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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.128 São Paulo jun. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

“A justiça é demorosa, burra e cega”. Percepções de famílias sobre a dimensão jurídica dos crimes de abuso sexual

 

“Justice is slow, stupid and blind”. Families’ perceptions on the juridical dimension of sexual abuse crimes

 

 

Liana Fortunato Costa* I, Maria Aparecida PensoII, Tânia Mara Campos de AlmeidaII; Maria Alexina RibeiroII

I Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília
II Universidade Católica de Brasília

 

 


RESUMO

Buscamos discutir aspectos relativos à experiência que famílias, em situação de abuso sexual, tiveram no trato com a justiça, no contato com o juiz e com os sentimentos decorrentes das decisões judiciais. Estas famílias têm grande dificuldade de compreender o andamento do processo, a burocracia e uma linguagem jurídica sempre muito inacessível. As entrevistas foram realizadas nos domicílios de oito famílias com renda de um a dois salários mínimos e baixa escolaridade. A análise das informações se constituiu num processo de construçãointerpretativa (análise de conteúdo). Quatro zonas de sentido emergiram: “Os juízes sabem o que é certo e errado”; Posição frente ao Juiz: “Nele, eu posso confiar”; O processo é demorado e Minimização do problema, descrédito na criança e abandono da família. As famílias, por falta de conhecimento de seus direitos, colocam ênfase na penalização do infrator e vêem o Juiz como aquele em quem se pode confiar cegamente.

Palavras-chave: Psicologia clínica, Abuso sexual, Psicologia jurídica, Justiça restaurativa, Família.


ABSTRACT

We intended to discuss aspects related to the experience that families, in sexual abuse situation, had in dealing with the justice, in the contact with the judge and with the feelings provoked by judicial decisions. These families had great difficulty to understand the progress of the process, the bureaucracy and juridical language, always very inaccessible. The interviews were made with eight families with an income of one to two minimum wages and low school level at their homes. The analysis of the information constituted an interpretative-construction process. Four meaning zones emerged: “The judges know what is right and wrong”; Position next to the judge: “I can trust him”; The process is delayed and minimizing the problem, discrediting the child and abandonment of the family. The families, lacking the knowledge of their rights, put emphasis on penalizing the perpetrator and see the judge as someone who can be trusted completely.

Keywords: Clinical Psychology, Sexual abuse, Forensic Psychology, Restorative justice, Family.


 

 

Este texto centra-se na apresentação e discussão de alguns resultados de uma pesquisa-ação realizada com famílias, em geral de baixa renda e de periferia urbana, que tiveram criança ou adolescente abusada/o sexualmente e que foram encaminhadas para atendimento em projetos de formação de graduandos em Psicologia, a partir de convênios da Justiça com universidades locais. Nosso contexto de pesquisa-ação, portanto, é o Grupo Multifamiliar (GM) que, em linhas gerais, trata-se de uma metodologia de intervenção psicossocial de cunho sistêmico por nós desenvolvida desde 2002 (Costa, Penso e Almeida, 2005).

As famílias às quais ora nos referimos chegaram aos GMs após o estudo psicossocial dos tribunais de justiça, feito a pedido dos juízes nos casos em que julgam e que envolvem abuso sexual com seus dependentes. Esclarecemos que os juízes utilizam os relatórios deste estudo para melhor subsidiarem suas decisões com relação à guarda de filhos, afastamento de genitores, impedimento de pernoite e, inclusive, para determinar que as famílias tenham atendimento especializado, tais como o oferecido pelo GM.

Em 2005, procedemos a uma grande avaliação dos resultados dos diversos GMs implementados no período de quatro anos, considerando seus vários atores: as famílias, os alunos de graduação que foram capacitados durante a ação, os profissionais da Justiça (mais especificamente os psicólogos e assistentes sociais do setor psicossocial) e os professores supervisores que coordenaram toda ou partes da pesquisa-ação. Tal avaliação visou conhecer os benefícios e limites dessa ação determinada pela Justiça; os efeitos das e nas relações ocorridas durante a sua consecução entre as famílias encaminhadas, entre os membros internos de cada unidade familiar e entre as famílias e os/as profissionais.

Os resultados finais da avaliação, que indicaram positividade nos objetivos dos GMs de aumentar o potencial protetor das famílias em relação a suas crianças e adolescentes, estimulando-as a refletirem conjuntamente sobre os acontecimentos abusivos, a buscarem estratégias de defesa e a se inserirem em redes de serviços e comunitárias, foram satisfatórios e, agora, vêm sendo divulgados em publicações e eventos científicos (Costa e Lima, no prelo). No presente texto, porém, focaremos um ponto específico dessa grande avaliação, o qual se mostrou digno de uma atenção especial devido à sua riqueza e complexidade: as percepções das famílias sobre a dimensão jurídica dos crimes de abuso sexual. Conseguimos identificar este ponto a partir da entrevista de avaliação dirigida às famílias, a qual visava conhecer: a) participação familiar na intervenção; b) mudanças ocorridas na relação familiar após a intervenção e c) questões sobre o relacionamento com o processo, com a justiça e com o abusador.

