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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.128 São Paulo jun. 2008

 

RESENHA

 

 

Lógicas metodológicas: trajetos de pesquisa em Psicologia

 

Logical and methodological: different research trajectories in Psychology

 

 

Maria Isabel da Silva Leme*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

Rodrigues, M.M.P. & Menandro, P.R.M. (Orgs). (2007). Lógicas metodológicas: Trajetos de pesquisa em Psicologia. Vitória: Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFES / GM Editora.

Esta obra é uma coletânea de artigos contendo reflexões sobre epistemologia e metodologia científica e, nesse sentido, traz importantes contribuições, tanto para pesquisadores já atuando na área, como para aqueles ainda em formação. Foi organizada no contexto do programa de pós-graduação em Psicologia Universidade Federal do Espírito Santo, mas conta também com a contribuição de pesquisadores de outros programas como da Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de São Paulo.

Um aspecto a ressaltar nessa obra é a preocupação em situar as discussões de métodos e técnicas de pesquisa em relação à sua fundamentação epistemológica. Mesmo os textos que tratam de métodos e técnicas de pesquisa mais específicos, como por exemplo, pesquisa documental e outros, o fazem no contexto da epistemologia que fundamenta a pergunta da investigação e, portanto, a lógica da escolha da metodologia usada. Este tipo de reflexão é ainda mais visível na segunda parte da coletânea, que trata de discussões teóricas, algumas de natureza epistemológica, outras metodológicas. Além disso, os autores da primeira parte contextualizam as suas reflexões a partir das suas experiências pessoais de pesquisa, o que contribui para o entendimento das implicações advindas da adoção de uma determinada estratégia.

No primeiro capítulo, que trata do estudo da violência e seu impacto sobre as relações interpessoais, Rosa, Coelho, Oliveira, Roldi e Drago discutem que o aumento deste fenômeno e a sua divulgação em redes sociais têm como conseqüência a naturalização do medo, assim como dos dispositivos para controlar a insegurança, com repercussões sobre a sociabilidade. Para estudar o fenômeno e suas conseqüências, as autoras usaram o método de rede, situado por elas como um tipo de pesquisa de campo, no caso entendida em um sentido mais amplo que o proposto pela Antropologia, por abranger também a definição da situação de um tema. Neste estudo, o procedimento usado consistiu na escolha de um bairro, com o qual foi feita uma aproximação em termos da história das redes de relacionamento ali construídas, identificação das vítimas, que apontaram duas pessoas a quem haviam relatado o episódio de violência sofrido. Uma pessoa de cada par apontado foi entrevistada e, por sua vez, apontou outras duas a quem também havia relatado o problema, e assim sucessivamente até esgotarem-se as fontes de informação. Este método, segundo as autoras, propiciou entendimento não só do fenômeno da violência, mas ainda, das redes de relações sociais e da sociabilidade.

Na reflexão sobre o método de pesquisa em representação social, da autoria de Vasconcellos, Viana e Santos, a importância em usar mais de um instrumento é discutida para investigar as representações de saúde e educação de educadoras de creche. Foram usados dois procedimentos, associação livre e grupo focal, cuja pertinência é discutida pelas autoras em função do objetivo do trabalho, isto é, estudar os significados construídos e partilhados sobre estes dois objetos sociais. Interessantemente, os resultados contrariaram a expectativa inicial de que as concepções mais pessoais sobre os dois objetos sociais seriam suscitadas pela associação livre. Isto porque a técnica fez emergir as representações associadas à concepção de saúde preconizada pela OMS, ou seja, o discurso científico sobre o tema. Já o grupo focal trouxe à tona os conteúdos racionalizados e mais arraigados, que no caso enfatizaram a noção de educação dissociada do cuidar e promover a saúde. O uso das duas técnicas foi avaliado positivamente, pois revelaram dados diferentes acerca do mesmo objeto, evitando indicação equivocada de ações a serem levadas a cabo pelo estado.

