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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.129 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A dispersão do pensamento psicológico1

 

The dispersion of psychological thinking

 

 

Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto* I; Henriette Tognetti Penha MoratoII

I Universidade Católica de Pernambuco
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

É reconhecida a extensa dispersão sofrida pela Psicologia, decorrente da utilização de perspectivas epistemológicas, metodológicas e conceptuais diversas. Esse processo expressou-se por meio da produção de diferentes teorias e sistemas que marcaram a primeira metade do século XX. Tal situação motivou, segundo Penna (1997), uma intensa crise dissertada por alguns psicólogos, objetivando alcançar a unidade do saber psicológico, principalmente pelos integrantes do movimento behaviorista. No presente texto, centrado na problemática da dispersão, serão focalizados os diversos sistemas e projetos que caracterizam a Psicologia, a emergência da Psicologia como ciência independente, delineando diferentes trajetos para os estudos psicológicos, envolvendo métodos e conceitos que evidenciam a dispersão do campo da Psicologia como irremediável.

Palavras-Chave: Dispersão do pensamento psicológico, Teorias e sistemas da Psicologia, História da Psicologia.


ABSTRACT

The extended dispersion as a mark in the Psychological thinking is well known, due to the employment of different epistemological, conceptual and methodological perspectives. Such a process has been expressed through the production of many and diverse theories end systems, mainly in the first half of the XX century. This situation resulted in an intense crisis that has been discussed by some historical psychologists, with the aim to think about the so-called unity for the Psychological knowledge, mainly among the participants of the behavioral movement. In this present work, the problematic dispersion will be pursued by presenting the diversity of systems and projects that aimed to characterize Psychology as an emergent science. It will be presented the different paths for the Psychological thinking by their concepts and methods in order to give that the dispersion in the Psychological field is inevitable.

Keywords: Dispersion of the psychological thinking, Theories and systems in Psychology, History of Psychology.


 

 

Um breve olhar sobre a história do pensamento psicológico aponta para o atravessamento de diversas questões conceituais, metodológicas e epistemológicas na constituição e delimitação do campo e do objeto de estudo da Psicologia. Tal quadro pode ser cartografado como um arquipélago representado por uma “confederação sem centro de sistemas, escolas, pequenas teorias e práticas dispersas” (Ferreira, 2006, p. 228).

Ainda é importante ressaltar que as idéias psicológicas foram sendo gestadas em diferentes países da Europa e nos Estados Unidos, assumindo a influência da composição de forças do tecido social e cultural do país de origem e marcadas pela esperança na ciência como conhecimento, que solucionaria os problemas humanos. A definição do objeto de estudo da Psicologia sofreu alterações ao longo do tempo, o que é ressaltado por Gomes (2005, p.107) ao considerar que “da alma substancial da Psicologia racional ao ‘eu’ fenomenal da Psicologia empírica o progresso em direção do psiquismo foi enorme, pois o objeto da Psicologia desceu do céu transcendente da metafísica para o solo fenomenal da ciência

O breve contexto apresentado configura certas peculiaridades do saber e do pensar psicológico que se desdobram em “um espaço de dispersão”, constituído pela utilização de diversas perspectivas epistemológicas, metodológicas e conceituais. O objetivo deste artigo é contribuir para compreender a natureza dessa dispersão, com base em um breve percurso sobre a história da Psicologia apoiado nas condições que concorreram para a produção das diversas teorias e sistemas que constituíram o projeto da Psicologia como ciência independente, dialogando-se com texto de Bruno Latour (1994) para empreender tal dispersão como constituinte do saber psicológico.

A Psicologia científica, vinculando-se à influência do Positivismo, revelava a idéia de uma Psicologia capaz de se fundamentar no modelo da Física, preocupada com o rigor da quantificação. Wilhelm Wundt (1832-1920), amparado pelas críticas de Comte à utilização de uma metodologia introspectiva para o estudo dos processos mentais, recorreu tanto ao método experimental para os estudos desenvolvidos pela Psicologia fisiológica quanto ao método histórico para a investigação da Psicologia dos povos (Penna, 1997). Fundou, segundo Gondra (1997, oficialmente a Psicologia como disciplina acadêmica formal ao estabelecer o primeiro laboratório na Universidade de Leipzig, Alemanha, em 1879.

Apesar dessa abertura para a dimensão sócio-cultural dos fenômenos psíquicos, Wundt não renunciou à condição de cientista e idealizou uma disciplina híbrida, por ele denominada de Psicologia Experimental, em que combinava os papéis do filósofo e do fisiologista de laboratório. Recorreu tanto aos métodos experimentais das ciências naturais a fim de adaptá-los à nova ciência quanto à análise dos fenômenos culturais pelos métodos comparativos da Antropologia e da Filosofia. Assim, Wundt considerou que a Psicologia individual poderia ser complementada com o estudo do coletivo: “Psicologia dos Povos”, que focalizaria a linguagem, os mitos e os costumes. Por esse enfoque, reconheceu a importância do contexto social para a compreensão da consciência individual.