Os resultados pertinentes aos itens a e b do instrumento não serão aqui discutidos, uma vez que foram objeto de outros textos. Nas páginas que se seguem, nossa intenção se limita a analisar os dados pertinentes ao item c, os quais compõem uma totalidade em si no que se refere à experiência que estas famílias tiveram no trato com o processo criminal ou cível, com os meandros da justiça personificados principalmente na figura do juiz e com os sentimentos decorrentes do contato com as decisões judiciais que envolveram a figura do agressor. Além disso, buscaremos compreender como percebem o tempo decorrido desde o início do processo, seu andamento e as conseqüências de terem que conviver com uma burocracia e uma linguagem jurídica que normalmente é muito inacessível para elas.

 

A FAMÍLIA COMO SUJEITO PERANTE A JUSTIÇA NOS CASOS DE ABUSO SEXUAL

Autores da Psicologia Jurídica vêm escrevendo sobre a importância de se conhecer os significados da participação das famílias nos processos que tramitam na Justiça. Cesca (2004), por exemplo, se interessa em discutir a participação do psicólogo nesse contexto, questionando qual seria uma atuação que pudesse melhor dimensionar a violência intrafamiliar, de modo a preservar prerrogativas e responsabilização dos sujeitos em questão. Outros como Brito, Ayres e Amendola (2006) e Cardoso (2005) enfocam a criança e aprofundam o significado de seu protagonismo ativo nos processos, bem como as conseqüências da escuta de crianças e adolescentes para as decisões finais do processo. Brito et al. (2006) questionam o valor e o uso de se dar voz à criança e o que isto pode representar, ou não, em termos de deslocamento de suas prerrogativas de proteção e cuidado. Cardoso (2005) buscou conhecer, por intermédio da análise de processos envolvendo crianças, como a Psicologia vem contribuindo para a concepção dos direitos desses sujeitos que aguardam decisão judicial e poderão ter suas vidas definitivamente orientadas por estas decisões.

Em todos estes trabalhos notamos a não dissociação entre a criança e seus vínculos familiares. Esta constatação aponta para a necessidade de se conhecer melhor qual compreensão tem a família sobre sua experiência de ser avaliada e encaminhada enquanto protagonista de um processo judicial. Temos assumido o risco ético de defendermos a intervenção judicial frente a casos de violência intrafamiliar e de violência sexual contra crianças e adolescentes, em função da permanência da condição de vulnerabilidade que estes sujeitos apresentam a partir do momento em que a denúncia é realizada, mas que as providências cabíveis não se seguem.

A este respeito Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005) e Habigzang, Azevedo, Koller e Machado (2006) ao analisarem a funcionalidade da rede de atendimento, apontam vários fatores que são de ordem legal, social e institucional e que tendem a banalizar, negligenciar, confundir e postergar as aplicações de medidas de proteção às vítimas de abuso sexual. Esta rede de apoio tem o desafio de dar visibilidade ao fenômeno, bem como oferecer intervenções de modo a não permitir a continuidade das condições estressantes e danosas as quais favorecem o recrudescimento da violência sofrida, bem como deixa seqüelas psíquicas nas vítimas a ponto de comprometer o seu desenvolvimento em idades futuras dentro de parâmetros mais harmoniosos e equilibrados.

Esta rede se constitui no mecanismo de garantia de direitos que estes sujeitos abusados possuem, cujo processo judicial tem um papel muitas vezes decisivo em sua promoção. Por isso é importante conhecer as significações construídas pelas famílias e pelas crianças durante sua “passagem” pelo Judiciário. Neste sentido, queremos contribuir apontando e inspirando-nos em uma nova orientação jurídica, a Justiça Restaurativa (Pinto, 2005), que se constitui numa nova abordagem conceitual e que se interessa mais pelo curso do processo em cada pasta jurídica, pela compreensão do que se passa com a vítima e não só com o réu, pela restauração dos direitos desta vítima, numa perspectiva de humanização de todos os sujeitos envolvidos no processo criminal. Alguns países como a África do Sul, Nova Zelândia e o Canadá já oferecem modelos de aplicação deste novo paradigma da Justiça, no qual os valores se inclinam para uma maior participação dos envolvidos nos casos. Tem-se, em particular nessa linha, uma ênfase em resoluções a partir da cooperação, numa perspectiva de restauração e inclusão das partes beligerantes, da responsabilização consciente do infrator e da ocupação central do processo pela vítima, possuindo aí papel e voz ativos (Maxwell e Morris, 2004).

Na Justiça Restaurativa (Jesus, 2005) o Direito se volta mais para a condição de dignidade da existência humana do que para a preocupação com os processos punitivos concernentes ao transgressor. O maior questionamento se dá pelo envolvimento das partes interessadas, daqueles que têm um vínculo emocional com os sujeitos disputantes e que podem colaborar no sentido de agregar possíveis soluções, como é o caso direto da família. Nas situações de violência especificamente, a Justiça Restaurativa vem preconizar que se valorizem os núcleos comunitários como forma de apoio e restauração da cidadania. No entanto, sabemos que as famílias da nossa pesquisa-ação enfrentam muitas perdas e migrações entre localidades, por conta de se afastarem dos abusadores, já que nem sempre a Polícia, a Justiça e/ou o Estado suprem as necessidades de proteção e de ordem econômica. Outro aspecto importante é que este paradigma deve atuar em conexão efetiva com a rede de assistência social e de saúde para garantir encaminhamento de vítimas e infratores para atendimento específico, e aí se insere a demanda para atendimento psicológico para ambas as partes (Pinto, 2005).