No terceiro capítulo, Pereira Rodrigues e Martins discutem a pesquisa com crianças em função das coações metodológicas impostas tanto pelas características psicológicas da faixa etária, que dificultam o acesso a determinados processos, assim como pelo tipo de dado que se pretendia obter, no caso, concepções sobre a morte em crianças que haviam sofrido este tipo de perda de pessoas próximas. O procedimento usado foi a entrevista narrativa com desenhos, o que foi considerado muito adequado, pois forneceu dados importantes sobre o significado deste tipo de perda para a população estudada.

Trindade, Menandro e Gianórdoli Nascimento discutem no capítulo 4 o escopo da pesquisa qualitativa, como se diferencia da metodologia das ciências naturais, abordando inclusive nesse contexto a coerência envolvida no uso de procedimentos como a entrevista, cuja base situam na Fenomenologia, para coletar dados inspirados em outro referencial. No caso, trata-se da teoria das representações sociais, por possibilitar apreender a experiência dos participantes, seus processos, de modo a, se necessário, ajudar a planejar as ações do psicólogo na promoção de bem-estar subjetivo. No entender das autoras, experiência e representações remetem à consciência como um todo e a experiência de si mesmo como identidade e subjetividade é construída socialmente, sendo esta a relação com a teoria das representações sociais. A condução da entrevista é analisada lembrando a importância do entrevistador informar-se muito bem sobre o tema que vai ser tratado, o que não só permitirá fazer perguntas pertinentes e esclarecer o que não ficou bem explicitado, mas ainda fazer com que o entrevistado sinta-se compreendido. Finalizam o capítulo fornecendo um exemplo de análise segundo os procedimentos a serem seguidos na perspectiva adotada, que concretizam para o leitor os passos a serem dados.

No capítulo seguinte, Mauro e Rezende descrevem as exigências colocadas ao pesquisador da Primatologia pelas especificidades deste campo de estudo. O estudo de primatas em situação livre exige dos pesquisadores uma grande capacidade de desenvolver métodos e procedimentos de coleta de dados que permitam observação do fenômeno para descrevê-lo, categorizá-lo e analisá-lo de modo confiável. Nessa perspectiva são descritas técnicas como observação focal, coleta por amostragem, registros indiretos que visam a superar dificuldades como acompanhar grupos de animais movimentando-se em locais de difícil acesso, discriminação e identificação de indivíduos muito semelhantes entre si e outras. O uso da tecnologia também é analisado em termos das possibilidades abertas recentemente pelos softwares, como os de análise de imagem. Finalizam o capítulo discutindo como a criação de categorias é um processo que se deve buscar aperfeiçoar constantemente, pois, caso não sejam bem definidas, não retratarão o fenômeno em estudo, comprometendo a base de dados.

Pacheco, Almeida e Pereira Rodrigues analisam no capítulo seis uma metodologia de triangulação de informação originária da pesquisa etnográfica, a saber, observação participante, entrevista e exame da documentação em várias fontes como livros, catálogos e notícias da mídia impressa. O objetivo a ser alcançado por meio desta triangulação era verificar mais detidamente o papel da mídia na representação social da loucura, tema especialmente oportuno em vista das transformações recentes na concepção deste tipo de distúrbio e seu tratamento na história da atenção à saúde mental no Brasil. Um momento crítico desta história, a Reforma Psiquiátrica no Brasil é destacado como um ponto importante na análise. Por meio deste método as autoras conseguiram identificar não só o papel da mídia na construção e transformação das representações e práticas sociais relativas à loucura, mas ainda, caracterizar o processo de mudança em dois momentos. É interessante observar que, em vista das peculiaridades do objeto de estudo, a representação social da loucura, a pesquisa abrangeu os três campos de investigação do estudo das representações sociais, isto é: 1) a apropriação das idéias científicas pelo senso comum, 2) os objetos e os fenômenos sociais construídos e reelaborados ao longo da sua história e 3) as condições e os eventos políticos e sociais que têm um significado recente na vida social, provocando mudanças no cotidiano de certos grupos.