Por conseqüência a Psicologia já foi constituída abarcando duas perspectivas: uma, experimental com foco no estudo dos processos elementares da consciência, e outra, coletiva enfocando o estudo das produções da mente coletiva. Nessa direção, já apresentava dois enfoques metodológicos. O enfoque experimental utilizava o método experimental, característico das ciências naturais, com viés empírico e independente da metafísica. Já a “Psicologia dos Povos” que pertencia ao domínio das Ciências Humanas, recorria aos métodos descritivos das Ciências Sociais, baseados na observação das produções culturais. Portanto, desde o início, a Psicologia já se configurava como um espaço de dispersão do pensamento psicológico, ocupando um espaço intermediário entre as ciências da natureza e as da cultura. Para Penna (1997), tal dispersão do pensamento psicológico é “irremediável” e a sua unificação “impossível”, pois reflete a extensa dispersão sofrida pela Psicologia “imposta pela utilização de perspectivas epistemológicas, metodológicas e conceptuais totalmente diversas” (p.57).

Ao longo de sua história os sistemas de pensamento foram surgindo quase ao mesmo tempo, configurando propostas diversas com diferentes concepções do que é o mundo e o homem, como também do que é o objeto da Psicologia e de como abordá-lo. Desse modo, a polarização básica da Psicologia, já apontada por Wundt, permanecia dividindo as diversas teorias e sistemas do pensamento psicológico. Estes se diferenciavam, entre outras coisas, por se posicionarem ou mais próximas de uma Psicologia fisiológica e experimental, ou mais próximas de uma Psicologia dos povos, em que o recurso metodológico atrela-se à abordagem das Ciências Sociais ou da cultura, vinculando a Psicologia ao campo das Ciências Humanas. Como, então, pensar na constituição de uma Psicologia senão pela interdependência relativa, transitando pelo “entre”, isto é, remetendo-se tanto à ordem dos fenômenos vitais e de suas leis vinculadas a perspectivas cientificistas, quanto à ordem dos fenômenos expressivos e dos seus significados vinculados a perspectivas compreensivas? Nessa mesma linha de pensamento, Figueiredo (2004, p. 111) aponta: “creio que não há como dar conta do humano, da constituição e da dinâmica das subjetividades senão trabalhando pela construção deste lugar tão precário”.

É nessa direção que, aqui, será retomado o projeto de constituição da Psicologia como ciência independente, buscando compreender como diferentes teorias e sistemas psicológicos constituíram o espaço psicológico. Apesar da extensa dispersão decorrente de perspectivas epistemológicas, metodológicas e conceituais totalmente diversas, é possível focalizar a produção de teorias e sistemas que marcaram a primeira metade do século XX. Assim o Estruturalismo, o Funcionalismo, o Condutivismo ou Behaviorismo, a Gestalt ou Psicologia da Forma e a Psicanálise &– perspectivas tradicionalmente recuperadas em quase todos os compêndios sobre a História da Psicologia - são ressaltados. Cada uma se caracterizou pela sua definição de Psicologia, pelos seus conteúdos específicos e pelos métodos empregados no desenvolvimento de atividades e pesquisas que visavam à produção do conhecimento psicológico.

 

ESTRUTURALISMO

Ao fundar a Psicologia Estrutural, Edward Bradford Titchener (1867-1927), marcou a clara e decisiva divisão entre a Psicologia estruturalista, de Wundt, e a funcionalista, com Franz Brentano (1838-1917) na Europa e William James (1842-1910) na América (Figueiredo, 2002).

Titchener, preocupado com o pragmatismo que a compreensão funcionalista passara a enfatizar, quando desenvolvida em solo americano, defendeu a prioridade do estruturalismo por meio de um projeto que considerava tarefa fundamental da Psicologia, isto é, a análise da consciência em seus elementos, na direção de determinar sua estrutura.

Segundo Gondra (1997), o estruturalismo, ao se ocupar das estruturas mentais, pretendia determinar os elementos constitutivos da consciência. Para tanto, a Psicologia deveria decompor as experiências complexas em elementos mais simples, a fim de definir, com precisão, a sua natureza. Tais elementos deveriam ser classificados, dando origem às leis de associação que expressariam as relações regulares existentes entre eles. Essas relações explicariam as conexões entre os processos da consciência e os processos paralelos do sistema nervoso. Assim, “a explicação psicológica se limitava à descrição das relações funcionais entre a experiência psicológica e o sistema nervoso, evitando as afirmações causais” (Gondra, 1997, p.29).

Desta maneira Tichener evitou o reducionismo e se manteve dentro do paralelismo psicofísico, como fica claro na definição que apresenta para a Psicologia: “na Psicologia tratamos o mundo total da experiência humana; porém o fazemos somente desde seu aspecto dependente, enquanto condicionado por um sistema nervoso” (Titchener, 1910, p.25). Começou, então, a desaparecer a concepção do homem como “unidade psicofísica” e, em seu lugar, surgiu o “paralelismo psicofísico”, que defendia a idéia de que os atos mentais ocorrem concomitantemente aos processos fisiológicos. Para isso, Titchener recorreu ao método da introspecção experimental sistemática em laboratório, onde sujeitos experimentais eram treinados para observar e descrever, com objetividade, suas experiências subjetivas. Diferentemente de Wundt, que limitou a introspecção aos processos mentais mais simples, Titchener, de acordo com Gondra (1997), acreditava que os processos mentais mais complexos também poderiam ser estudados em laboratório, o que requeria uma observação realizada com pleno controle das variáveis e susceptível a se repetir.

