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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.58 no.128 São Paulo June 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Vozes do silêncio: juízos morais de jovens e adultos surdos sobre situações pessoais de humilhação1

 

Voices of silence: moral judgment of deaf youngsters and adults on personal humiliation situations

 

 

Alline Nunes Andrade*; Heloisa Moulin de Alencar

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 


RESUMO

Este estudo propôs a comparação entre os juízos de jovens e de adultos surdos sobre situações pessoais de humilhação. Participaram 12 pessoas surdas, divididas em dois grupos de idade: 15-25 e 35-45 anos. Utilizamos o método clínico de Piaget (1932/1994) por meio da língua de sinais, com uma entrevista semiestruturada. Os adultos forneceram mais exemplos de humilhação do que os jovens. Dentre os resultados, destacamos situações de ‘exclusão’, ‘injúria, difamação e calúnia’ e ‘impossibilidade de comunicação’. As justificativas principais referem-se à ‘impotência’, seguida pela ‘condição’. Portanto, a humilhação foi reconhecida e considerada pelos participantes como um evento freqüente em seu cotidiano. Os dados que apresentamos podem servir de subsídios para a reflexão e o estabelecimento de práticas com pessoas surdas, em especial nos âmbitos educacional e social.

Palavras-chave: Juízo moral, Humilhação, Surdos.


ABSTRACT

This study proposed the comparison between the judgment of deaf youngsters and adults about personal humiliation situations. Participants were 12 deaf subjects divided into two age groups: 15-25 and 35-45 years of age, took part. We used Piaget’s clinical method, in a semi-structured interview with signal language. The adult subjects provided more humiliation examples than the young ones. We emphasize among the results, ‘exclusion’, ‘abuse, defamation and calumny’ and ‘impossibility of communication’, situations. The main justifications refer to ‘helplessness’, followed by ‘condition’. Therefore, humiliation was acknowledged and considered by the participants as a common event on their daily life. The data presented may serve as a support for reflection, and for the construction of practices with deaf people, especially on the educational and social environments.

Keywords: Moral judgment, Humiliation, Deafness.


 

 

INTRODUÇÃO

As reflexões apresentadas por essa pesquisa tratam sobre humilhação, na perspectiva do desenvolvimento moral. O objetivo é refletir sobre alguns dos aspectos que constituem a compreensão de pessoas surdas acerca do fenômeno da humilhação por meio dos seus juízos de representação da realidade, em âmbito pessoal. Inicialmente, refletiremos sobre moral e ética.

Compreendemos ética por meio de um significado diferente do de moral, de acordo com as reflexões de La Taille (2002a, p. 157-158), que considera

moral um conjunto de deveres, logo de obrigações ou imperativos que o sujeito coloca para si. A moral corresponde à pergunta: como devo agir? Chamemos de ética as buscas e preocupações acerca da felicidade, da realização de uma vida plena. A ética corresponde às perguntas: Que vida viver? ou Que vida vale a pena viver? Naturalmente, assim definida, a ética não remete a deveres, mas sim a aspirações

La Taille (2002a) observa que, ao tentarmos responder à questão ética, “que vida vale a pena viver?” (p. 158), necessário se faz mencionar a questão moral “como devo agir?” (p. 157). Ao refletir sobre a orientação moral, o autor relembra uma expressão clássica dos estudos sobre moralidade: a “vida boa” (La Taille, 2002b, p. 29), que, assim como a busca da felicidade, vincula-se à necessidade de o homem voltar-se à dimensão intrapessoal, essencial para reflexão sobre a importância das virtudes.

Pode-se, portanto, considerar que a ética engloba a moral, daí a diferença entre ambas, mas também sua relação de complementaridade. Passemos, então, às considerações a respeito do desenvolvimento da moralidade, destacando contribuições do epistemólogo suíço Jean Piaget. O referido autor foi precursor dos estudos sobre o desenvolvimento moral, publicando suas pesquisas, em 1932, no livro O juízo moral na criança (Piaget, 1932/1994), que considera que a moralidade passa por estágios de desenvolvimento: anomia, heteronomia e autonomia. A fase da anomia é caracterizada pela ausência de regras e pela existência de rituais próprios da criança. Por conseguinte, a criança pode passar a se submeter a uma moral da coação ou da heteronomia. Nesse caso, a criança aceita as ordens do adulto, independentemente de quais sejam as conseqüências. Os sentimentos de medo da punição e da perda do amor do outro, nutridos nessa relação, suscitam um respeito unilateral, da criança pela figura de autoridade.

Gradualmente, a moral da cooperação ou da autonomia pode começar a se desenvolver e, futuramente, a opor-se à moral da coação. A moral da cooperação tem a relação recíproca como preceito. Enquanto na fase da heteronomia, o tipo de respeito que se destaca é o unilateral, na fase da autonomia, o respeito mútuo começa a ser desenvolvido.

Se o respeito mútuo é um dos aspectos que caracterizam uma etapa mais refinada do desenvolvimento moral, podemos considerar que “o contrário do respeito não é o ódio, mas a humilhação e a indiferença” (Tugendhat, 1996, p.301). A humilhação é, portanto, um tema concernente aos estudos da moralidade.

Segundo Harkot-de-La-Taille (1999), a ação específica da humilhação é o rebaixamento moral, “uma forma de ação particularmente violenta” (p. 37), por meio da qual se estabelece um tipo de manipulação. Logo, com a humilhação ocorre, de acordo com a autora, um tipo de manipulação, portanto uma ação violenta, já que a pessoa-alvo pode não concordar em ser humilhada, sendo possível considerar a humilhação como um ato imoral.

