contato seriam contínuos e estáveis. A disposição para a interação se mantém, porém não mais encontra reciprocidade, ou a encontra com regularidade imprevisível, determinada pelo silencioso.

Posição do silencioso: uma pessoa que, em dado momento ou por algum tempo, exerceu reciprocidade no relacionamento; no entanto, deixou de corresponder ao contato e às comunicações (cessou o feedback ao cativo), ou limitou-se a fazê-lo com intervalos irregulares.

Situação relacional: a descontinuidade do contato impõe-se como um fato tácito; o cativo é incapaz de compreender a que ele pode ser atribuído, a que se deveu, o que o promoveu e qual é seu significado; sente-se impotente para modificar a situação; o estabelecimento e a manutenção do silêncio independem de seu controle, uma vez que não está ao alcance do cativo assegurar que exista reciprocidade na interação. O silencioso é necessariamente percebido como aquele que governa a situação.

Fenomenologia da experiência interna do cativo: ele é capturado em uma armadilha que o mantém frustrado. Quanto mais forte o elo libidinal que une o cativo ao silencioso, mais acentuado o grau de frustração e mais difícil/desafiador o manejo da experiência interna.

Os Esquemas de Reforço de Estes e Skinner descrevem um tipo positivo de contingência chamada de “reforço intermitente”. Dentre todos os que há, este é o mais poderoso meio de se manter determinado comportamento. Sob essa categoria, a apresentação de reforço ocorre em intervalos variáveis. Ela é positiva no sentido de que tem eficácia em promover a tolerância à frustração, termo empregado pelos autores (Catania, 1999).

Quando a situação de aprisionamento incide em um relacionamento significativo para o cativo, a força do apego necessariamente intensificar-se-á em razão da eficácia dessa modalidade de reforço. Há o risco de que fique comprometida a relação da pessoa com o mundo em geral, mediante a ameaça de perda do “Tu”.

Aprisionado na teia desse silêncio, o comportamento do cativo pode assumir uma qualidade irracional, dado que, nessas circunstâncias, fica dificultada a extinção dos comportamentos de esperar, implorar e ter esperança. A fantasia de que o silencioso retém a gratificação mantém o cativo esperançoso de vir a ser merecedor de recebê-la, a depender de como se comporte.

O desenvolvimento da habilidade de tolerar frustrações, isto é, a capacidade de tolerar o adiamento de gratificações, é necessário para o processo de humanização. Na situação descrita, porém, ora a gratificação é retida, ora é provida somente depois de ultrapassado um limiar de tolerância saudável. O desafio com o qual o cativo é confrontado não é o de desenvolver qualidades especificamente humanas &– responsáveis, talvez, pelos processos de simbolização e de representação &–, mas o de lidar com a privação.

A experiência de antecipar a gratificação envolve, a um só tempo, a formação da imagem do objeto gratificador e o vislumbre de ser nutrido por ele, ao passo que, ao contrário, a privação é análoga a ser drenado, consumido ou ameaçado pelo objeto ausente, cuja imagem, de nutridora, se transforma em vampirizadora.

A imagem do objeto gratificador é experienciada com prazer, de modo que a frustração pode ser tolerada sem ameaça. Entretanto, em razão da perda do equilíbrio emocional, a imagem do objeto devorador se faz acompanhar por algum tipo de sofrimento que, por sua vez, expande o senso de necessidade até o ponto de esgarçamento, reduzindo drasticamente o senso de autonomia e a noção de merecimento. Mediada por esses sentimentos, a extensão da tolerância praticamente coincidiria com a antevisão de uma morte precoce.

O silencioso, na qualidade de objeto amado/desejado, encontra-se fantasmaticamente presente e decide sobre a periodicidade e a incidência de contato; concretamente, no entanto, está ausente e, por isso mesmo, dá margem a uma miríade de projeções.

Na história do desenvolvimento psicológico de uma pessoa, um ego integral positivo está alicerçado em sentimentos básicos de segurança, um legado da mãe e da relação primal. Esse sentimento tem uma qualidade primária e se configura como uma confiança em contar com o outro, com a própria vida, com a preponderância do bem sobre o mal, com a mãe e seus representantes. Conserva-se a fé no bom desenlace dos dilemas existenciais e na solução para os conflitos, que estarão a cargo de algo, de alguém, ou do próprio destino (Neumann, 1991). Ulteriormente, a criança assim formada desenvolve sentimentos secundários de confiança, que são legados do pai. Validada e confirmada por ele (ou seus representantes), o ego integral positivo desenvolve um sentimento de ser capaz, de ter instrumentos, de ter dons e de ser forte o suficiente para produzir suas próprias soluções para os conflitos (Lima Filho, 2002).