Apesar do estruturalismo ser considerado herdeiro direto da tradição científica inaugurada por Wundt, a definição de Psicologia e a proposta metodológica desenvolvida por Tichener foram consideradas artificialistas e estéreis, por partirem da decomposição dos elementos dos processos conscientes. Ao centralizar a noção de sujeito nas funções do sistema nervoso, afastava-se da experiência imediata, subordinando novamente a Psicologia ao campo das Ciências Naturais. Assim, seguia o modelo da Fisiologia sensorial alemã, defendendo uma atitude elementarista e atomista. Desse modo, tal proposta não alcançou muita projeção no processo de desenvolvimento da Psicologia e desapareceu logo após a morte de Titchener, apesar de sua significativa influência no campo da Antropologia e da Lingüística.

 

FUNCIONALISMO

Segundo Gondra (1997), a Universidade de Chicago centralizou a oposição ao Estruturalismo e, as críticas de John Dewey (1859-1952) ao atomismo de Titchener estimularam o movimento funcionalista. Essa atitude provocou a organização de uma Psicologia das funções mentais por James R. Angell (1869- 1949), trabalhada em laboratórios por Harvey A. Carr (1873-1954). Tal movimento não pretendia ser uma teoria sistemática, mas, sim, uma atitude ou modo de enfocar os fenômenos psicológicos.

Apesar de ser considerado oposição sistemática à Psicologia titcheneriana, o Funcionalismo continuou a situar os estudos psicológicos no campo das Ciências Naturais, próximos à Biologia e à teoria evolucionista de Darwin, com ênfase nas variações individuais e na observação naturalista. Segundo Gondra (1997, p.21), o funcionalismo definia a Psicologia como “ciência dos processos e operações mentais”, interessando-se não mais pelos conteúdos &– sensações, percepções, emoções, vontade e pensamento &–, mas pelos atos de sentir, perceber, emocionar-se, querer e pensar.

Ainda de acordo com Gondra, o interesse pela função implicava, também, uma esfera utilitariamente prática, representada pela questão “Para que serve?”. Desse modo, os funcionalistas assumiram a dimensão pragmática da Psicologia, ocupando-se em estabelecer as contribuições práticas da mente no processo de adaptação ao meio ambiente. Por enfatizar o prático, o útil e o funcional, encontrou solo fértil no espírito pragmático americano, que, acolhendo a idéia evolucionista e a atitude funcionalista dela derivada, legitimou o próprio projeto da Psicologia funcionalista.

Desse modo, a posição wundtiana &– a Psicologia como ciência intermediária &– era gradativamente abandonada e, cada vez mais, subordinada ao campo das Ciências Naturais pelo pragmatismo funcionalista americano.

Precursor desse projeto, William James desenvolveu o preceito básico do funcionalismo americano: “o objetivo da Psicologia não é a descoberta dos elementos da experiência, mas o estudo das pessoas vivas em sua adaptação ao ambiente” (Schultz e Schultz, 1981, p.152). Tal definição evidencia tanto sua orientação naturalista como a importância que concedia ao estudo da consciência no seu ambiente natural. Nessa direção,

James define a Psicologia como a descrição e explicação dos estados de consciência enquanto estados de consciência. Por estados de consciência entende James as sensações, os desejos, as emoções, os conhecimentos, os raciocínios, etc. Sua explicação compreende o estudo e a determinação científica de suas causas, condições e conseqüências imediatas (Penna, 1991, p. 141).

Assim, assumindo como objetivo da Psicologia a descrição e a explicação dos estados de consciência, James elaborou a concepção de fluxo de consciência, defendendo a impossibilidade de dividi-la em fases ou em elementos temporariamente distintos. Apontava para a dimensão processual contínua de mutação seletiva e cumulativa como característica da consciência, o que o afastava do elementarismo associacionista.

 

DEWEY E A PSICOLOGIA APLICADA

Para apresentar esta perspectiva, acompanha-se o texto de Figueiredo e Santi (2002). Assim, Dewey (1859-1952) apontou as limitações e a incapacidade da Psicologia científica oficial para resolver a problemática da vida, considerada não mais a soma de elementos, mas um processo contínuo. A partir daí, Dewey defendeu a proposta de que o comportamento deveria ser estudado, não como uma construção científica artificial, mas em termos da sua significação no processo de adaptação do organismo ao ambiente. Tal ênfase o aproximou da Psicologia Aplicada, que, preocupada com as funções e processos na busca de resultados práticos e atividades adaptativas, teve seu desenvolvimento favorecido pela perspectiva funcionalista.

Os mesmos autores citados apresentam que, em continuidade aos estudos de Dewey, Angell estabeleceu os princípios do Funcionalismo, confirmando a intenção de se ocupar com as condições e com o modo de atuação do processo mental. Nesse sentido, a ênfase voltou-se para a utilidade dos processos mentais, ou seja, privilegiou-se a função adaptativa da mente. Conseqüentemente, retomou a discussão acerca da interação corpo e mente, indicando que a diferença entre físico e psíquico era apenas metodológica, porquanto tal diferença não se percebe no momento da realização do ato e sim, no momento da reflexão sobre o ato.