Para La Taille (2002b), se as humilhações em nossa sociedade são freqüentes, esse tipo de violência é tolerado socialmente e “muitas pessoas não possuem um freio moral que lhes impediria cometê-las” (p. 215). Contudo, Alencar (2003) ressalta que a humilhação tem sido alvo de poucas pesquisas na área da Psicologia. Portanto, reconhecem-se três aspectos que atribuem relevância social à pesquisa com a qual nos ocupamos: reconhecimento da humilhação como um ato imoral, freqüência da humilhação nas relações sociais e cotidianas, e existência de poucos estudos sobre o tema.

La Taille (1996) afirma que existem poucos estudos a respeito dos efeitos psicológicos da humilhação, entretanto algumas reflexões a associam ao sentimento de vergonha. Este sentimento, como possível conseqüência, relaciona-se com experiências de humilhação e o medo proveniente delas. Para La Taille (2002b, p. 95),

o sentimento de humilhação refere-se ao fato de ser e sentir-se inferiorizado, rebaixado por alguém ou um grupo de pessoas, sem que se aceite necessariamente (intimamente, poderíamos dizer) a “má imagem” que esses querem impor. Já que temos duas palavras, vergonha e humilhação, podemos dar-lhes definições precisas. O que há de comum entre ambas é justamente o fato de se sentir inferiorizado (como no caso da vergonha de exposição), porém, na vergonha, compartilha-se a imagem negativa imposta, enquanto que na humilhação ela pode não ser aceita. E, se for aceita, teremos os sentimentos de humilhação e de vergonha somados”.

Harkot-de-La-Taille (1999) propõe uma categorização em torno da vergonha, com destaque para conteúdos que têm em comum a menção à experiência do referido sentimento. Seis aspectos de vergonha compõem tais conteúdos, quais sejam: evidência, condição, impotência, fracasso, falta moral e contágio. Esses conteúdos são úteis para descrever situações de humilhação, embora tenhamos destacado a diferença entre esse sentimento e a vergonha. Assim, de acordo com as considerações anteriores (La Taille, 2002b), existem fatos que podem humilhar uma pessoa que, nesse caso, não compartilha a imagem negativa que outros desejam impor-lhe, logo se trata de um sujeito humilhado. Porém, se essa pessoa compartilha aquela imagem negativa imposta a seu respeito, pode haver a soma dos sentimentos a vergonha e humilhação, além disso, ambos têm em comum a inferiorização que se instaura. Nesse sentido, ao nos referirmos aos conteúdos de vergonha elaborados por Harkot-de-La-Taille (1999), acrescentaremos o sentimento de humilhação, que pode vir associado ao de vergonha.

Vejamos, portanto, a respeito de quê cada conteúdo de vergonha trata. A vergonha e/ou humilhação por evidência refere-se ao sentimento de exposição ou de estar sob o olhar alheio. Harkot-de-La-Taille (1999) cita, como exemplos, falar em público ou chegar cedo demais a uma comemoração. O segundo conteúdo refere-se à condição, no qual o sujeito encontra-se em uma situação de inferioridade, cujas razões são externas à sua vontade e ao seu poder, algo que não foi operado externamente, mas que existe como um dado da realidade. Podem ser exemplos o fato de alguém ser pessoa com deficiência, pobre, doente, etc. A vergonha e/ou humilhação por impotência é o terceiro conteúdo que caracteriza uma situação em que a vítima está, momentaneamente, em situação de força, tornando-se inferiorizada. Existem situações que podem exemplificar esse conteúdo, como ser vítima de tortura, roubo, corrupção, etc. Fracasso é o conteúdo específico daquelas situações em que uma pessoa, ao se ver forçada a abandonar um projeto de vida, pode sentir-se envergonhada e/ou humilhada, como pode ocorrer ao ser demitido ou reprovado em um exame. A vergonha e/ou humilhação por falta moral ocorre quando o sujeito percebe que a sua imagem se contaminou devido à sua atitude, sendo, conseqüentemente, alvo de julgamento por outras pessoas. Em comunhão com o juízo de outrem e com os valores atribuídos à boa imagem, o sujeito envergonhado e/ou humilhado condena sua atuação, o que não significa que ele não cometerá novamente uma falta moral. Por fim, a vergonha e/ou humilhação por contágio ocorre quando um sujeito acredita que determinada imagem de uma outra pessoa receba juízo negativo alheio e, por essa razão, compartilha o sentimento que supõe ter sido vivenciado pelo outro.

Tendo apresentado os conceitos de humilhação e vergonha, além de suas relações entre si, faz-se necessário que nos remetamos às considerações sobre honra. Esta tem como finalidade “proteger o sujeito de possíveis vergonhas” (Harkot-de-La-Taille, 1999, p. 95) e está, de tal maneira, ligada “às crenças mais profundas do sujeito sobre si mesmo, a ponto de este não o diferenciar de sua pessoa: honra ferida significa pessoa ferida” (p. 79). Assim sendo, a honra é passível de proteção pelo Direito ocidental (Amarante, 1998), já que pode ser ferida, entre outras formas, pela difamação, injúria e calúnia.