A segunda parte da coletânea inicia com um capítulo de Souza e Menandro, que discutem a pesquisa documental como um método legitimado pela comunidade científica desde que a investigação social abandonou a epistemologia verificacionista, privilegiando uma perspectiva de análises relacionais que incorporam aspectos culturais e históricos, característicos de uma ciência interpretativa que busca significados. Nessa perspectiva o sujeito da pesquisa passa a ser visto como ator social, sendo valorizada sua história e como lida com as coações a que está sujeito em seu contexto. É de acordo com este ponto de vista que a pesquisa pode ser feita por meios indiretos, dos quais a pesquisa documental é um exemplo. Os autores arrolam diversas fontes de informações, enfatizando a importância da sintonia delas com os objetivos da pesquisa de aspectos psicossociais e outros cuidados para evitar tendenciosidade, como coleta incompleta ou relatos contendo visões parciais. As notícias jornalísticas são analisadas com ênfase nos cuidados metodológicos visto que a imprensa não pode ser considerada totalmente transparente quanto ao tratamento do material. A crítica da exatidão, em termos da verificação das concordâncias e discordâncias é um exemplo deste tipo de cuidado. Finalizam o capítulo aconselhando o pesquisador que opta pela pesquisa documental a tomar contato e avaliar as contribuições metodológicas da pesquisa historiográfica.

Tassara e Ardans analisam em seu capítulo a teoria crítica e a pesquisa ação inspirada em Lewin como instrumento de intervenção para a democratização das relações intergrupais. Discutem no que consiste a participação genuína, isto é, não coagida, com presença de autogestão. Esclarecem que, seja qual for o objetivo pretendido por meio da pesquisa ação, deve-se privilegiar a participação direta, evitando-se a que se dá por meio de representantes. Estabelecem um continuum graduado do nível de participação grupal que facilita para o pesquisador identificar aquela que está efetivamente implementando em seu estudo. Ainda nesta mesma perspectiva dos cuidados necessários, aconselham o uso de uma abordagem interdisciplinar, concebida tal como proposta por Barthes, que visa à criação de algo novo e não a simples conciliação de disciplinas já existentes.

No nono capítulo, Andrade, Morato e Schmidt apresentam modalidades de pesquisa interventiva que diferenciam da pesquisa intervenção e da pesquisa ação, pelo posicionamento crítico nelas visto em relação à sua meta de objetivação dos participantes e sua cultura, assim como pela sua ausência de compromisso político. Outra diferença apontada seria a inspiração teórica, situada na fenomenologia existencial nietzchiana. A primeira modalidade discutida é a pesquisa interventiva inspirada na etnografia, cujos pontos de afinidade seriam a necessidade de situar-se em relação ao outro e problematizar a necessidade do pesquisador de controlar os rumos da pesquisa. O interesse situa-se mais em produzir conhecimento compartilhado, reconhecendo as diferenças, buscar atender a demanda, interpretando cooperativamente as necessidades postas em conversas e na convivência. O registro é valorizado com abertura para formas variadas. Ressalta-se o caráter ético implicado em uma postura de respeito pelo outro e pluralidade de pontos de vista que constituem uma dada realidade. Pesquisa interventiva e cartografia é outra modalidade apresentada como um modo de ver e olhar o fenômeno e também de atuar, concebido como cuidado do outro e do pesquisador. Por fim, pesquisa interventiva e genealogia tem como objetivo romper com a relação de poder inerente na prática investigativa típica, vista como assimétrica a partir do momento em que é o pesquisador quem define o que vale ou não ser pesquisado e o sujeito fornece as informações solicitadas. Nesta modalidade, o problema é trazido pelas pessoas como uma demanda surgida da sua experiência cotidiana. A renúncia à objetividade implica em trabalhar com a complexidade, criar constantemente estratégias de ação, trabalhando dialogicamente. Para as autoras, a genealogia não é uma metodologia, nem tem um instrumento, é mais uma forma de olhar, uma postura onipresente no sentido de busca das próprias interpretações. Estas estão situadas nos valores morais do grupo. O objetivo da genealogia não é só conhecer, mas transformar, o que impregna o conhecimento resultante.