De acordo com o quadro apontado acima, compreendemos que a adoção dos princípios da Justiça Restaurativa está configurando um espaço novo de atuação para os profissionais das Ciências Humanas e Sociais, em especial para o psicólogo, nas mediações sobre conflitos, na criação de metodologias de atendimento grupal/comunitário, como também nos estudos de novas abordagens sob a égide de uma parceria com o sistema judiciário (Baratta, 1987, 2002; Jesus, 2005; Pinto, 2005).

 

MÉTODO

Esta pesquisa teve um delineamento de natureza qualitativa. Isto quer dizer que qualitativo é todo o processo de produção de conhecimento, não apenas o instrumento ou a técnica utilizada na coleta de informações. Buscamos na pesquisa qualitativa, como coloca Demo (1998), enfatizar uma maior compreensão do que é o humano nas histórias das pessoas envolvidas em situações de abuso sexual. As etapas, por meio das quais construímos nosso objeto de investigação, vêm sendo tomadas como um processo integral e global, constituído a partir do estabelecimento de relações complexas entre nós, pesquisadoras e técnicas, e os sujeitos alvos de nossa intervenção e pesquisa. Além disso, é importante ressaltar o fato de que os instrumentos de coleta também colocaram os sujeitos entrevistados diante de uma reflexão, em cujo curso apareceram pensamentos e emoções diversas daquelas que eles mesmos estavam cientes, passando a fazer parte de seu discurso durante a investigação.

Contexto

O contexto em que nossa proposta de intervenção emerge tem a característica de ser um atendimento contínuo e articulado a famílias, a partir do encaminhamento judicial. Esse encaminhamento é feito pela equipe do setor psicossocial forense, quando percebe ser relevante a continuidade de um atendimento a essas famílias, sendo dada essa conclusão em seu parecer, a qual, na maioria das vezes, é acatada pelos juízes responsáveis pelos casos. A nosso ver, esses magistrados possuem um papel fundamental no encaminhamento dessas famílias, pois, com sua autoridade, as intimam e recomendam o prosseguimento nos atendimentos. Nesse momento, embora saibamos que não existe uma obrigatoriedade prevista em lei para tal atendimento terapêutico, notamos o quanto a figura da justiça, encarnada em seus representantes, simboliza a autoridade, a força, a lei, frente às famílias, asseverando a importância do trabalho (Selosse, 1989). A perspectiva do entendimento de obrigatoriedade não permeia os trâmites jurídicos e a sugestão do atendimento psicológico dada pelo juiz não é fundamentada nesses termos. Enquanto a família está sendo avaliada no setor psicossocial forense, apenas a dimensão de estudo psicossocial com possibilidades terapêuticas está presente (Cirillo, 1994). É em função do relatório realizado neste contexto, que as famílias são encaminhadas para uma intervenção psicossocial, num contexto de uma parceria universidade/tribunal de justiça.

O que estamos denominando como atendimento psicossocial é o Grupo Multifamiliar que se fundamenta nos seguintes aportes teóricos: a) da Psicologia Comunitária, visando o trabalho em equipe com diferentes saberes, científicos e populares (Santos, 1999), e o enfoque da Psicologia Social Crítica e Histórica (Lane e Sawaia, 1995), percebendo o ser humano em construção, que é constituído e constitui o meio em que se insere; b) da Terapia Familiar, tendo a visão de família enquanto sistema, sendo a relação o ponto focal do trabalho, priorizando o inter-psíquico, não o intra-psíquico, e utilizando os recursos sistêmicos como a circularização e provocação (Minuchin, Colapinto e Minuchin, 1999); c) do Sociodrama, em que o grupo é o protagonista e as famílias possuem objetivos comuns além de se identificarem mutuamente (Moreno, 1993); e d) da Teoria das Redes Sociais que enfoca a interação humana com a troca de experiência, desenvolvendo a capacidade auto-reflexiva e autocrítica (Sluzki, 1996).