Difamação é, para Aranha (1995), um ato que, em sentido vulgar, pode “tirar a boa fama” (p. 57) ou desacreditar uma pessoa publicamente. Para a difamação acontecer, é necessário que um determinado fato seja imputado a alguém, com conteúdo ofensivo à reputação dessa pessoa, seja falso ou verdadeiro, e que tal fato seja comunicado a um terceiro, pelo menos que o seja a uma pessoa (Aranha, 1995). A calúnia também faz desacreditar publicamente uma pessoa, porém a diferença está na “gravidade maior da acusação feita e [na] falsidade da imputação” (p. 49). Por fim, há que se comentar sobre a injúria entendida por Aranha (1995), em sentido amplo, como “afronta..., agressão a determinada pessoa por meio de palavras, atos, inventivas ou gestos insultantes” (p. 63). Difamação, calúnia e injúria são consideradas como tipos de humilhação que podem ser caracterizados de acordo com os conteúdos propostos por Harkot-de-La-Taille (1999). O mesmo pode ser considerado a respeito de outros tipos de humilhação, como a exclusão descrita a seguir.

A exclusão é compreendida como um processo em curso que abrange todas as camadas da sociedade e o seu conceito é associado à noção de “privação de poder de ação e representação” (Wanderley, 1999/2004, p. 23). Por se tratar de um tema utilizado por diferentes áreas do conhecimento e, portanto, evocar fenômenos sociais diversos, nos remeteremos à exclusão no espaço das relações interpessoais. Tal enfoque é, para Jodelet (1999/2004), um dos níveis de tratamento sobre o tema que pode fazer sentido, pois “a exclusão induz sempre uma organização específica de relações interpessoais..., de alguma forma material ou simbólica, através da qual ela se traduz” (p. 53). A exclusão, como experiência humilhante de ser desclassificado socialmente, “desestabiliza as relações com o outro, levando o indivíduo a fechar-se sobre si mesmo” (Paugam, 1999/2004, p. 74).

Com base no referencial teórico sobre moralidade e humilhação exposto até o momento, consideramos que alguns aspectos sobre a humilhação podem ser investigados junto a jovens e adultos surdos. Assim sendo, apresentaremos considerações pertinentes a pessoas surdas.

A surdez é definida em um documento elaborado pelo Ministério da Educação e do Desporto (Brasil, 1997) como uma perda total ou parcial, por causas hereditárias ou adquiridas, da capacidade de captar e compreender os sons por meio da audição, implicando surdez leve ou moderada e/ou severa ou profunda. A surdez leve ou moderada ocorre quando há perda auditiva de 40 a 70dB (decibéis) dificultando, mas não impedindo que o indivíduo se expresse oralmente, porém a percepção auditiva da voz humana e de outros sons pode estar associada à sua percepção visual. A surdez severa ou profunda é acarretada por uma perda auditiva superior a 70 dB, que impossibilita o indivíduo de ouvir a voz humana e adquirir, naturalmente, uma língua oral.

Reconhecendo que a linguagem é um dos principais pontos de discussão a respeito da educação de pessoas surdas, apresentaremos alguns aspectos de enfoques que se destacam como o oralismo, a comunicação total e o bilingüismo. O oralismo enfatiza o treinamento fonoaudiológico, em que o surdo é submetido a sessões de estimulação para aprendizagem da fala dos fonemas e amplificação da audição, rejeitando, “de maneira explícita e rígida, qualquer uso da língua de sinais” (Sá, 2002, p. 63). A comunicação total, segundo Capovilla (2001), é um método que propõe utilização de meios para tentar facilitar a comunicação com os surdos, associando, simultaneamente, a língua de sinais à língua falada, mas por um equívoco na aplicação desse método, a língua corrente passou a ser sinalizada, sem seguir um padrão visual, o que dificultou a compreensão da mensagem transmitida aos surdos. O bilingüismo é um enfoque educacional que visa a estimular o surdo ao desenvolvimento de habilidades passando, em primeiro lugar, pela língua de sinais, para depois aprender a língua escrita do seu país. É necessário, ainda, acrescentar que o fato de uma pessoa usar a língua de sinais, primeiramente, não significa que ela esteja inibida a aprender a falar, já que os surdos têm uma “inclinação imediata e acentuada para a língua de sinais que, sendo uma língua visual, é para essas pessoas totalmente acessível” (Sacks, 1989/2002, p. 43). A língua falada é, portanto, uma habilidade que deve ser ensinada gradualmente e a partir da competência lingüística desenvolvida por meio da língua de sinais.

Tendo apresentado considerações principais em torno da população surda, realizaremos um breve comentário sobre o método adotado nessa pesquisa.

 

MÉTODO

Participantes

Participaram 12 pessoas com surdez profunda, que sabem se comunicar por Língua de Sinais Brasileira (Libras), provenientes da região da Grande Vitória-ES. Os participantes foram igualmente divididos no que diz respeito às faixas etárias (15-25 e 35- 45 anos) e ao sexo.

Três instituições (duas escolas e uma igreja) foram contatadas, inicialmente, para que pudéssemos ter acesso aos participantes. Todos os entrevistados tiveram a sua participação consentida por eles próprios e/ou pelos seus responsáveis.

Instrumentos e procedimento

Para a presente pesquisa, coletamos informações dos participantes a respeito de exemplos pessoais de humilhação. Realizamos as seguintes perguntas aos participantes:

1. Você já foi humilhado? Como?
2. Por que essa foi uma humilhação?

Todas as entrevistas foram realizadas individualmente e filmadas na íntegra, em uma sala vazia, cedida pela instituição (escola ou igreja) ou pelo próprio participante, no caso de a entrevista ter sido realizada em sua residência, fato que ocorreu com dois participantes. A filmagem se fez necessária, pois utilizamos a Libras. A filmadora foi posicionada em um ângulo lateral que pudesse focalizar tanto a entrevistadora quanto o participante. As fitas de vídeo utilizadas nas filmagens estão guardadas em nosso arquivo pessoal, cuja utilização se restringe aos objetivos da pesquisa, resguardando a identidade dos participantes. Assumimos o compromisso de utilizar os dados exclusivamente para fins de pesquisa, seguindo os padrões éticos vigentes pelo Ministério da Saúde &– MS (Brasil, 1996b) e pelo Conselho Federal de Psicologia &– CFP (Brasil, 2000). Assim, no presente artigo, os participantes foram denominados por nomes fictícios. Toda vez em que os mencionarmos, o nome será seguido pela idade em anos.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A humilhação é tema reconhecido pelos participantes, visto que 11 (dos 12) tiveram exemplos pessoais a citar. Ressaltamos que apenas uma jovem não reconheceu exemplos de humilhação em sua vida. Logo, os exemplos considerados no presente artigo referem-se àqueles fornecidos pelos demais entrevistados.