Na mesma direção proposta por Dewey e Angell, Carr continuou as pesquisas do projeto funcionalista na escola de Chicago. A partir da perspectiva processual da atividade mental, ao reconhecer uma base psicofísica nessa atividade, associou à introspecção o método de observação objetiva.

Tal possibilidade de complementação metodológica representou uma herança do Funcionalismo para a Psicologia americana, que passou a utilizar o método de introspecção junto com outras técnicas de obtenção de dados: os testes psicológicos, a pesquisa fisiológica, os questionários e as descrições objetivas do comportamento. Isso contribuiu significativamente não só para as descobertas da Psicologia com relação aos fenômenos de aprendizagem, desenvolvimento e personalidade, mas também para o desenvolvimento da Psicologia aplicada como técnica &– situação intensificada após entrada da América na guerra em 1917, quando os psicólogos passaram a ser requisitados para tratar de problemas práticos e imediatos.

Nesse período, Robert M. Yerkes (1876-1956) incentivou a aplicação maciça dos testes de inteligência nos recrutas do exército e manteve, mesmo após a guerra, a importância e o valor de tal procedimento. Esse fato abalou o status da Psicologia acadêmica, já que salientava o papel e o valor dessa ciência como aplicação, orientando o interesse para uma Psicologia menos pura e mais preocupada com a vida das pessoas em sociedade. Por conseguinte, permitiu aos psicólogos aplicados irromperem como especialistas nas principais esferas das atividades humanas a partir dos anos 40. Nas empresas, eles marcaram participação nos serviços de seleção e treinamento de pessoal; na clínica, ressaltaram a aplicação de testes de inteligência e de orientação vocacional como atividades específicas dos psicólogos; nos centros escolares, contribuíram com a elaboração de provas de rendimento e investigação da eficácia dos diversos métodos de aprendizagem.

Progressivamente, os psicólogos foram se afastando da pesquisa pura para se dedicarem às áreas aplicadas. A mudança de ação para atuação influenciou o desenvolvimento da Psicologia clínica nos Estados Unidos, área até então considerada privilégio da Psicologia francesa, que, desde o início, caracterizou-se, sobretudo, pela orientação clínica e aplicada. Seu fundador, Théodule Ribot (1839- 1916), recomendava o método clínico aos seus discípulos e seu sucessor, Pierre Janet (1859-1947), dedicou-se à clínica psiquiátrica. Já Alfred Binet (1857-1911), o psicólogo francês mais conhecido, começou a carreira no Hospital de Salpêtrière, dirigindo seus estudos à Psicologia aplicada e realizando trabalhos significativos, como a famosa Escala Métrica da Inteligência, que influenciou sobremaneira a Psicologia do Desenvolvimento e a Psicologia Educacional.

Compreende-se, por esse percurso histórico, como a Psicologia passou a focalizar as operações e processos mentais enquanto instrumentos de adaptação para comportamentos observáveis. Como será visto adiante, a proposta de Wundt &– Psicologia como ciência intermediária, centrada na experiência imediata do sujeito e voltada para os processos coletivos &– percorreu uma direção aproximada. Direcionou-se para uma Psicologia preocupada com o paralelismo psicofísico dos processos mentais e ou com as possibilidades adaptativas dos referidos processos, visando à “normalidade” do comportamento humano e à aplicabilidade técnica especializada para sua aplicação eficiente.

 

BEHAVIORISMO

O surgimento do condutivismo ou behaviorismo, com John Watson (1878-1958), nos Estados Unidos, foi influenciado pela teoria evolutiva de Darwin, pela teoria objetiva e mecanicista da aprendizagem de Edward Lee Thorndike (1874-1949) e pelas técnicas de condicionamento (reflexos condicionados) de Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936). Em relativa oposição à atitude funcionalista em Psicologia, marcou uma transição importante na Psicologia americana: mudança do foco de estudo da consciência para o comportamento mesmo e suas interações com o ambiente, na direção da adaptação à normalidade. Assim, Watson demarcou o final do introspeccionismo e o começo de uma Psicologia objetiva voltada à predição e ao controle do comportamento humano, redefinindo a “Psicologia” como “ciência do comportamento”. Com tal direcionamento, a experiência imediata foi “esquecida” pelos psicólogos, que, por conseqüência, passaram a considerar que “o ‘sujeito’ do comportamento não é um sujeito que sente, pensa, decide, deseja e é responsável pelos seus atos: é apenas um organismo” (Figueiredo e Santi, 2002, p. 67).

Na mesma linha de pensamento, Burrhus Frederik Skinner (1904-1990) deu continuidade ao projeto behaviorista, definindo como objeto de investigação científica o estabelecimento dos relacionamentos funcionais entre as condições de estímulo controladas pelo experimentador e a resposta subseqüente do organismo. Daí, o ser humano passou a ser considerado como qualquer máquina: comporta-se de maneiras previsíveis e regulares em resposta às forças externas, consideradas como estímulos.