Participantes

De 2002 a 2005 atendemos a quase 50 famílias. Destas, conseguimos refazer algum indício de contato com 28 famílias e finalmente conseguimos, de fato, entrar em contato e entrevistar somente 8 famílias. Tais famílias tinham em comum o fato de terem sido atendidas nos dois últimos semestres do oferecimento do Grupo Multifamiliar. Nossa dificuldade em acessar estas famílias se deve à grande mobilidade que elas apresentam, seja por já terem mudado mais de uma vez após o último atendimento, ou por voltarem para suas cidades de origem, ou seja, porque os vizinhos não sabem informar nada sobre o seu paradeiro. Trata-se de famílias de baixa renda (um a dois salários mínimos), moradoras de assentamentos, invasões, lixões e loteamentos em péssimas condições de sobrevivência. Muitos de seus membros são imigrantes e encontram-se desempregados, vivendo uma intensa situação de exclusão social. Um aspecto que nos impressionou foi que, mesmo durante o andamento do processo judicial, as famílias já mudam de domicílio sem nem mesmo avisarem à justiça. Percebemos que o desenvolvimento de pesquisas de avaliação com essa população carente deve ser feito imediatamente após a intervenção ou o grupo de pesquisa deve seguir mantendo contato permanente com as famílias no período que se segue ao término dos atendimentos. Também entendemos que esta última opção pode se mostrar algo complexo e delicado, pois corremos o risco de continuar a oferecer, indiretamente, nossa presença em seu meio, mesmo que não estejamos mais oferecendo atendimento psicossocial direto. Nestas oito famílias, os adultos tinham o primeiro grau incompleto e as crianças e adolescentes estavam cursando o primeiro grau. A renda mensal situava-se entre um e dois salários mínimos. Descrevemos na Tabela 1 as pessoas que estavam presentes por ocasião da entrevista.

Tabela 1. Descrição dos membros da família durante a entrevista

 

 

O instrumento completo foi uma entrevista semi-estruturada com um roteiro dividido em três partes: perguntas sobre a participação familiar na intervenção; perguntas sobre mudanças na relação familiar pós-intervenção; perguntas sobre as relações estabelecidas entre as famílias, a Justiça (por intermédio dos seus operadores, do processo em si, etc) e o abusador. Em relação a esta última parte, o instrumento continha perguntas mais detalhadas, tais como: a criança, o adolescente ou alguém da família segue tendo algum relacionamento com o abusador? Alguém da família acompanha o processo no que diz respeito ao que aconteceu com o abusador? Em caso afirmativo, como a família vem acompanhando o processo na justiça? Quantos anos o processo levou até ser finalizado? A decisão do juiz foi satisfatória? A família acha que houve justiça? Se a família não ficou satisfeita com o resultado do processo, qual resultado vocês acham que seria justo?

Procedimento

O procedimento metodológico adotado refere-se à realização do contato e da entrevista com as famílias em suas próprias residências. O âmbito desta pesquisa tem sua realização fora do contexto judicial. Procuramos telefonar para marcar a entrevista sempre que possível, em caso contrário fomos à residência nos fins de semana. As entrevistas foram realizadas preferencialmente com quem participou da intervenção, porém convidamos a responder todos que estavam em casa, inclusive crianças e adolescentes. Esta orientação se deve a que compreendemos que nosso cliente é a família como um todo (Minuchin, 1982), e mesmo aqueles que não estiveram presentes nas intervenções participaram de seus efeitos, pois nosso foco de atenção é o jogo relacional que se dá entre os membros da família e este jogo é contínuo e permanente. Além disto, o GM é um grupo aberto no qual um participante pode ter ido a uma sessão e faltado à outra. As perguntas foram dirigidas aos adultos e as crianças delas participaram confeccionando desenhos como parte das respostas, mas que nos resultados aqui expostos não foram considerados. As entrevistas foram realizadas por bolsistas de Iniciação Científica, alunos integrantes do projeto, e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da universidade em que os professores estavam vinculados, recebendo o registro nº 027/2005. Todos os cuidados de voluntariedade e sigilo foram seguidos com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Análise das informações

González Rey (2005) propõe uma perspectiva da análise de conteúdo que contém três aspectos essenciais: o processo de construção e o caráter interpretativo das informações; a ênfase no aspecto relacional entre a subjetividade do pesquisador e a dos entrevistados, bem como a produção do conhecimento propriamente dita. Esta proposta configuracional entre os sujeitos envolvidos na pesquisa, assim como a produção de idéias e reflexões, apóia-se na expressão de indicadores, que revelam os fenômenos e são unidades processuais que abrangem recortes e ajustes epistemológicos, de acordo com o problema proposto. Os indicadores são produzidos durante o próprio processo de investigação e análise, constituindo-se em ferramentas essenciais para a definição das zonas de sentido. As zonas de sentido são constituídas pela integração dos indicadores, produzindo sentidos e compondo conjuntos de interpretação, que não possuem a pretensão de generalização, mas produzem um conhecimento que é contextual, próprio da experiência aqui relatada. Após o procedimento de análise, construímos quatro zonas de sentido: a) “Os juízes sabem o que é certo e errado”; b) Posição frente ao Juiz: “Nele, eu posso confiar”; c) O processo é demorado; e d) Minimização do problema, descrédito na criança e abandono da família.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

“Os juízes sabem o que é certo e errado”

No que diz respeito às percepções das famílias sobre as decisões dos juízes, observamos que podem ser muito diversas. Mas, de forma geral, podemos dizer que se sentem satisfeitas e compreendidas pela justiça, com ênfase na figura do juiz, se o processo termina em condenação. Porém, é importante apontarmos que é muito difícil para elas fazerem diferenciações entre as diversas medidas judiciais, isto porque muitos são os recursos que podem ser impetrados durante o processo e as famílias não têm conhecimento jurídico para identificá-los. “Ele pegou 2 anos e 4 meses, mas ele não cumpriu nem os quatro meses, só dois porque disse que ele tava de regime de comportamento. Ele foi preso, passou quatro meses na cadeia, aí o advogado conseguiu a liberdade para ele.”