A seguir, poderemos visualizar, na Tabela 1, as freqüências dos tipos de humilhação nas duas faixas de idade e o total. As quantidades registradas em cada linha e/ou coluna da referida tabela referem-se ao número de respostas, que foi superior à quantidade de participantes por faixa etária.

Tabela 1. Distribuição de freqüência dos tipos de humilhação pessoal dos participantes conforme a idade

 

Tipo de humilhação

Jovens

Adultos

Total

Exclusão

14

15

29

Injúria, difamação e calúnia

5

10

15

Impossibilidade de comunicação

8

5

13

Violência física

3

7

10

Ausência de apoio

2

1

3

Outros

2

4

6

 

No texto, usaremos a sigla “n”, entre parênteses, seguido por um sinal de igual e um número, para indicar a quantidade de respostas ou de justificativas por categoria. Iniciaremos com os exemplos que se referem à ‘exclusão’ (n=29). Os referidos exemplos são considerados tanto por jovens quanto por adultos e revelam que essas situações são reconhecidas e foram vivenciadas pelos participantes segundo os próprios relatos. Entendemos ‘exclusão’ como um tema que, por ser passível de consideração em áreas diferentes de conhecimento, será tratado com ênfase nas relações interpessoais. Para Jodelet (1999/2004), o nível das relações interpessoais é um dos que podem referenciar o tema da ‘exclusão’. Compreendemos, de acordo com a autora, a ‘exclusão’ como todo processo que impede a participação de um ou mais sujeitos em um determinado grupo, devido a um afastamento ou manutenção desse indivíduo fora do grupo ou pela discriminação do indivíduo ao acesso a bens ou a determinadas práticas sociais.

Houve destaque para exemplos de ‘exclusão’ do processo de ensino-aprendizagem (n=12), dos quais oito foram mencionados por adultos e os quatro restantes foram citados por jovens. Observamos que esses participantes apresentaram um “atraso” no nível de escolaridade, com relação ao padrão estabelecido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996a), em especial os adultos que tiveram, em seu processo inicial de escolarização, experiências com o método oralista. Os participantes que consideram terem sido submetidos a tal método, referem-se com pesar às experiências de dificuldade de aprendizagem, reprovação, repetência e evasão escolar. Nesse sentido, consideramos que houve exclusão do processo de ensino-aprendizagem no relato do participante Mauro (36), relatado a seguir:

“Eu estava na segunda série e todo ano eu repetia a segunda série, todo ano. A professora sempre falava comigo que eu tinha que ficar e dizia para os outros alunos que eles podiam seguir. Eu perguntava sempre: E eu? Fui aprovado? E ela dizia que eu estava reprovado.”

Houve, ainda, exemplos de humilhação por ‘exclusão’ do relacionamento com ouvintes (n=8), a respeito do que os jovens mencionaram cinco exemplos. Por sua vez, nos exemplos de humilhação por ‘exclusão’ do relacionamento com os surdos (n=5) três respostas foram apresentadas por jovens e duas citadas por adultos. Em ambos os casos, foram considerados agressores colegas de escola e familiares dos próprios participantes. Os principais exemplos mencionados pelos jovens caracterizam a tentativa de conversar com pessoas ouvintes, denominadas pelo termo “normais”, nos quais há a presença de colegas em grupo que não aceitam a pessoa surda, conforme o seguinte trecho: “Humilhação é um grupo de ‘normais’ nunca estar com um grupo de surdos porque eu quero conversar com pessoas ‘normais’, mas elas não me querem, então isso me humilha” (Vitor, 18).

Para finalizar as considerações sobre os exemplos de humilhação por ‘exclusão’, houve relatos de exclusão do processo de trabalho (n=4), citados tanto por jovens quanto por adultos. Os participantes se referem à experiência profissional em digitação, mas também à dificuldade em participar do mercado de trabalho. Houve observações sobre a diferença percebida, por um dos participantes, entre profissionais ouvintes e profissionais surdos, sendo os primeiros considerados mais qualificados e mais bem remunerados do que os surdos.

Dando continuidade às categorias de resposta, observamos que os entrevistados vivenciaram situações de ‘injúria, difamação e calúnia’ (n=15), agrupadas em um mesmo bloco por se tratarem de danos contra a honra, entendida como aquele valor que “encerra o respeito e a consideração social aliados ao sentimento ou à consciência da própria dignidade” (Amarante, 1998, p.59). As situações a que os participantes se referiram em grande quantidade tratam de injúrias (n=9), mencionados por jovens e adultos. Lembramos que a injúria é uma ofensa na qual uma pessoa atribui uma qualidade negativa a alguém ou profere xingamentos em relação aos seus atributos físicos ou intelectuais, ofendendo a sua dignidade (Gonçalves, 2002). Nos exemplos de injúria citados, as ofensas principais são relacionadas às capacidades intelectuais dos participantes, bem como ao uso da língua de sinais e a aspectos da oralização. Exemplos tais em que se é chamado de “macaco”, “burro” ou “deficiente mental” caracterizam-se, para os entrevistados, como eventos de injúria.