O silêncio aprisionador promove um profundo questionamento dos fundamentos da pessoa quanto a esses quesitos. Mesmo quando se encontra enraizada num solo bom e sente um mínimo de segurança básica, a experiência de estar excluída do contato cria séria dúvida sobre a validade e a estabilidade dos valores à luz dos quais a pessoa se formou e se sustentou. Da mesma maneira, mesmo quando apta para superar dificuldades, ser testada em sua capacidade de tolerar privação é o mesmo que ser exposta a um terremoto, isto é, as conseqüências mostrarão até que ponto as estruturas da pessoa são sólidas ou efêmeras.

O desenvolvimento de sentimentos básicos de confiança envolve a crença na confiabilidade do objeto. O olhar da mãe é verdadeiramente doador; o sujeito pode contar com isso e receber o que se destina a ele sem medo; isso o capacita a olhar para o outro amorosamente. Além disso, a palavra do pai é confiável e verdadeiramente orientadora. A confiança que experimenta na palavra paterna é o que fará dele (dela) um homem (uma mulher) “de palavra”. “Eu te amo” tornar-se-á um atestado de amor; “Dou-lhe minha palavra” constituirá uma questão de honra.

São essas, precisamente, as pressuposições, as garantias e os princípios colocados à prova, quando o cativo é aprisionado pelo silêncio. A pessoa não está preparada &– e nunca o foi &– para conhecer o aspecto traiçoeiro do amor, nem para se deparar com o embuste oculto por trás das palavras; ela passa a conhecer o significado de golpe, isto é, mudança de regras no meio do jogo. Essa vivência provoca vertigem.

É justamente aí que se deflagra a experiência de ter sido seduzida. A sedução se define como uma promessa que não tem condições de ser cumprida, mas é ouvida como uma promessa de gratificação futura. As esperanças da pessoa a tornam apaixonadamente cativa. Ela sabe que está apaixonada, mas demora para se dar conta de que é prisioneira.

A sedução está a serviço do sedutor, embora aparente ser generosa aos olhos do seduzido. Admitir e aceitar esse fato equivale a acolher um golpe baixo na alma. Não é fácil sobreviver a essa bofetada.

Que nome se poderia dar ao locus ocupado pelo silencioso na experiência interna do cativo, isto é, quais projeções incidem sobre a tela do carcereiro? Reciprocamente, qual é o lugar reservado ao cativo pelo silencioso e/ou por seu reflexo projetado? Onde se posiciona o cativo na estrutura relacional?

Uma seqüência relativamente previsível de eventos pode ser descrita como segue:

1. O contato é experienciado como uma estrutura estável.

2. Observa-se uma mudança de ritmo no feedback por parte daquele que se cala e introduz-se o silêncio como um dado novo, causando estranhamento no cativo.

3. O cativo levanta hipóteses sobre os motivos para a interrupção do contato. Algumas são auto-referentes (Talvez eu não tenha sido muito claro no recado que deixei na secretária eletrônica); outras, hétero-referentes (Meu interlocutor deve estar muito ocupado, ou a secretária eletrônica está quebrada).

4. Novas tentativas de contato são feitas. Testam-se algumas das hipóteses levantadas (Você recebeu os recados que deixei?) As legítimas necessidades narcísicas do cativo, que não estão sendo atendidas, geram ressentimento; o silencioso, ao contrário, continua a ser ecoado pelo cativo.

5. O feedback pode eventualmente acontecer, sendo que, mais cedo ou mais tarde, o silêncio é retomado. O diagnóstico inicial precisa ser revisto. O cativo é forçado a colocar em dúvida a percepção que tem do relacionamento. Se essas dúvidas são autoreferentes, o cativo sofre um abalo em sua auto-percepção (Há algo de errado comigo e isso fica claro para meu interlocutor, mas escapa à minha percepção). Em outras palavras, um elemento sombrio inconsciente ameaça desqualificar o cativo. Se, ao contrário, essas dúvidas são hétero-referentes, o cativo experiencia a presença de um ponto cego, uma lacuna na consciência, que o impede de identificar um elemento sombrio no silencioso. Na maior parte das vezes, as duas tendências se sobrepõem. Aqui tem início a experiência de estar aprisionado. Sob tais circunstâncias, o silêncio funciona como uma teia invisível, pois, paradoxalmente, insinua-se tangível como uma rocha e vazio como um grande mistério. O silêncio ativamente aprisiona, isto é, exerce uma força de captura sobre o cativo, mesmo que não se perceba, da parte do silencioso, qualquer esforço nessa direção. O cativo, por sua vez, passivamente cai na armadilha, sem saber e sem querer, como se traído pelo destino, por seus próprios olhos, pelas divindades regentes das relações afetivas, percebidas como abandonadoras. A força do vínculo com o silencioso determina o grau do sofrimento experienciado; a estrutura da situação permanece inalterada.