Em contrapartida: “Fiquei satisfeita, pois ele não pode ver as meninas. Mas eu espero que tenha justiça, Comigo nem tanto... mas mesmo é com as meninas... eu creio que ele vai pagar... só Deus que pode castigar ele, eu não tenho esse poder”. Mas na Terra a possibilidade de justiça vem da decisão do juiz. As famílias parecem, por falta de conhecimento de seus direitos, concordarem com os parâmetros de uma justiça clássica, que coloca ênfase na penalização do infrator. Ainda não há na justiça brasileira de maneira sistematizada e totalizadora de suas práticas, salvo algumas importantes iniciativas pontuais (por exemplo, nas cidades de Porto Alegre/RS e São Caetano/SP), uma dimensão reparatória da violência sofrida, que busque compreender o que se passa com a vítima, um reconhecimento por parte do sistema judiciário dos danos sofridos e um conseqüente encaminhamento para ajuda (Cesca, 2004).

O título desta zona de sentido foi dado em função de nossa observação das condições de submissão, pronto atendimento e aceitação das decisões dadas pelo juiz, como se a discriminação do que é certo e errado esteja nas mãos dos juízes e às famílias só resta esperar. Buscamos refletir uma condição de cidadania tutelada que é apontada por Demo (1995) e que identificamos neste grupo de famílias.

Moreira das Neves (2001), Juiz Cível português, fala que é tempo do Direito substantivo tomar definitivamente o seu lugar, trazendo oportunidade para as vítimas, com a associação dos interesses públicos e privados em causa. Isto quer dizer, abranger uma área de proteção que viabilize o reconhecimento do sofrimento da vítima e do agressor, juntamente com a efetividade da responsabilização do agressor.

Outra fala nos chama atenção, por conter um misto de confusão sobre como se posicionar perante a agressão, por podermos caracterizá-la como uma fala conformista ou ainda uma fala de negação dos eventos vividos: “Seria bom outro resultado. Ou então mandar me chamar, né” e fala: “Oh, mãe, nós não vai mais prolongar nesse processo, porque isso aqui não houve nada, né? Talvez foi ‘fantasia’ da menina, às vezes ela ficou nervosa ou ela confundiu tudo, né?”. Estamos diante de aspectos delicados sobre como a angústia da mãe pode levá-la a desqualificar os fatos: primeiro seu desejo de que seria tão bom se nada tivesse acontecido e, em segundo lugar, é como se esta mãe se colocasse numa posição favorável a aceitar uma argumentação de que tudo não passou de fantasia. Esta vulnerabilidade da mãe é uma condição extremamente preocupante, pois faz parte do conjunto de argumentos utilizados pelos advogados nos casos abuso sexual sem prova física.

Nós acompanhamos. Ele foi chamado, ele pagou as três cestas básicas. Teve uma audiência, só”. “Injustíssima! Olha, essa pessoa foi muito leve, porque, ou ele ia pagar as cestas básicas, ou ia prestar serviços à comunidade uma semana, duas semanas. Então, porque não aumenta? Eu acho que deveria ter sido investigado, deveriam ter feito um trabalho mais técnico, porque lá nos autos está cheio de contradições... então a justiça é demorosa, burra e cega. Ninguém quer trabalhar! ... Porque ele é um psicopata!

As respostas das famílias sobre suas percepções da decisão ou da conduta do juiz são contraditórias, pois, ao mesmo tempo em que algumas se sentem satisfeitas pelo abusador ter recebido uma pena pecuniária, só sentem que foi feita Justiça, quando ele foi recolhido ao sistema prisional. No entanto, o que nos espanta é que as famílias não se vêem em condições de reclamar ou recorrer. Por um lado, há uma aceitação tácita de uma pena menor (como se tratasse de um crime de menor poder ofensivo), mas por outro há uma confiança na conduta do juiz e na decisão por ele tomada.

De qualquer forma o que se observa são famílias com dificuldades de se enxergarem como cidadãos detentores de direitos fundamentais. Acostumados à lógica do favor, sujeitados como objetos que apenas absorvem um conhecimento-regulação (Santos, 2000), não reivindicam, nem questionam as decisões judiciais. Como afirma Carreteiro (2001), as pessoas que pertencem às camadas mais pobres da população (consideradas pela autora como desfiliadas, por não estarem inseridas em contextos de pertencimento social) vivem uma cidadania precária ou negativa. Sendo que, neste último caso, conhecem apenas os limites formais e coercitivos do Estado, não se sentindo possuidoras de direitos (Batista, 1998). Isso as impede de desenvolverem uma consciência crítica para uma atuação cidadã e as torna subalternas, vivendo de favores do Estado. Excluídas do sistema penal, enquanto atores no processo decisório, delegam ao Juiz o poder absoluto sobre a decisão do que fazer com quem as prejudicou.