Em contrapartida, a difamação distingue-se da injúria, pois, ao difamar, uma pessoa atribui a outra um fato determinado que ofende a sua reputação e se consuma quando uma terceira pessoa toma conhecimento do fato (Aranha, 1995). Os exemplos de difamação (n=5) foram citados apenas por adultos. Observamos que a difamação foi proferida, em todos os casos, por pessoas próximas das vítimas, como parentes de primeiro grau ou pessoas consideradas amigas. Um dos exemplos citados por Mariana (45) apresenta o sentimento de vergonha em decorrência da difamação e conseqüente exposição pública, conforme podemos verificar no trecho que segue: “Minha mãe sempre conversava com as pessoas, dizia que tinha uma filha com problema e todos ficavam olhando para mim”. Quanto à calúnia, houve apenas um exemplo apresentado por um adulto. Portanto, com relação aos 15 exemplos de ‘injúria, difamação e calúnia’, 10 foram citados por adultos.

Retomando os tipos restantes de humilhação pessoal, trataremos daqueles referentes à ‘impossibilidade de comunicação’ (n=13), dos quais os jovens citaram oito exemplos e os adultos mencionaram cinco, que ocorreram em locais diversos, tanto em ambientes escolares quanto em outros ambientes sociais. Houve destaque para a incompreensão da oralização por parte do surdo. Esse tipo de ‘impossibilidade de comunicação’ refere-se à dificuldade diária em compreender o que está sendo falado pelos familiares ouvintes, pelos colegas de escola, pelo presidente de celebração em uma igreja ou pelo chefe no trabalho.

Em seguida, apenas jovens, em três respostas, consideraram ‘impossibilidade de comunicação’ devido à incompreensão da língua de sinais por parte dos ouvintes. Outro tipo de ‘impossibilidade de comunicação’ caracteriza a proibição da língua de sinais mencionada em duas respostas de adultos. Essa proibição ocorria no relacionamento com a professora que, por seguir o método oralista, proibia que os alunos surdos se comunicassem por meio da língua de sinais. Mauro (36) relembra sua experiência, conforme podemos observar no trecho a seguir: “Antes, no passado, em 1982, eu ficava com os braços para trás e tinha que falar, falar, falar. Sempre falar. Mais vela que eu tinha que ficar soprando, soprando por muito tempo.”

Ainda restam as considerações a respeito das humilhações devido à ‘violência física’, ‘ausência de apoio’ e ‘outros’. Em relação aos exemplos que envolvem ‘violência física’ (n=10), os jovens citaram apenas três exemplos. Observamos que as humilhações que deixam marcas físicas foram mais relatadas pelos adultos do que pelos jovens, pois, como vimos, esses mencionaram mais exemplos em que a comunicação foi impossibilitada.

Notamos, ainda, que os agressores são pessoas conhecidas pelos participantes, ou seja, colegas, amigos, parentes e professores. Chamaram a atenção exemplos em que há ‘violência física’ cometida por professores. Comentamos, anteriormente, a categoria ‘impossibilidade de comunicação’ devido, entre outras questões, à proibição da língua de sinais. Porém, os exemplos de que trataremos referem-se à proibição da língua de sinais concretizada pelas agressões físicas cometidas por professores que defendiam o oralismo como proposta metodológica, em detrimento do uso da língua de sinais. Lígia (38) comenta esse tipo de experiência em sua vida:

A professora batia na minha cabeça, ela era muito ruim. E eu não sabia nada, ficava abaixo. Aos outros ela dava ajuda, a mim não. Eu não sabia nada, nada! E eu era obrigada a oralizar, recebia tapas nas mãos quando fazia sinais, era obrigada a oralizar. Quando eu tentava entender as coisas, a professora olhava para mim e mandava eu falar. Eu chorava... Ela batia na minha cabeça.”

Observamos o impedimento de uma manifestação do indivíduo, associada a uma punição física, caso ele não respondesse conforme lhe fora solicitado. A proibição recorrente ao uso da língua de sinais, por meio de agressões físicas, parece revelar que esse tipo de comunicação, mesmo coibido, resistia entre os alunos surdos.

Passaremos, então, a um outro tipo de humilhação pessoal identificado nas entrevistas realizadas que é a ‘ausência de apoio’ (n=3). Nesses exemplos, dois relatados por jovens e um por um adulto, houve a manutenção da necessidade em razão da inexistência de auxílio. Tal inexistência pode ter sido vivenciada no relacionamento direto com outra pessoa ou ter sido provocada por toda uma conjunção de elementos socioeconômicos e até mesmo políticos, de modo a transcender o próprio sujeito. Citaremos como exemplo um trecho da entrevista realizada com Mauro (36) que se refere a esse tipo de ausência de apoio, em âmbito conjuntural. Ressalta-se a menção a uma instituição pública como se fosse dotada de uma subjetividade que permitisse um relacionamento com o participante. Vejamos a seguir: “O governo humilhou o surdo. O governo de... (O participante mencionou onde residia quando criança.) Sim, a prefeitura falou: “surdo vai estudar em (outra cidade) e eu vou pagar a passagem? Não, o surdo paga!”. Sendo assim, o não-atendimento da solicitação de apoio é compreendido pelo participante como uma humilhação imposta pelo governo por não ter assumido o transporte.