6. Neste ponto, uma duplicidade se instala. Em primeiro lugar, o silencioso não está lá fisicamente, mas ocupa um espaço como personagem no drama do cativo e, como tal, oferece um gancho para projeções; a falta de reciprocidade automaticamente coloca o silencioso em uma posição divina, pelo simples fato de lembrar uma condição não humana; o investimento libidinal aumenta, sinalizando um peculiar apetite por uma bênção salvadora. Em segundo lugar, o silêncio age como um substituto para o interlocutor original e oferece-se, ele também, como uma peculiar tela para projeções. Por não ter quaisquer atributos, ele é receptivo a todos ou a nenhum. Quando uma projeção incide sobre uma pessoa ou sobre uma imagem derivada de uma pessoa, tal como acontece com as personificações nos sonhos, o conteúdo daquela projeção geralmente preserva a possibilidade de ser integrado. Não a sombra como tal, mas o âmago das qualidades que ela contém; não o Animus ou a Anima, uma vez que são funções psicológicas, mas os conteúdos que veiculam para a consciência. O outro pode ser percebido como uma divindade do Mal, situação em que a pessoa lê a situação como pura expressão da injustiça ou, com a mesma freqüência, o outro é percebido como portador do Bem, ao mesmo tempo em que a pessoa, reciprocamente, não se vê merecedora de benécies. Caso essa pessoa seja marcada por um tipo primário de culpa, no sentido atribuído ao termo por Erich Neumann (1991), a experiência atual corresponderá a um veredito de culpabilidade em segunda instância, sem chance de apelação. Qualquer que seja a situação, a experiência se mitologiza e um atributo passional transtorna a harmonia psicológica da pessoa. Se agravada pelo contato irregular por parte do outro, isto é, se a natureza intermitente do reforço entra em jogo, há grande probabilidade de que o sofrimento causado pela dependência em relação ao outro se estenda até inserir a pessoa num estado doentio, não importando se o outro é percebido como uma divindade do Bem ou do Mal. Isso explica o motivo pelo qual alguns vínculos assim problemáticos demoram tanto para perder a força e tornaram-se indiferentes, permanecendo marcados por duradouro sofrimento. Quando, no entanto, uma projeção incide sobre um fenômeno que se recusa a se encaixar em qualquer tipo de registro sensório, como no caso do silêncio, não há gancho algum, ou seja, a energia psíquica não encontra um desaguadouro para onde se canalizar. O mais comum movimento projetivo, isto é, para fora, acaba por encontrar tudo (o caos, a psicose) ou nada (a morte). A energia psíquica relacional é então forçada a retrofletir; o eco, que se recusa a vir de fora como um reflexo, necessariamente passa a vir de dentro na forma de um sentimento de privação. A pessoa é então confrontada com a crua realidade de sua solidão, uma qualidade inerente à condição humana, mas muito difícil de ser tolerada. O desenrolar do processo de individuação, que, por definição, inclui o outro, fica profundamente ameaçado.

7. Muitas vezes incapaz de encontrar um registro de experiências semelhantes no passado, a angústia do cativo pode resultar em psicose, desde que pré-existam condições favoráveis para tanto, ou, num plano menos dramático, pode desencadear um temporário estado confusional, a menos que seja cercada por defesas, situação em que a evolução psíquica fica comprometida, cerceada, ou adiada. Não menos importante, o aspecto criativo da mesma angústia preserva a possibilidade de um salto qualitativo, que começa a ser engendrado na psique, constituindo, quiçá, o mais saudável dentre todos os desenlaces possíveis.

Ao término dessa seqüência de eventos, quando todos os esforços e tentativas de restabelecer contato falharam, o cativo se encontra só e empobrecido. Imensa quantidade de libido foi empreendida, caindo em um buraco negro; um número significativo de conteúdos pessoais foram mobilizados e, em seguida, paralisados ou mantidos à deriva, termos com os quais o cativo talvez decodifique a situação. A vivência previsível é a de que o tempo &– seu tempo, um objeto precioso &– foi ilicitamente apropriado pelo silencioso, sem a menor possibilidade de recuperação.

