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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.57 n.126 São Paulo jun. 2007

 

RESENHA

 

Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas

 

Morality and ethics: intellectual e affective dimensions

 

 

Maria Isabel da Silva Leme*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

De La Taille, Y. (2006). Moral e ética: Dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 189 p.

O objetivo do livro, finalista na lista de indicados ao Prêmio Jabuti de 2007, é proceder a uma reflexão sobre os processos mentais por meio dos quais a pessoa legitima e segue valores, regras e princípios morais. Sem dúvida, uma obra importante não só para psicólogos e educadores, mas ainda para aqueles que desejam fazer uma reflexão sobre esta dimensão da conduta humana sob o enfoque da Psicologia.

O primeiro passo dado na direção desta reflexão é o exame de quatro teorias sobre a moralidade, organizadas segundo dois eixos diferentes quanto à sua ênfase na afetividade ou na racionalidade. No primeiro, situam-se as teorias de Durkheim e Freud, que, em função de conferirem à afetividade o papel de fonte da moralidade, concebem-na como relativista e heterônoma. Já as teorias, que destacam o papel da razão como fonte da moralidade, como as de Piaget e Kohlberg, postulam uma autonomia possível que levaria à escolha de um objeto, não redutível a um conjunto de deveres, mas às escolhas relativas ao que o indivíduo considera uma vida boa ou desejável. É, segundo esta distinção, que são discutidos, a seguir, os usos convencionais de moral e ética, que na perspectiva defendida pelo autor, referem-se respectivamente ao dever e ao querer. Em suas palavras: como devo agir, referente à esfera moral, e que vida quero viver, referente à ética.

O conteúdo da moral pode variar, embora haja temas universais como a vida e a verdade. Todavia, o que é invariante, ou comum a todos os sistemas, é o sentimento do dever ou da obrigatoriedade, o que lhe confere a dimensão psicológica. É bom lembrar que tal sentimento do dever não significa a identificação com uma perspectiva deontológica da Filosofia, como por exemplo, o imperativo categórico, pois o dever moral não é absoluto, depende das conseqüências, como, por exemplo, mentir para proteger um inocente, assumindo assim, uma perspectiva mais teleológica. No entender do autor, interessa mais à Psicologia a força do sentimento de dever do que classificar as pessoas como morais ou não, pois o que está em jogo é a compreensão da energética das ações morais, ou seja, o plano ético.

Finalizando este primeiro capítulo, são analisados os elementos necessários para a experiência psicológica de uma vida boa ou uma vida que tem sentido. São eles: 1) experiência subjetiva de bem estar; 2) transcendência desta experiência tanto de prazer, como do aqui-agora, tomando uma perspectiva de vida como um todo que faz sentido; 3) ver-se a si mesmo como alguém de valor, capaz de desenvolver-se e ter auto-respeito por estar associado a valores morais, o que não equivale a ter uma boa auto-estima, pois esta não está necessariamente ligada a valores morais.

O auto-respeito é o sentimento que liga moral e ética, mas, para isso, são necessários três sentimentos, justiça, generosidade e honra, que justificam a avaliação positiva de si mesmo e da própria trajetória. Os dois primeiros, porque implicam na busca de simetria nas relações interpessoais, e a honra, ao conferir legitimidade ao sujeito que age de acordo com princípios dos quais se sente representante.

O segundo capítulo trata da dimensão intelectual do saber fazer moral, incluindo então os seguintes aspectos: 1) capacidade de refletir, tomar consciência das máximas elaboradas pela própria razão; 2) conhecimento das regras, valores e princípios; 3) capacidade de emitir um juízo moral, após proceder a um equacionamento da situação e, finalmente, 4) sensibilidade para ir além do imediatamente visível e ser capaz de interpretar e inferir. É interessante lembrar que a gênese do juízo moral teve seu estudo iniciado com Piaget, que rompeu com a tradição de considerar esta capacidade uma mera questão de internalização de valores, via aprendizagem. Como ficou demonstrado, a moral segue uma trajetória estreitamente ligada às operações mentais envolvidas na lógica da criança, iniciando-se em um estágio de anomia, que como o próprio nome indica, as regras que regem a conduta não são morais, passando pela heteronomia, durante a qual os juízos emitidos são baseados na obediência às regras ditadas pelas figuras de autoridade e, também, na maior atenção a aspectos concretos como conseqüências da ação invés de intenções, para finalmente, culminar na autonomia, o que nem sempre é atingido por todos os seres humanos. A moral autônoma se inicia pelo questionamento da aplicação da regra pela regra, pois o indivíduo percebe que o mais importante é atentar para os princípios subjacentes à regra, como a justiça, e também a intencionalidade do ato em juízo. Além da complexificação das operações mentais envolvidas, esta evolução demanda relações sociais simétricas, baseadas em reciprocidade e cooperação, o que é mais provável entre pares da mesma idade. Embora atribua imenso valor ao trabalho de Piaget, o autor considera que este deixou de lado um aspecto importante da moral, que seriam os valores, que conferem coerência e coesão às regras. A seu ver, o trabalho de Kolhberg preenche esta lacuna, avançando em relação a Piaget, ao identificar outros estágios entre a heteronomia e autonomia. Assim, são postulados três níveis: pré-convencional, dividido em dois estágios, diferenciados por uma relativização progressiva dos julgamentos, antes baseados só na avaliação das conseqüências.