Por fim, os exemplos que foram categorizados em ‘outros’ (n=6) são exemplos pessoais de situações diversas, tais como ser alvo de preocupação excessiva da própria mãe, ser aliciado para o uso de drogas, zombarias como provocações, alcoolismo do provedor como empecilho para a execução de um projeto da família, presenciar um castigo aplicado em sala de aula e ser criticado pela opção religiosa.

Tendo verificado os tipos de humilhação pessoal, vivenciados pelos participantes, iniciaremos a análise sobre as justificativas de tais exemplos. Ao realizarmos a categorização dos dados, verificamos que eles estão de acordo com os conteúdos ‘condição’, ‘impotência’, ‘evidência’ e ‘contágio’, correspondentes aos propostos por Harkot-de-La-Taille (1999). Embora tenhamos considerado um total de 76 respostas, os participantes apresentaram 75 justificativas. Ressaltamos a existência de dados perdidos, pois alguns exemplos não foram justificados enquanto outros obtiveram mais de um argumento. Dessa forma, temos quatro categorias de justificativas, seguidas pelo registro de freqüência, que podem ser vistas na Tabela 2 e, ainda, observar que não foram encontrados exemplos que tivessem sido justificados pelo ‘fracasso’ ou pela ‘falta moral’, que também constam no quadro teórico elaborado por Harkot-de-La-Taille (1999).

Tabela 2. Distribuição de freqüência das justificativas dos exemplos de humilhação pessoal conforme faixa de idade e total

 

Justificativa

Jovens

Adultos

Total

Impotência

17

31

48

Condição

7

14

21

Evidência

1

3

4

Contágio

1

1

2

 

Verificamos na Tabela 2 que as justificativas que apresentam as características da ‘impotência’ apareceram em um maior número (n=48) com relação às categorias restantes. Em comparação com as idades, verificamos também que existem mais justificativas entre os adultos do que entre os jovens.

Passemos à análise dos argumentos que compõem as justificativas por tipo de conteúdo, a começar pela ‘impotência’ (n=48). A primeira humilhação por ‘impotência’ com a qual nos ocuparemos é a que se refere à ausência de orientação ou auxílio (n=14). Das 14 justificativas que compõem esse tipo, 13 foram mencionadas por adultos. Observamos, ainda, que 10 das 14 justificativas referem-se à ausência de orientação ou auxílio no ambiente escolar, tanto em relação com a interação com o professor quanto na interação com colegas escolares. Com relação à interação com os professores, os adultos referem-se à inadequação pedagógica desses profissionais para atuar com alunos surdos. Existe a observação de que a implantação da língua de sinais na dinâmica escolar modificaria sensivelmente o desenvolvimento dos alunos surdos submetidos à oralização, conforme o trecho de uma das entrevistas, a seguir: “Eu gostaria que ela usasse sinais para me ensinar. Mas ela só oralizava e eu ficava parado, igual a um bobo. Meu colega ouvinte que me explicava. Eu não entendia nada! Eu precisava ser aprovado, eu queria passar de série” (Jonas, 36).

Destacamos as observações de Mauro (36) ao relembrar que, na sua infância, em tempos escolares, a sua professora só oralizava, dispensando um tratamento “igual” ao que era realizado com um aluno ouvinte. O participante ressalta: “ouvinte e surdo são iguais? Não, são diferentes! ... Se o surdo tiver que ouvir, ele fica esperando, vai crescendo e acaba o tempo. É fraco e sabe pouco”. Portanto, o que para Mauro (36) parece ser relevante é o fato de que um professor que tenha a responsabilidade de trabalhar com um aluno surdo deve considerar que a condição desse aluno apresenta aspectos diferentes, os quais precisam ser avaliados de maneira a favorecer o processo de ensino-aprendizagem. Trata-se, portanto, de guiar a atuação pedagógica segundo o princípio da eqüidade que significa, de acordo com Piaget (1932/1994, p. 216), “uma noção mais refinada de justiça... a qual consiste em nunca definir a igualdade sem considerar a situação particular de cada um.”

Um outro tipo de humilhação por ‘impotência’ refere-se ao transtorno ou impedimento na realização de algum projeto (n=13). Das 13 justificativas, nove foram relatadas por adultos, que se referiram a projetos pessoais não realizados devido a uma força exterior à própria vontade. Em alguns casos, houve uma falta do investimento alheio para que alguns projetos fossem bem sucedidos, como é o caso de Hortência (36), que se refere à inadequação pedagógica de uma professora: “Porque eu tentava crescer, mas não conseguia, tentava crescer, mas ficava abaixo. Bater nas mãos e obrigar a oralizar não me fazia entender, eu ficava perdida”. Nota-se que Hortência (36) estava na escola, mas não participava do processo de ensino-aprendizagem (projeto pessoal), não por falta de investimento próprio, pois ela observa que “tentava crescer”.

Existem outros exemplos de humilhação em que há o transtorno ou impedimento, nesse caso, com relação à realização de um projeto profissional. Mariana (45) refere-se a uma situação de impedimento para concretizar o desejo de preencher uma vaga de trabalho, mesmo tendo passado, segundo a participante, com sucesso, por um treinamento. Selecionamos um trecho da entrevista realizada com a participante que diz:

Eu sofri passando pelo treinamento, cresci cada vez mais, e no final perdi! Isso desanima! Eu não gosto! Se você é treinado, aprende cada vez mais, tem sempre que ser encaminhado para uma vaga de trabalho. Eu fui treinada, aprendi e no final não tive vaga” (Mariana, 45).