Posição frente ao Juiz: “Nele, eu posso confiar

Na ausência de sistemas formais e informais de proteção e garantia de direitos, a pessoa do Juiz assume o lugar daquele em que se pode confiar cegamente. Isto parece acontecer, não só com os adultos, mas também com as crianças e adolescentes, exemplificado na fala de uma mãe: “Eu nem participei da audiência porque a minha filha fez uma exigência: pra ela falar, ela queria falar só com o Juiz. Então o Juiz falou assim: “Não pode deixar só eu, tem que deixar também o promotor e o advogado de defesa”. Então saíram todos, ela não deixou ninguém; quer dizer, ninguém da família, nem os amigos... Ninguém! Mas eu acho que foi tranqüilo porque depois disso ela saiu, ela não ficou lá pra ficar ouvindo, sofrendo. Eu acho que foi bom”. Esta fala de uma mãe sobre como o juiz acolheu o pedido da criança de ser ouvida por ele pode ser interpretada como uma ação que tranqüiliza a mãe e lhe dá a certeza de que ele agiu com decoro, valorizando a fala da filha. Porém, pode também ser questionada como mais um aspecto presente na cadeia de revitimizações que o sistema policial e judicial promove com crianças e adolescentes abusadas sexualmente. A este respeito, Rozansky (2005) assume uma posição categórica de criticar os juízes que não aceitam a diminuição das oitivas, exigindo que a criança esteja na frente do advogado, do promotor e finalmente do juiz, sempre tendo que repetir as mesmas histórias.

Esta mãe continua: “[Foi preferível] do que está todo mundo presente e ela ter que sofrer aquele repreendimento, de estar todo mundo ouvindo? Inclusive foram duas audiências, mas na primeira ela não falou... [Na primeira] todo mundo estava: eu, a avó, a tia... E a gente falou: ‘Fala filha!’ E ela não falou. Então disseram que iam marcar a segunda audiência, porque eu conversava com ela pra ela falar. Então, na segunda ela disse: ‘Mãe, eu vou falar, mas só se for eu e o Juiz’. Era uma Juíza... Ela foi lá, a Juíza chamou e disse que ela ia ser a juíza da vez... ... Deu a roupa dela pra ela (a juíza deu sua toga para a menina vestir), mandou ela sentar na cadeira e disse: ‘Agora é você! O que você quer?’ Então, ela falou que queria que todo mundo saísse. Mas ela falou no ouvido da Juíza. Esse foi o dia que ela resolveu falar.”

Esta “confiança” que as famílias, e também as crianças e adolescentes, depositam no Juiz está relacionada à existência de uma relação verticalizada entre o Sistema de Justiça e a comunidade, com papéis previamente definidos, onde o poder de solução para as mazelas familiares e os sofrimentos de seus membros é atribuído a um outro poderoso e mais capaz de encontrar alternativas para solução de suas dificuldades. Nesta situação específica, relatada na fala da mãe acima transcrita, nos questionamos sobre a fragilidade do vínculo entre mãe e filha, que impossibilita uma conversa franca e sincera sobre o que está acontecendo ou que aconteceu. Esta zona de sentido busca chamar atenção para a diferença que as famílias expressam em uma confiança que está depositada na figura pessoal do juiz e não na Justiça como sistema de garantia de prerrogativas e, principalmente, como um sistema restaurador da proteção à criança ou ao adolescente.

Porém, antes de responsabilizar essa mãe pela sua dificuldade em estabelecer um diálogo franco e honesto com sua filha, também é preciso lembrar que este é um momento de vivência de uma “angústia social”, manifestada na solidão e no isolamento das pessoas, que se sentem impotentes e sem condições de enfrentar este processo. Esta angústia é acentuada pela postura do Estado, que coloca nas mãos dos cidadãos o problema, como se este devesse ser resolvido pela sociedade sem, ou com a mínima, proteção estatal. Neste contexto, o que ainda se coloca como esperança é o Sistema de Justiça, em seu aspecto normatizador e fiscalizador do cumprimento das obrigações e direitos mútuos entre o Estado e os cidadãos.

O processo é demorado

Aqui discutimos como o tempo de duração do processo tem conseqüências para a família, porque, muitas vezes, até que o processo se encerre, a família e a criança continuam tendo contato com o abusador e passam a serem desacreditadas pela comunidade ou pela família extensa (Costa, Penso e Almeida, 2006; Habigzang et al., 2006). Uma queixa sempre diz respeito às dificuldades que as famílias têm de compreender a linguagem presente no processo que contém termos e jargões unicamente inteligíveis para quem tem conhecimento da área do Direito.