Menandro e Nascimento discutem no décimo capítulo a análise de conteúdo de material documental desde sua aceitação na segunda metade do século XX, comprovada pela sua inclusão em manuais de metodologia científica, os quais são analisados em termos dos cuidados aconselhados, uso de tecnologia, etc. Em seguida, os autores analisam a música popular como uma fonte de dados possível sobre a formação cultural do país, visto que traz a visão de seus compositores sobre temas ligados a práticas culturais. Apresentam vários trabalhos que usaram as letras de músicas, mostrando como a análise de conteúdo pode revelar neste material a visão do cotidiano e modificações no enfoque de uma temática. Os autores validam este tipo de material como fonte de dados e alertam que seu uso deve estar subordinado aos mesmos cuidados metodológicos que os demais.

Carone discute em seu capítulo porque a Psicologia não poderia aspirar constituir-se como uma ciência positiva, tal como propôs Comte, pois tal constituição implicaria, em um sentido estrito, em limitar seus dados a observáveis. Tal tarefa seria muito difícil tanto para a Psicologia da época, que estudava as próprias percepções e outros processos mentais via introspecção, como para as vertentes atuais, cujos dados provém de relatos subjetivos. Um bom exemplo deste tipo de limitação, que subverteria a observação pseudocientífica são os termos usados na Psicologia para descrever estados mentais. Originários da linguagem natural, recorrem a termos derivados da experiência sensorial como amargo, firme, sombrio para descrever e qualificar os estados mentais. A busca de precisão na linguagem alcançou seu ápice no neopositivismo ou empirismo lógico, cujas exigências de precisão e verificabilidade inviabilizam a Psicologia como ciência nos moldes preconizados. A autora conclui, ressaltando que atualmente este tipo de exigência normativa não serve mais como parâmetro da cientificidade de uma disciplina, o que não significa que a Psicologia deva abdicar de ter regras científicas claras para estudar seu objeto, sempre tendo em mente que o método é função deste objeto, um alerta bastante oportuno a nosso ver.

No último capítulo da coletânea, Almeida e Bussab fazem uma instigante reflexão sobre a possibilidade de compreensão de problemas psiquiátricos, como o transtorno obsessivo compulsivo (TOC) à luz da Psicologia Evolucionista, o que acrescentaria informações ao que a Psicologia tradicionalmente investiga, causas e desenvolvimento. A concepção de que o comportamento é uma adaptação, objeto da seleção natural, da mesma forma que os processos biológicos, é o ponto de partida para tal proposição, que recorre ainda a conhecimentos oriundos de outras disciplinas como a Antropologia e as Neurociências, notadamente a noção de modularidade, que se relacionaria a uma série de competências mentais, que teriam promovido a adaptação ao grupo e, conseqüentemente, a sobrevivência. Um modelo animal para o transtorno obsessivo compulsivo é analisado em maior profundidade, em termos do caráter adaptativo que o comportamento ritualístico teria em sistemas funcionais ligados a detecção e prevenção de risco. As autoras finalizam alertando que, apesar de ser uma ferramenta conceitual importante para a abordagem da disfunção, a Psicologia Evolucionista ainda está em construção, o que requer cuidado na aplicação de seus conceitos.

Concluindo, a coletânea apresenta por muitas vezes opiniões divergentes sobre o mesmo tema, o que é uma virtude a nosso ver, em vista do seu objeto, a metodologia em pesquisa psicológica. Isso porque não só a Psicologia é uma ciência relativamente jovem, mas, principalmente, pelas vicissitudes e complexidade de seu objeto de estudo, que permite vários olhares e inúmeras perguntas.

 

 

Recebido em 1/06/08
Aceito em 2/06/08

 

 

* Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da USP. Av. Professor Mello Moraes 1721. Cidade Universitária. São Paulo &– SP. CEP: 05508-900. E-mail: belleme@usp.br.

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