Embora tenha havido mais justificativas dos adultos com relação à ausência de orientação ou auxílio nos ambientes escolares, um outro tipo de ‘impotência’, referente à falta de interesse dos ouvintes na comunicação com pessoas surdas (n=10), foi mais ressaltado por jovens que forneceram oito justificativas. Esse tipo de justificativa remete à não-comunicação entre surdos e ouvintes devido a um distanciamento ou desinteresse dos ouvintes em estabelecer um tipo de comunicação que seja compreendido pelos surdos, o que pode acontecer entre familiares ou quaisquer outras pessoas. Com relação aos familiares, Mariana (45) relembra quando era identificada pela mãe como uma pessoa com “problema”, do que discorda, segundo o trecho a seguir: “Porque dizer ‘surda, tem problema, é difícil’... A família sabia conversar em sinais, sabia? Era muito difícil. Só dava comida, só”. Se, por um lado, a dificuldade da surdez era vista como um problema, por outro havia a impossibilidade de ouvir, portanto urgia que se estabelecesse um tipo de comunicação que aproximasse os ouvintes familiares e a filha surda.

Ainda no âmbito da ‘impotência’ por falta de interesse dos ouvintes na comunicação com pessoas surdas, houve consideração sobre algumas dificuldades de comunicação no ambiente de trabalho, as quais ocorrem por desinteresse dos ouvintes, em especial dos chefes, em se comunicar adequadamente com os funcionários surdos. Observamos na entrevista realizada com um de nossos participantes a insegurança com relação ao comportamento do próprio chefe, conforme o trecho que segue: “Parece que eu sou bobo. Com ouvintes, ele (o chefe) fica conversando, comigo só oraliza. Quando eu vou fazer meu trabalho, o chefe não fica olhando calado ou elogia. Ele cria confusão e eu não entendo, peço para explicar” (Jonas, 36). Portanto, o vácuo na comunicação desestabiliza o funcionário surdo que, além de ter que dedicar a sua atenção ao trabalho a ser desempenhado, precisa ainda estar atento às mensagens emitidas pelo chefe.

Os argumentos restantes versam a respeito de ‘impotência’ por negação do relacionamento (n=5), risco de morte (n=3), impossibilidade de defender-se de uma injúria (n=2) e impossibilidade de defender-se de uma calúnia (n=1).

Dando continuidade à análise das justificativas, trataremos daquelas que têm em comum o conteúdo referente à ‘condição’ (n=21). Notamos um número maior de justificativas pela ‘condição’ entre os adultos (n=14). Recorremos à Harkot-de-La-Taille (1999) para considerar que a condição é entendida como um elemento conjuntural que caracteriza o sujeito, logo as situações mencionadas apresentam fatores que são externos à sua própria vontade e poder. A ‘condição’ de surdez (n=15) apareceu com maior destaque entre os adultos que mencionaram 10 justificativas do total. Tais argumentos são sobre as particularidades vividas pelos surdos, como o fato de ter uma comunicação própria, enfrentar dificuldades diárias devido à impossibilidade de ouvir, vivenciar dificuldades na aprendizagem e ainda destacar diferenças entre surdos e ouvintes.

Mauro (36) caracteriza o surdo como alguém com capacidades intelectuais abaixo das desenvolvidas por pessoas ouvintes. Em suas palavras, “surdo pensa fraco, tem pouca memória; ouvinte tem mais porque assiste à televisão, jornal, futebol, não tem problema de ouvir, a memória aumenta”. Tais considerações de Mauro (36) não são passíveis de generalização se retomarmos as observações de Piaget (1970/1990) com relação ao desenvolvimento de pessoas surdas. Segundo Piaget (1970/1990), existe um “atraso” no desenvolvimento de crianças surdas se comparadas com crianças ouvintes, porém é necessário que haja “incitamentos coletivos suficientes” (p. 19) que estimulem o desenvolvimento cognitivo dos surdos, visto que esses apresentam construções cognitivas análogas às das pessoas ouvintes. Portanto, sem tais incitamentos, o desenvolvimento cognitivo não seria possível para nenhum indivíduo, tampouco as transmissões e as interações sociais.

As justificativas de ‘condição’ restantes referem-se a outras características como: não ter dinheiro (n=2), não saber nada (n=2), gostar de conversar (n=1) e provocar confusão (n=1).

Outros tipos de justificativa ressaltam a ‘evidência’ (n=4) como motivo para a experiência da humilhação, considerada em três argumentos de adultos. Na ‘evidência’, existe a exposição ao olhar alheio que pode ser provocada pela simples presença do surdo em um local público. Nas justificativas apresentadas, destaca-se um elemento: o uso da língua de sinais em público provocava, em algumas pessoas, a atitude injuriosa de chamar os surdos de “macaco”. Sá (2002) observa que a língua de sinais tem sido desprestigiada, considerada como se fosse um paliativo para encobrir a falta da oralidade, portanto, para algumas pessoas, o “uso de sinais é ‘coisa feia’, ‘coisa de macaco” (p. 107). É o que observamos no trecho retirado da entrevista realizada com Mariana (45) que, na ocasião de humilhação mencionada, houve uma exposição da participante a um público para o qual ela deveria ler um texto, em voz alta: “Só tinha a voz, as palavras eu não conhecia. Porque eu fiquei com vergonha, diziam que eu parecia macaco quando usava sinais, que isso era feio”. Portanto, além de estar em público, fazendo uma leitura oral e incompreensível, a imagem de Mariana (45) estava também associada ao uso da língua de sinais, prática coibida no ambiente escolar pelos professores. Nesse sentido, tanto a oralização quanto o uso da língua de sinais pareciam destacar a participante ao olhar alheio que, além de identificar uma experiência de humilhação, a associa também ao sentimento de vergonha.