Entretanto, apesar da demora e das dificuldades de compreensão do que acontece na tramitação do processo, os familiares ainda conseguem acompanhar os mesmos. Conhecendo a realidade destas famílias, que enfrentam problemas financeiros e de moradia distante dos Fóruns, devemos considerar como heróica a sua persistência em saber o que se passa com o processo, bem como a sua disponibilidade em atenderem às convocações para novas audiências. “No começo minha mãe acompanhava, mas agora só eu. Toda vez que acontece alguma coisa em relação ao processo eu aviso a ela.” “Eu vou nas audiências, eu não faltei nenhuma. Quando eles chamam as meninas eu levo... é assim que eu acompanho.” “Aqui mesmo quem acompanha é só eu mesmo. Quando chega intimação aqui, que eu preciso vir, aí eu vou, né.” “Acompanha pra ver se ainda está lá; sempre tem gente que acompanha pela internet”.

Por outro lado, os testemunhos sobre o tempo em que estão aguardando uma decisão judicial é preocupante e a questão que se coloca é a seguinte: como podem manter condições mínimas de saúde emocional se há o período de 3 a 5 anos sem conhecerem a sentença ou saberem se finalmente “foi feita justiça”? “Vai fazer 3 anos de andamento... A minha cunhada é que vê; ela fala que tem sempre um pedido do advogado dele pra aguardar em liberdade, pra estar cumprindo em liberdade, então, eu acho que não encerrou. Assim, pra gente acabou, mas pra ele acho que continua tentando”. “Eu acho que foi uns dois anos.” “Começou mais ou menos em setembro ou outubro do ano passado, quando chamaram pra audiência. Dei entrada no processo no mês de março, depois do aniversário dela. Quando ela me contou o que tinha acontecido, ela não queria de jeito nenhum, mas eu levei a contra gosto e aí um agente lá mandou ela entrar e outras mulheres entraram, examinaram e falaram: vai pro IML. Então não foi nem um ano, março a outubro.” “Ainda não finalizou, está na mesa do desembargador. Agora são três desembargadores quem vão julgar, eles falaram que tem que aguardar que é demorado, a gente tem que ter paciência.”

Bourdieu (2001) nos ajuda a entender estas questões sobre o tempo na justiça, quando aponta a relação entre tempo e poder. Nossa experiência em acompanhar famílias que chegaram a ficar até cinco anos sem uma decisão sobre a condenação do abusador, nos leva a concordar com este autor, de que a relação da Justiça com o cidadão é de dominação na medida em que este fica à espera, sem controle, nem possibilidade de interferência, do tempo que a Justiça levará para dar seu veredicto. Durante esse período a família espera, de forma submissa, sem satisfação, sem uma condição de ressignificação da sua experiência, desde a violência sofrida até a violência da não decisão. O tempo de espera apenas consolida uma condição não cidadã que as famílias possuem frente à instituição. Como ilustra o relato das mães: “Ninguém da Justiça me ligou, daí eu não sei se é verdade o que ela me disse ou é mentira. Quando teve a audiência eles pediram para eu aguardar... eu estou aguardando, mas não sei se realmente ele está preso” “eu acho que ele não foi finalizado, eu não entendo... depois ... o juiz me chamou só mais uma vez e disse que eu aguardasse em casa que seria o julgamento final. Antes de ontem o oficial veio aqui atrás dele [do réu]”.

Esta relação de poder é reforçada pelo fato do Sistema de Justiça ser concebido como o espaço privilegiado para o discurso da Justiça, não estando habilitado para esse discurso quem não detém o saber necessário do Direito e a linguagem técnica inacessível à comunidade em geral. Assim criam-se entraves epistemológicos e relacionais quase intransponíveis aos demais segmentos sociais e a relação com a comunidade se torna verticalizada e sem possibilidades de diálogo. Neste modelo, como a família será capaz de compreender a burocracia do sistema judicial e sua linguagem, se não possui os recursos necessários para tal?

Minimização do problema, descrédito na criança e abandono da família

O fato de muitas situações de abuso sexual não terem prova física e material, o que habitualmente é muito importante para a Justiça, faz com que o relato da criança seja desacreditado, gerando um sofrimento adicional. Isto aparece no relato de uma das mães, sobre o que aconteceu com a sua filha: “Mas, agora pro problema da menina eu não sei porque, uns falam que não deu nada, eu não posso dizer, porque eu não vi.”

Esta é uma situação muito séria. Em alguns casos não é sequer aberto o processo, pois a Justiça não considera o relato da criança suficiente para provar o ato cometido. Além disso, há uma minimização do problema derivada de uma compreensão equivocada do senso comum de que os prejuízos no desenvolvimento da criança ou do adolescente só ocorrem quando existem danos físicos capazes de se observar: “Não teve processo. Vitória diz que foi molestada por ele. Ele já diz que ela apenas viu ele se masturbando. Eu até conversei com a moça morena (Grupo Multifamiliar) se seria possível conseguir uma vaga para ele também, pois eu acho que alguma perturbação ele deve ter, pois fazer isso na frente de duas crianças de 5 e 6 anos, não é normal. No meu caso fui eu que procurei ajuda-atendimento”.