Estava, então, estabelecida a ênfase na teoria como possibilidade de desenvolver novos instrumentos orientados pela lógica da ciência e do método científico. Nesse contexto, é que Skinner construiu sua proposta teórica: um construtivismo descritivo, baseado na análise experimental das condutas observáveis. A tecnologia dela decorrente, apesar de repercussões significativas para a aprendizagem e para a clínica, sofreu as mesmas críticas endereçadas a seus antecessores. Essa proposta enfatizava como pressuposto básico a natureza maquinal do ser humano, o que possibilitaria a construção de um mundo perfeito mediante o controle experimentalmente previsível do comportamento humano. Segundo Schultz e Schultz (1981, p. 285),

a abordagem mecanicista analítica e determinista da ciência natural, reforçada pelos experimentos de condicionamento de Skinner, persuadiu os comportamentalistas de que o comportamento humano poderia ser controlado, orientado, modificado, moldado pelo uso adequado do reforço positivo.

Em continuidade ao projeto comportamentalista, abriu-se outro desdobramento que, embora fundado numa abordagem sócio-comportamentalista, propunha associá-la à perspectiva da cognição como intermediária para a modificação comportamental. Isso revolucionou mais amplamente a Psicologia, já tão descaracterizada e personificada por pensamentos singulares. Nesse momento, despontou, como referência, Albert Bandura e sua teoria cognitiva social: apesar de permanecer no âmbito do projeto comportamentalista, enfatizava o papel do reforço na aquisição e na modificação dos comportamentos, defendendo a idéia dos processos cognitivos como mecanismos mediadores entre estímulo e resposta. Tal concepção retomava o aspecto dos fenômenos mentais, apesar de privilegiar o papel do reforço externo para alteração e modificação de comportamentos considerados indesejáveis ou anormais pela sociedade.

 

PSICOLOGIA DA FORMA OU GESTALT E A FENOMENOLOGIA

Enquanto as idéias do estruturalismo, do funcionalismo e do behaviorismo foram legitimandose, cientificamente, na cultura pragmático-tecnológica americana, na Europa, em especial, na Alemanha de Wundt, um movimento, diretamente decorrente do pensamento originário do fundador da Psicologia, fazia-se notar: a Psicologia da Gestalt ou Psicologia da Forma. Seus fundadores, Max Wertheimer (1880-1943), Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfgang Köhler (1887-1967), não aceitavam a idéia de decompor a consciência em seus elementos, nem a compreensão de que a percepção dos objetos consistia apenas na acumulação ou soma dos elementos em grupo. Reconhecendo o caráter originário da experiência perceptiva, consideravam tarefa primeira da Psicologia da Gestalt “restituir esta mesma experiência em seu fazer-se, sem reduzi-la antecipadamente aos propósitos de uma teoria préconstruída” (Bonomi, 1974, p. 71).

A proposta principal defendia a idéia de que o ponto de partida era o próprio fenômeno, quer dizer, a experiência imediata inicialmente acessada pelo método introspectivo. Contudo, valendo-se dos novos questionamentos filosóficos impostos às Ciências Humanas quanto à pertinência de uma metodologia científica importada das Ciências Naturais, optaram pelo método fenomenológico proposto por Husserl (1982) como procedimento metodológico para a apreensão da experiência imediata.

A fim de encaminhar a proposta da Psicologia da Gestalt, faz-se necessário, agora, retomar a perspectiva de Husserl na proposição do método fenomenológico. Recuperando a crítica feita por Brentano à questão do conhecimento orientado pela razão, a fenomenologia para Husserl partiria do pressuposto de que os fenômenos se dão no homem através dos sentidos, implicando um sentido ou uma “essência”, para responder à questão: o que é o que é? (Bonomi, 1974).

Assim, a tarefa da fenomenologia seria alcançar a compreensão do ser, partindo da intuição das essências como possibilidades puras, questionando os fundamentos científicos, já que “tudo o que sei do mundo, mesmo devido à ciência, o sei a partir de minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam” (Merleau-Ponty, 1971, p. 6). Para atingir esse objetivo, Husserl (1982) recorreu à noção fundamental de intencionalidade, evitando enredar-se nas malhas do psicologismo e das especulações metafísicas. Pelo princípio da intencionalidade, expôs a idéia de que a consciência é sempre “consciência de alguma coisa”; apresenta-se sempre dirigida a um objeto (sentido de intentio), que só pode ser definido pela relação com a consciência, sendo, desse modo, sempre objeto-para-um-sujeito. As essências não estariam na consciência; só teriam existência no ato de consciência que visa a elas e no modo de dar-lhes um sentido. Dessa forma, a relação que se estabelece entre consciência e objeto é de correlação, de maneira co-original; cabe à fenomenologia elucidar a essência dessa correlação, através da qual seria possível a compreensão do mundo.

Para as autoras do presente texto, os gestaltistas, respaldados no método fenomenológico, descobriram como os fenômenos psicológicos eram percebidos sob a forma de relações entre as partes de uma experiência. Esta, por sua vez, apresentava-se como sendo muito mais do que a mera soma das suas partes: podia ser compreendida como uma configuração pela qual os elementos se organizavam, mostrando novos significados. Assim, é possível dizer que se aproximavam da idéia de “Psicologia dos povos”, presente em Wundt: a experiência imediata seria o produto de processos de criação a expressar novos significados. Só que, ao contrário de Wundt, os gestaltistas não dissecavam a experiência imediata buscando identificar suas unidades mínimas, para, em seguida, reconstruir os fenômenos complexos; procuravam descrever e compreender os fenômenos que espontaneamente se ofereciam na experiência dos sujeitos.