Resta considerar a respeito do ‘contágio’ que aparece em duas justificativas, uma ressaltada por uma jovem e uma por um adulto. A humilhação por ‘contágio’ acontece quando há identificação com a humilhação alheia. Nesse sentido, a pessoa humilhada por ‘contágio’ não foi diretamente atingida, porém se sensibilizou com a humilhação vivenciada por uma outra pessoa. Ressaltamos, ainda, que no ‘contágio’, nem sempre a pessoa considerada alvo direto percebeu tal evento como humilhante, mas, ainda assim, a humilhação pôde ter sido vivenciada pelo observador, nesse caso, humilhado indiretamente. É o que verificamos na entrevista de Luciana (19). Nesse sentido, todo um contexto de conflitos e descomprometimento do provedor com os projetos da família pareciam contribuir para que a participante estivesse suscetível à humilhação, mesmo que indiretamente, pois, nas considerações de Luciana (19): “eu não fui humilhada. Eu vi e me senti humilhada”.

Com base nos dados expostos e discutidos, apresentaremos, a seguir, as principais conclusões.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos exemplos pessoais de humilhação, a ‘exclusão’ foi uma das principais respostas dos participantes, porém notamos algumas diferenças qualitativas. Percebemos que a exclusão do relacionamento com pessoas ouvintes ou surdas foram destacadas, em especial, por jovens, enquanto situações de exclusão do processo de ensino-aprendizagem foram marcantes nos relatos dos adultos, como reprovação, repetência e evasão escolar, dificuldade de aprendizagem e submissão ao método oralista.

Em seguida, ‘injúria, difamação e calúnia’ estiveram presentes nos relatos dos jovens e dos adultos, porém os últimos apresentaram um número maior de situações. Sobre injúria, os participantes, jovens e adultos, referiram-se a ser chamado de “macaco” pela utilização da língua de sinais e de “burro” ou “deficiente mental” com relação às dificuldades de aprendizagem da língua escrita, nesse caso, da língua portuguesa. A difamação e a calúnia estiveram presentes apenas nos relatos dos adultos.

A ‘impossibilidade de comunicação’, mencionada mais por jovens do que por adultos, faz parte dos relatos pessoais de humilhação, principalmente no que diz respeito à incompreensão da oralização por parte do surdo, tema marcante nas considerações dos adultos, à incompreensão da língua de sinais por parte do ouvinte destacada apenas pelos jovens e à proibição da língua de sinais ressaltada pelos adultos.

Por fim, observamos que, em todos os exemplos, as justificativas principais caracterizavam o conteúdo da ‘impotência’, sendo esse o argumento que obteve um maior número de registros por parte dos adultos. A ‘condição’ é o segundo tipo de justificativa fornecido pelos participantes, por exemplo, a de surdez. A maioria dos argumentos que caracterizaram a condição de surdez foi destacada pelos adultos, totalizando dez justificativas, enquanto os jovens apresentaram as cinco restantes. Ressaltamos que na humilhação por ‘condição’ ocorre uma inferiorização por razões que estão externas ao poder e à própria vontade da pessoa humilhada, configurando-se, portanto, uma humilhação conjuntural. Os participantes, tanto jovens quanto adultos, consideraram o fato de terem uma comunicação própria e enfrentarem dificuldades diárias devido à impossibilidade de ouvir. Por fim, as justificativas que caracterizam a evidência e o contágio apareceram em menor número nas considerações dos participantes.

Embora a pesquisa que apresentamos tenha sido proposta na área da Psicologia moral, consideramos que os dados obtidos têm impacto sobre a Pedagogia. Vimos que estiveram presentes situações em que a língua de sinais foi proibida, associadas, ainda, a agressões físicas. Houve também destaque para outros tipos de práticas pedagógicas que desestimulavam o aluno, como nas considerações de Jonas (36): “eu abandonei a escola de vez porque, quando eu chegava na escola, eu estava muito cansado e com sono. Eu ia estudar e a professora só oralizava e ficava de costas!” Ou ainda a menção a respeito da ausência de orientação ou auxílio pedagógico, ainda nos dias atuais, que, se houvesse, poderiam influenciar positivamente no processo de aprendizagem. Logo, se não existe um atendimento pedagógico adequado, há a negligência de um direito.

Piaget (1969/1972, p. 123) destaca que os profissionais da educação têm uma “imensa responsabilidade das orientações individuais”, portanto há, na atuação do professor, um compromisso moral com relação ao processo de ensino-aprendizagem. Na ausência desse compromisso, conforme os dados obtidos, é possível verificar a existência da humilhação.

Investigamos pessoas surdas por meio do método clínico, utilizando a língua de sinais e verificamos que a humilhação é um tema reconhecido e faz parte do cotidiano dos participantes. Os dados que apresentamos podem servir de subsídios para a reflexão e o estabelecimento de práticas com pessoas surdas, em especial nos âmbitos educacional e social.

 

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Recebido em 10/07/07
Revisto em 08/04/08
Aceito em 12/04/08

 

 

1 Este artigo é derivado da Dissertação de Mestrado “Vozes do silêncio: juízos morais de jovens e adultos surdos sobre situações de humilhação” de Alline Nunes Andrade, na Universidade Federal do Espírito Santo e foi orientada pela Dra. Heloisa Moulin de Alencar.
* Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Fernando Ferrari, nº 514. Campus Universitário de Goiabeiras/UFES. CEMUNI VI. Vitória &– ES. CEP: 29075-910; E-mail: lineandrade@gmail.com.

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