Silva Junior (2006), em uma pesquisa com prontuários de crianças abusadas sexualmente, pertencentes a um Instituto Médico Legal, constatou que as avaliações contidas no exame de corpo delito, referentes às situações de atentado violento ao pudor e conjunção carnal, quando realizadas isoladamente, não oferecem condições de se aferir e indicar os danos psíquicos que crianças ou adolescentes sofrem e que podem ser expressos imediatamente ou mais tarde em seu desenvolvimento. Este autor chama atenção para a falta de mecanismos nos critérios de tipificação dos crimes sexuais, de modo a que seja possível identificar e apontar os graves danos psíquicos sofridos, e o reconhecimento destas conseqüências para as vítimas. E como acrescenta Cesca (2004), os casos de abuso sexual que não apresentam provas conclusivas têm graves conseqüências de revitimização para as crianças e adolescentes.

É importante ainda ressaltar que, apesar das dificuldades de compreensão do processo e da demora no estabelecimento da sentença, as mães não perdem a esperança de que seja feita justiça, no sentido da condenação do abusador: “Eu acho que fez um ano. Eu só espero que tenha resultado. Porque eu sou uma pessoa que, querendo ou não, eu confio na Justiça, porque, se eu não acreditasse, eu ia lá e colocava minhas mãos nele. Agradeço muito a Deus de ter me guardado. Porque na hora da raiva qualquer um é capaz de tudo. Não adianta a gente dizer ‘eu nunca vou fazer isso’ porque na hora da raiva, acabou. Depois que passa, não, a gente pede a Deus força para continuar”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As quatro zonas de sentido por nós apreendidas expressam, de modo sintetizado, a imagem e a percepção que as famílias possuem da Justiça, em especial nos casos de abuso sexual com suas crianças e seus adolescentes. Afinal, a lentidão com que tais casos são tratados, a falta de estratégias efetivas de proteção e a desconsideração das conseqüências provenientes dos danos psíquicos causados pelo abuso sexual e não somente dos danos físicos e materiais, acaba por confirmar a fala de uma de nossas entrevistadas: “A justiça é demorosa, burra e cega”. Esta curiosa frase, que também serve de título a este artigo, acaba por ser o supra-sumo de tal visão das famílias e, evidentemente, a nos conduzir para a realização urgente de uma séria e crítica reflexão sobre a Justiça e o seu poder descomedido.

Para complementar e avançar com essa reflexão aqui iniciada, gostaríamos de apontar o que Sanderson (2005) indica como uma necessidade da sociedade e, em especial dos tribunais, atentarem para um crime inovador que é o aliciamento de crianças e adolescentes para exploração sexual. Vivemos um momento de atenção para o poder que a internet (indicada aqui apenas como exemplo de uma ampliação do limite de aliciamento de crianças) tem no contato com a criança e com o adolescente. O aliciamento pela internet transpõe fronteiras socioeconômicas, pois as crianças têm acesso à internet no ambiente da escola e nas vizinhanças. Daí surge a premência de que a Justiça se adeqüe e promova uma reforma em seus mecanismos de investigação e responsabilização para este tipo de crime.

Também é necessário que a Justiça perceba sua participação e a importância nas designações para o oferecimento de atendimento terapêutico para as vítimas de abuso sexual e suas famílias, bem como para os próprios agressores sexuais. Para tanto, é imprescindível que as presidências e corregedorias dos tribunais possam se sensibilizar para a qualificação de seu pessoal técnico no sentido de receber uma capacitação específica e um suporte intra-institucional para a detecção e acompanhamento destas situações de abuso sexual. Em especial, vale ressaltar a importância do desenvolvimento de capacitações e sensibilizações para os juízes, no sentido de que possam melhor contextualizar os casos julgados na perspectiva de dinâmicas familiares abusivas conflituosas e transgeracionais, da falta de condições psíquicas e econômico-culturais dos adultos em protegerem seus filhos, assim como na perspectiva de se aproximarem mais da vivência e dos sofrimentos dessas famílias, a começar por facilitarem o diálogo com o uso de termos e expressões lingüísticas próprias do universo das famílias. Haja vista que é depositada grande confiança na pessoa e no papel desempenhado pelos juízes, no seu senso de justiça e conhecimentos formais, por parte dessas famílias jogadas muitas vezes à própria sorte.

E, finalmente, enfatizamos a importância de se dar todas as atenções que o Sistema de Justiça possa proporcionar às vítimas de abuso sexual, ao restabelecimento de seus direitos, da sua subjetividade e do enfrentamento ao sofrimento já denunciado. Todo esse conjunto de situações e reflexões aponta para a relevância da implementação imediata do paradigma de uma Justiça Restaurativa, na qual a dimensão da reparação da violência sofrida esteja presente e determine outras providências além da mera punição dos culpados.

 

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Recebido em 19/10/07
Revisto em 18/03/08
Aceito em 25/03/08

 

 

* Endereço para correspondência: Liana F. Costa - Universidade de Brasília. SQN 104, Bloco D, Ap. 307, Brasília-DF. CEP: 70 733-040. Fone: (61) 3328-7439; E-mail: lianaf@terra.com.br; E-mail: penso@ucb.br; E-mail: tmara@pos.ucb.br; E-mail: alexina@solar.com.br.

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