No nível seguinte, convencional, que também compreende dois estágios, a adesão à regra é referenciada no grupo da qual emana, não só pela aprovação do mesmo, mas ainda para garantir sua estabilidade. No último nível, pós-convencional, é quando se verifica uma definição de valores e regras pessoais, independente da autoridade do grupo, culminando na escolha e adesão a princípios éticos universais, orientados para a justiça, reciprocidade, igualdade e respeito ao outro.

O capítulo é finalizado com uma análise sobre o papel do conhecimento na conduta moral, assim como proposto por Turiel, que postula a existência de domínios de conhecimento social, como pessoal, convencional e moral, os quais já poderiam ser diferenciados pela criança pequena. O autor questiona esta divisão em domínios feita por Turiel, pois a maioria das virtudes morais, como a generosidade não se enquadra em um só domínio.

No último capítulo, intitulado o “Querer fazer moral: a dimensão afetiva”, se detém na análise do vínculo entre moral e ética, situado nesta dimensão por meio do autorespeito, cuja construção será o objeto privilegiado. Assim, o capítulo divide-se em duas partes: o despertar ou gênese do senso moral, período no qual a criança ainda não é inspirada pelo auto-respeito, mas sim por medo e amor, que, quando provocados pela mesma pessoa, em geral os pais, se transformam em respeito, e, portanto, obediência às regras por eles colocadas. Como estes sentimentos não são suficientes para explicar a moralidade no entender do autor, como foram para Piaget, ele propõe ainda a interveniência de outros sentimentos. Em primeiro lugar, a confiança, pois é necessário que o respeito unilateral esteja baseado na avaliação da pessoa respeitada como sendo digna de ser obedecida, praticando o que demanda da criança. A simpatia, definida como afinidade por todas as paixões, não decorrente de uma decisão consciente, sensibiliza e justifica mobilizarmo-nos para o bem estar do outro, transcendendo o que é ditado pelas figuras de autoridade. A indignação é outro sentimento necessário para explicar a moralidade da criança. Ainda que sua gênese seja auto-referenciada, pois surge quando a criança se sente injustiçada e por isso desvalorizada, é necessária para a apreciação posterior do que seja justiça, em termos de equilíbrio de direitos e deveres. Finalmente, o último sentimento que inspira o querer fazer moral é a culpa, definida como sentimento penoso, advindo da consciência de ter cometido uma transgressão moral. Segundo o autor, a culpa inicialmente refere-se à responsabilidade por uma transgressão, havendo, ainda que incipiente, o sentimento de rompimento com um dever moral, cuja raiz está no respeito incutido pelas figuras inspiradoras de medo e amor. Por outro lado, a simpatia também tem aí o seu papel, se traduzida em compaixão pelo outro que sofre conseqüências negativas do nosso ato de transgressão. O autor conclui interessantemente: se não houvessem ordens a serem obedecidas, não haveria despertar da moralidade, e, se não houvesse transgressão às mesmas, não haveria desenvolvimento moral.

Na segunda parte do capítulo é discutido como estes sentimentos evoluem a partir do despertar moral. Dadas as condições maturacionais e sociais ideais, como um ambiente em que a autoridade seja exercida por pessoas que merecem confiança, os sentimentos evoluirão no sentido da reciprocidade, da responsabilidade, da honra, de sentirse um sujeito oral. O autor salienta que esta evolução de sentimentos só ocorrerá se as primeiras noções morais construídas penetrarem a personalidade, se o plano moral e ético se articularem, se enfim, for construída uma personalidade ética. Definida brevemente, a personalidade ética é aquela que tem valores morais associados à representação de si e sente vergonha se transgredi-los. A personalidade ética se define, portanto, pelo sentimento de vergonha estar associado a conteúdos morais. Para que seja construída, é necessário que várias condições sejam satisfeitas, principalmente os valores do grupo de referência e as relações simétricas com o grupo de pares.

Na conclusão da obra, o autor explica o porquê da separação, à qual muitos psicólogos se opõem, das dimensões afetiva e cognitiva contidas na sua proposta de moralidade. A seu ver, são dimensões irredutíveis uma à outra, não havendo vantagem em fundi-las, o que não significa não relacioná-las. Identificando-se com Piaget, considera que a afetividade é a energética da ação e que a inteligência corresponde às estruturas de pensamento que as guiam. Outro aspecto que justifica a relação razão-afetividade é o fato do desenvolvimento de uma depender do da outra. Se o intelecto avança é porque o indivíduo tem interesse e necessidade de pensar nos conteúdos sobre os quais avança. Por outro lado, o desenvolvimento da simpatia pelo sofrimento do outro depende de que se considere legítimo o motivo deste sofrimento, caracterizando, assim, a influência da esfera cognitiva sobre a afetiva. Um último aspecto abordado diz respeito à ocorrência do desenvolvimento intelectual e afetivo, que a seu ver, é uma potencialidade, que não se desenvolverá em condições adversas. Tal constatação leva o autor a apontar a importância da Educação para a formação moral e ética das crianças e, também, de adultos.

Finalmente, vale ressaltar que o autor apresenta uma extensa pesquisa sobre os valores de jovens estudantes de Ensino Médio, realizada recentemente com uma amostra representativa da população estudantil de São Paulo. Esta pesquisa permitiu não só traçar um perfil deste jovem, em termos de como vê as instituições sociais e outras instâncias da vida, mas ainda apreender um certo mal estar em suas opiniões, pois, de modo geral percebe a sociedade contemporânea em estado de anomia, o que pode comprometer a consecução de seu projeto ético.

 

 

Recebido em 17/06/07
Aceito em 18/06/07

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Mello Moraes 1721. São Paulo &– SP. CEP: 04721-030. E-mail: belleme@usp.br.

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