A verdadeira dinâmica do silencioso tem importância apenas relativa e talvez se possa caracterizar por uma ou algumas das seguintes condições: falta de empatia; profunda angústia característica de condutas anti-sociais, que só encontra alívio através de atuações psicopáticas; egocentrismo e auto-referência típicos de uma personalidade narcísica; desdém e indiferença, o “nem aí” que se espera de um puer ou de uma puella1; processos através dos quais o silencioso causa no cativo a dor que ele mesmo sente, na tentativa de comunicar os sentimentos vivenciados através da peculiar linguagem da identificação projetiva; perversidade, não importando se deliberada ou inconsciente. Qualquer que seja a natureza da participação do silencioso, ele não se encontra disponível para um diagnóstico, o que nos deixa livres apenas para examinar a relação do cativo com o silêncio, seu substituto.

O que emerge como pólo dialógico, quando o outro se dissolve no vazio? O que se torna disponível para um encontro, quando a coniunctio2 desejada se mostra inalcançável? Qual é e onde se encontra a chave capaz de destravar a corrente que mantém o cativo aprisionado?

Na solidão, tudo que há para se encontrar é o próprio Self e o inconsciente, em sua qualidade de “Tu”. O apetite experienciado pelo ego é suplantado por um desejo, especificamente a sede e a fome do Self pela individuação. A integridade da pessoa pode ser e provavelmente será preservada por uma função do Self, que protege a psique de ruptura ou, em termos empregados por Kalsched (1996), protege o imperecível espírito pessoal de qualquer cisão, dissolução, engolfamento ou destruição; defesas arquetípicas entram em ação para salvar o espírito pessoal dos ameaçadores efeitos do trauma. Esses recursos arquetípicos podem ser compreendidos como o potencial transcendente do Self para o encontro de soluções criativas. O divino é uma dimensão que deve ser buscada no âmbito da própria psique.

Uma vez que o receptáculo das projeções deixou o silêncio em seu lugar, e considerando-se que o silêncio é uma surpreendente tela ativa, que reflete a projeção de volta à pessoa, o conteúdo do encontro, agora, está prestes a se apresentar e, sob condições favoráveis, também se integrar, seja a balbúrdia causada pela Anima, com suas questionadoras e revolucionárias perplexidades, seja a exigente (mas estruturante) crítica do Animus, com seu foco e acurado senso de valor, seja ainda a sombra, com sua capacidade de revelar talentos ocultos e recursos consistentes, absolutamente necessários.

 

UM CASO CLÍNICO COMO EXEMPLO

Os termos em que este estudo foi apresentado evidenciam que a estrutura dos fenômenos aqui descritos se aplica a quaisquer relacionamentos interpessoais, nos mais variados contextos da vida, podendo, inclusive, aludir a eventos do par terapêutico. O exemplo destacado a seguir nada mais é do que um recorte dentro de um único relacionamento interpessoal, tendo apenas o propósito de ilustrar aspectos parciais de uma das fontes inspiradoras para o que se teorizou na primeira parte deste estudo, uma vez que esse esforço de teorização dá conta de sistematizar o resultado do exame dos dados observados. Em razão de encontrar-se disponível como registro de uma sessão psicoterápica, elegi para esta ilustração a situação de um casal. A esposa era minha cliente e aqui receberá o nome de Dora. Encontram-se disfarçados dados que poderiam resultar na identificação das pessoas envolvidas, sem prejuízo dos pontos que eu quis ressaltar.

Com 34 anos de idade, professora universitária, ativa, divertida, esposa e mãe dedicada, uma intuitiva extrovertida com um especial talento para fazer amigos e formar relações duradouras e nutritivas, casada com um homem de sucesso no campo empresarial, aparentemente um representante do tipo psicológico “sentimento introvertido”, Dora vinha se queixando de que o marido, por alguns anos percebido como presente e atencioso, tornara-se distante. Limitava seu interesse pela esposa e pelos filhos a sorrisos protocolares, umas poucas e raras palavras impessoais, uma sexualidade vista por ela como indiferente, tudo isso manifesto de forma um tanto mecânica. Palavras dela: “ele faz no máximo o mínimo e, se possível, um pouco menos, só para empurrar o casamento com a barriga”. Faziam falta as significativas trocas que um dia permearam o relacionamento.

As razões para a mudança de atitude não se podiam conhecer. As tentativas de Dora no sentido de expressar seus sentimentos ao marido e de lhe perguntar se havia algo de errado ou insatisfatório mostraram-se ineficazes. Ele fazia as observações da esposa soarem desnecessárias, tolas, exageradas ou descabidas, pois “não sabia mais o que fazer para fazê-la feliz”.