Entretanto, para além de Wundt, eles procuraram organizar e relacionar a experiência imediata à estruturação física e fisiológica do campo perceptivo, explicando-a por meio de leis gerais. Apontavam, assim, para o significado das formas percebidas, doado pela configuração do campo organizado em que se situam e em relações precisas com os outros elementos desse campo. Caberia à ciência a tarefa de compreender como os sujeitos organizavam seus campos perceptivos.

No entanto, por meio da tese do isomorfismo, sustentavam a equivalência entre processos psicológicos e processos fisiológicos. Afastavam-se, assim, da compreensão de subjetividade introduzida pela descrição e compreensão da experiência imediata, para não incorrer em possível crítica ao método introspeccionista como solipsista. Para Figueiredo (1996, p.159,), na tese do isomorfismo, “se consuma o rompimento da Psicologia da forma com as Ciências Morais ou do espírito e, em que pesem as muitas verbalizações em contrário, se revela a índole positivista do gestaltismo”.

Curiosamente, após a rendição dos gestaltistas alemães à explicação dos fenômenos do campo perceptual por meio de leis gerais, o questionamento acerca da organização da percepção como experiência imediata criadora de significados foi levado adiante por Merleau-Ponty (1971). Em A Fenomenologia da Percepção, o autor resgatou a proposta da Psicologia da Forma, implícita na Gestalt. Retomou a experiência como fonte de conhecimento ao reconhecer que

A percepção não é uma ciência do mundo, não é mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada, é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela está pressuposta por eles. O mundo não é um objeto no qual possuo em meu íntimo a lei da constituição, ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” somente o “homem interior”, ou mais precisamente, não há homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum ou de dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito voltado para o mundo (p. 8- 9).

Até o presente momento, foram apresentadas diversas noções de “realidade”, de “mundo”, de “verdade”, de “psiquismo”, de “objeto de estudo” e, conseqüentemente, de “métodos e procedimentos de conhecimento” como possibilidades de constituição de uma ciência psicológica. A seguir, encaminha-se uma outra perspectiva que revolucionou a compreensão dessa visão.

 

PSICANÁLISE

Diferentemente dos mencionados sistenas, apesar de contemporânea a eles em termos cronológicos, a perspectiva psicanalítica, desenvolvida por Sigmund Freud (1856-1939), se entrecruzou com a constituição da Psicologia como ciência independente. No entanto, porque não se desenvolveu como produto da academia, não se ocupou das áreas tradicionais da Psicologia. Partindo de outra direção, optou pelo estudo do comportamento patológico, negligenciado pelos outros sistemas, trabalhando com a observação clínica e não com a experimentação laboratorial controlada. Nesse sentido, foi possível abrir-se outra dimensão da experiência humana até então ignorada pelos outros sistemas de teorização acerca do psicológico: o estudo do inconsciente, não passível de conhecimento pelas vias legítimas da cientificidade.

Fica assim ampliado o processo de dispersão vivido pela Psicologia, apesar de Penna (1997, p.40) ressaltar que,

não obstante a reivindicação de psicólogo sempre expressamente sustentada por Freud, muitos de seus atuais seguidores, pretendendo representar a vanguarda do movimento psicanalítico, renegaram a Psicologia, ressaltando a condição de saber novo e diverso da Psicanálise.

Ainda nessa mesma linha de pensamento, Penna questiona como é possível afirmar que a Psicanálise nada tem a ver com a Psicologia, se a identidade desta última ainda não foi definida? Entre os antecedentes intelectuais e culturais da Psicanálise, há especulações filosóficas sobre a natureza de fenômenos psicológicos inconscientes e trabalhos iniciais no campo da psicopatologia. Assim, sua teoria fez-se tributária de diversas tradições filosóficas, teológicas e míticas, apesar de buscar legitimar-se, em seus primórdios, pela tradição da Ciência Natural.

Segundo Figueiredo (1996), algumas leituras da Psicanálise sublinharam a presença da perspectiva funcionalista e organicista, mais especificamente, a partir da Fisiologia de índole mecanicista e da Biologia funcionalista, na esteira da teoria da evolução. No entanto, o reconhecimento da noção de conflito de forças nas dimensões físicas e energéticas como mecanismo gerador de símbolos aproximou a Psicanálise de uma dimensão compreensiva. Nessa direção, consideram-se os fenômenos psíquicos totalidades expressivas a serem interpretadas, enfatizando, assim, a dimensão hermenêutica da Psicanálise, que conserva, porém, distância significativa da tradição romântica, por ser “a Psicanálise uma ciência do sentido, mas não uma ciência do sentido imediato” (p. 169).

Assim, a Psicanálise, ao articular um evento corporal ao universo representacional da pessoa, superou, via a noção de inconsciente, a clássica distinção entre corpo e mente. Para Figueiredo (2002, p.81), “neste ponto em que se coloca o impedimento para que a Psicanálise seja reconhecida como ciência nos moldes positivistas, reside provavelmente o que a Psicanálise tem de mais particular entre as teorias psicológicas”.

O reconhecimento do inconsciente derrubou a idéia de um “eu” consciente como centro da subjetividade humana. Tal entendimento não deixa de reconhecer a importância da “vivência” na experiência imediata, mas se abre para a necessidade de ultrapassar o sentido aparente em busca de outra possível compreensão mediata do sentido.

Apesar do reconhecimento do lugar que a Psicanálise exerceu para a constituição do espaço psicológico, algumas críticas foram construídas pela Psicologia dominante na época, tanto com relação à forma como Freud coletou seus dados &– considerada incompleta e imprecisa &– quanto com relação às inferências e generalizações a partir deles, porquanto os conceitos que elaborou não podiam ser corroborados pelo método experimental. Apesar das críticas, o método clínico foi configurando diferenças com relação ao método experimental, abrindo outra possibilidade de compreensão da Psicologia e da ação clínica como forma de conhecer o humano do homem.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revisitados os principais sistemas e teorias empenhados na constituição da Psicologia, é possível reconhecer que todos trouxeram contribuições significativas, marcando posições particulares indicadoras de perspectivas distintas.

No estruturalismo, a Psicologia estava voltada para a análise da estrutura da consciência. Depois, com o funcionalismo, centrou o interesse no fluxo da consciência e em suas funções adaptativas. Porém, com o behaviorismo, deslocou-se dos elementos ou funções da consciência para o comportamento observável, propondo-se a investigar desde o estudo das relações funcionais entre as condições de estímulo e a resposta do organismo ao reconhecimento dos processos cognitivos na modificação do comportamento. Entretanto, pela Psicologia da Forma (Gestalt), retornou ao estudo da experiência consciente, não mais direcionado à decomposição dos elementos da experiência, nem ao modo de esses elementos se associarem, mas dirigido à descrição e à compreensão dos fenômenos da experiência imediata, buscando identificar as leis gerais constituintes dos campos perceptivos. Por outro lado, com a Psicanálise, abriu-se a possibilidade de voltar-se para o estudo do inconsciente via hermenêutica.

Desse modo, este breve percurso buscou retomar a questão da pluralidade de perspectivas presentes no pensamento psicológico, apesar da preocupação de sua unificação “estar presente entre os integrantes do movimento behaviorista, de resto, expressando o amplo projeto de unificação das ciências que se revelou central no positivismo” (Penna,1997, p.57-58). Mas, tal pluralidade implicaria impossibilidade de unificação da Psicologia enquanto ciência? Ou poderia, ao contrário, expressar a diversidade significativa de modos de compreensão implicados na constituição do psicológico humano como campo de saber: qual sua especificidade singular, ou seja, quem é o humano por quem essa ciência se preocupa e do qual se ocupa?

Na tentativa de contribuir para compreender a natureza dessa dispersão, já apontada como a problemática destas considerações, recorre-se ao texto do antropólogo das ciências, Latour (1994), para, através de interlocução com os questionamentos aqui apresentados, encaminhar uma possível interpretação da diversidade da Psicologia. Tal escolha justifica-se pela discussão acerca da determinação das “condições de possibilidade” do conhecimento científico sugeridas pelo referido autor.

De acordo com Latour (1994), como projeto de conhecimento, a Constituição Moderna representa a construção ideológica que fundamenta a modernidade. Nesse sentido, fundado na tentativa de clivagem entre entes humanos e a natureza, o projeto da modernidade seria considerado impossível, notadamente por defender a cisão entre dois entes purificados: Ser Humano e Natureza, ou seja, entes subjetivos e objetivos. Mas, em que medida essa polaridade permite pensar a especificidade do saber psicológico?

Latour discute como a polarização, proposta pela Constituição Moderna, entre sujeito/sociedade e natureza foi absorvida pelas filosofias do século XVIII que, apoiadas na perspectiva kantiana, defendiam a separação total entre as coisas-em-si e a consciência transcendental. Porém, ao mesmo tempo em que empreendiam a defesa do trabalho da purificação, deixaram visível o trabalho de mediação, que revelava a multiplicação dos “quase-objetos”, reconhecidos como híbridos. Assim, todos os grandes movimentos filosóficos acreditavam ser possível encaixar e digerir os híbridos somente pelo trabalho de purificação, voltado para as Ciências Exatas e para as técnicas. Segundo Latour (1994, p. 12),

os fatos científicos são construídos, mas não podem ser reduzidos ao social porque ele está povoado por objetos mobilizados para construí-lo. O agente desta construção provém de um conjunto de práticas que a noção de desconstrução [como método] capta da pior maneira possível (p.12).

Em tal perspectiva, os entes humanos passariam a ser assunto da política com representação nos parlamentos e os seres naturais passariam a ser o tema das ciências, representados nos laboratórios. Contudo, como efeito colateral dessa tentativa de divisão e purificação, a Constituição Moderna produziria, como já foi apontado, a proliferação de híbridos, seres com marcas humanas e naturais: seres mestiços que não seriam mais compreendidos como a mistura entre entes puros e possuiriam primazia ontológica.