Desconfirmada em sua percepção, mas de algum modo capaz de não se render ao descrédito do marido, teve início um longo período de sofrimento.

“Não posso dizer exatamente que ele não está lá, mas certamente também não posso me alegrar com aquele tipo de presença. Há um silêncio que me mantém cativa e que me enlouquece. Amo aquele homem, mas já não sei dizer o que, nele, eu amo. Onde foi parar o homem que eu amo, o homem íntegro que eu amo? O que resta dele? Por que o amor que sinto não consegue mais encontrar abrigo nele, nem no meu peito?”

Certo dia, verificando os bolsos de um terno dele, antes de enviá-lo ao tintureiro, Dora encontrou a cópia de um e-mail. A destinatária, como mais tarde o consorte confirmou, era a amante do marido. Dora estava mergulhada em sua dor, com muita dificuldade de pensar. Pediu-me para ouvir o conteúdo do e-mail.

Eu me senti como se estivesse diante de um ventríloquo. O conteúdo da carta era a transcrição exata dos sentimentos e vivências de Dora, transmitidos pelo marido à amante, como se fossem dele. “Por que você não fala mais comigo? Tudo que me resta é minha dor, a dor de saber que não represento nada mais para você etc., etc.”

Ele se apossara dos conteúdos de Dora.

O relato nos dá pistas sobre a natureza da dificuldade do silencioso. O silêncio daquele homem ocultava um processo de vampirização: ele se preencheu das experiências subjetivas de Dora para cimentar a enorme lacuna que carregava em sua alma. O episódio explicita, também, a natureza da sedução com a qual ele um dia a capturou &– e com a qual hoje tenta capturar a amante: um afeto que faz lembrar a sinceridade e a sensibilidade, mas que nada mais contém do que meia dúzia de estereótipos roubados do repertório coletivo. Um afeto impessoal e esvaziado de empatia.

Daqui por diante, a missão de Dora não será fácil. Vai ser necessário rever e ressignificar os valores que a nortearam até este momento de vida: a confiabilidade de uma palavra e a boa fé contida no olhar de quem a vê. A pessoa que foi profundamente questionada em seus fundamentos (sentimentos primário e secundário de segurança) deve partir para uma terceira modalidade de confiança, que transcende as duas anteriores. Desta feita, não se trata nem de confiança no outro, nem de confiança em seus próprios recursos, entendidos como recursos egóicos. As fronteiras do ego são reconhecidas em suas limitações e a consciência se alarga para, humildemente, contemplar a dimensão da totalidade como regente. Esse fenômeno é característico da grande crise que demarca a passagem do dinamismo patriarcal para o dinamismo de alteridade e deflagra o início do processo de individuação propriamente dito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Catania, A.C. (1999). Aprendizagem: Comportamento, linguagem e cognição. Porto Alegre: Artmed.        [ Links ]

Kalsched, D. (1996). The inner world of trauma. Londres: Routledge.        [ Links ]

Lima Filho, A. P. (2002). O pai e a psique. São Paulo: Paulus.        [ Links ]

Neumann, E. (1991). A Criança. São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

 

 

Recebido em 22/05/2006
Revisto em 23/04/2007
Aceito em 27/04/2007

 

 

1 Trabalho apresentado na IAAP/IAJS II International Academic Conference of Analytical Psychology & Jungian Studies, na Texas A&M University, no dia 8 de Julho de 2005 e no Encontro de Psicologia Junguiana &– Trabalhos brasileiros apresentados na II International Academic Conference of Analytical Psychology & Jungian Studies, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, em 22 de outubro de 2005.
1 O puer e sua versão feminina, a puella, são posições psíquicas que caracterizam “a eterna criança”, um dinamismo psíquico contrastante com o senex, o representante da seriedade e do senso de responsabilidade. Uma das características da eterna criança, aqui enfatizada, é a constante atitude de evitar comprometer-se. O puer e a puella de tudo fazem para eternizar-se como fontes inesgotáveis de possobilidades de desenvolvimento. O comprometimento reduziria uma personalidade naturalmente inflada a uma pessoa real, portanto limitada.
2 No vocabulário da alquimia, tomada por Jung como metáfora para processos psíquicos a palavra coniunctio alude à intergração de polaridades. Ela é a meta do processo alquímico e, por analogia, remete à meta do processo de individuação
* Endereço para correspondência: Rua Dr. Bacelar, 231, sala 51. São Paulo - SP. CEP: 04026-000. Fone/Fax: (11) 5539-0574; E-mail: albertoplima@terra.com.br.

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