Tendo a Psicologia surgido no contexto em que se configurou o projeto moderno, propunha-se a assumir a tentativa irrealizável de dividir e buscar a purificação entre os entes humanos e a natureza. Ao tentar sistematizar o saber psicológico, os diversos sistemas e teorias psicológicas, ao fundirem os operadores científicos das Ciências Naturais aos conceitos antropológicos, possibilitaram revelar-se a própria tendência hibridizante da Psicologia. Alguns tentaram desconhecer a singularidade do sujeito subjetivo em busca de uma realidade independente do sujeito que a conhece e a ordem natural dos fenômenos psicológicos, via modelo cientifico de ciência. Outros reconheceram e sublinharam a especificidade do sujeito, direcionadas para o esclarecimento da lógica e da trama conceitual, desenvolvendo um conhecimento que busca a articulação entre os processos cognitivos e as outras dimensões das práticas sociais. Tentaram, assim, através da “separação”, da “contradição” e da “tensão insuperável”, “purificar” a polaridade sujeito/sociedade e natureza, indicando que não há medida comum entre o mundo dos sujeitos e dos objetos, mas anularam esta distância ao praticarem a hibridação, medindo, por exemplo, humanos e objetos em conjunto e pelas mesmas medidas. Afinal, o “ponto essencial dessa Constituição moderna é o de tornar invisível, impensável, irrepresentável o trabalho de mediação que constrói os híbridos” (Latour, 1994, p.40), conduzindo o conhecimento à representação de que o mundo, embora híbrido, como todos os “coletivos”, teria essa característica negada. Recorrendo a isso, a ciência legitimava recursos que

pareciam estar separados, em conflito uns com os outros, misturando ramos ... que se degladiavam, cada um deles apelando a fundamentos distintos.... É esta concepção, que libera uma ‘esfera de ação’ das amarras da outra, que possibilitou aos modernos ‘sentirem-se livres’ para não mais seguir as restrições ridículas de seu passado que exigia que pessoas e coisas fossem levadas em conta ao mesmo tempo (p.44).

Desse modo, a presente interlocução com Latour (1994) possibilita compreender a ideologia presente no projeto moderno: o enunciado da separação como condição de conhecimento. Contudo, essa mesma dicotomia apresentou-se na Psicologia de forma mais intensa, abrindo possibilidade de obscurecimento do fato real que se mostrava: a mistura entre humanos e não-humanos continuou a se processar em escala jamais vista.

E, de fato, por ter obscurecido isso, é que os “híbridos” nela proliferaram com vigor ainda maior: a dispersão do psicológico. A partir do percurso histórico empreendido, pode-se compreender o lugar e o caráter paradoxal e plural da Psicologia, que, ao tentar juntar o que a modernidade separou, permitiu ao saber psicológico circular por outras vias, diferentemente das demais ciências.

Nessa mesma linha de pensamento, Ferreira (2006) considera a Psicologia como um saber mestiço, produto da “impossível modernidade” proposta por Latour (1994). Desse modo, é possível reconhecer na sua constituição

uma série de nós e vínculos conceituais parciais, sem um nó maior que a amarre. Este nó é frouxo até mesmo na definição do que vem a ser a Psicologia (ciência das condutas? dos fenômenos mentais? da experiência? do inconsciente?). Portanto, podemos dizer que a Psicologia é composta de diversos sistemas circulatórios, de forma semelhante ao polvo, que possui três corações, mas que não se comunicam entre si, bordando e moldando a nossa subjetividade de acordo com algumas orientações (Latour, 1994, p. 312).

Ao assumir essa dispersão irremediável e essa unificação inalcançável como produto da “impossível modernidade” vislumbra-se um quadro de mestiçagem e de hibridismo como condição constitutiva do saber e do pensar da Psicologia. Na mesma direção, compreende-se como o fazer psicológico também se apresenta múltiplo, confundido que é com a mera aplicabilidade técnica de cada um dos diferentes sistemas, obedecendo à “constituição moderna” na visão de Latour.

Entretanto, procede uma consideração final e instigante. A proposta de Wundt poderia ser responsabilizada pela dispersão de diversos projetos da Psicologia, por ter recorrido tanto aos métodos experimentais das Ciências Naturais quanto à análise dos fenômenos culturais (“Psicologia dos Povos”) pelos métodos comparativos da Antropologia e da Filosofia? Ou seria possível compreender que, embrionariamente, desde sua fundação por Wundt, o saber psicológico teria apresentado o sentido de sua condição constitutiva híbrida, implicando que seu fundador buscasse conhecer a experiência humana pela possibilidade da mediação nela implicada, assim já revelando como a forma de conhecimento ao modo da Constituição moderna abria brechas para a multiplicação de híbridos? Seria, então, possível compreender que o sentido da dispersão do pensamento na Psicologia expressaria a mestiçagem entre humanos e não humanos (mundo/natureza), entre subjetivo e objetivo?

 

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Recebido em 6/03/07
Revisto em 10/07/08
Aceito em 16/07/08

 

 

* Endereço para correspondência: Carmem Lúcia Brito Tavares Barreto &– E-mail: carmemluciabarreto@hotmail.com; Henriette Tognetti P. Morato &– E-mail: hmorato@usp.br.
1 O presente artigo foi extraído da tese de Doutorado da primeira autora “Ação clínica e os fundamentos fenomenológicos existenciais” (2006), defendida no Instituto de Psicologia da USP e orientada pela Dra. Henriette Morato.

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