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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.129 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A dinâmica inconsciente na escolha de parceiros para o casamento

 

The unconscious dynamics involved in partners’ choice in marriage

 

 

Aurea Emília Cordeiro Pires Pardal* I; Débora Pastore BassitI II

I Hospital do Servidor Público Estadual
II Faculdades Metropolitanas Unidas - FMU

 

 


RESUMO

Alguns fatores estão relacionados com a escolha de parceiros para casamento. Tendo como referencial teórico a Psicologia junguiana, este trabalho abordará a questão da dinâmica inconsciente como um dos fatores preponderantes na escolha de parceiros em relacionamentos do tipo casamento. Os dados obtidos foram a partir da fala de pacientes adultos em atendimento psicológico. Entende-se por casamento o relacionamento psicológico originário da união entre duas pessoas de sexo diferente, baseada num laço afetivo, sendo a ligação registrada oficialmente. Achados clínicos e teóricos sugerem que na escolha de parceiros devem ser consideradas as influências da dinâmica inconsciente dos arquétipos animus/anima de quem escolhe e o relacionamento com os próprios pais e a sociedade. Um casamento será tanto mais ajustado quanto mais conscientes dessas influências forem os parceiros.

Palavras-Chave: Casamento, Consciência, Inconsciente, Animus, Anima.


ABSTRACT

Some factors are related to the partners’ choice in marriage. This work takes the Junguian Psychology as the theoretical approach to analyse the question of the partners’ choice in relationships like marriage, considering unconscious dynamics as one of its preponderant factors. The data was obtained from adult patients on psychological care. Marriage is understood as a psychological relationship, originated in the affective link between two different sex adults, which is officially registered. Clinical and theoretical findings suggest that the partner’s choice is influenced by unconscious dynamics of the animus and anima’s archetypes and the relationships maintained with parents and society. The more conscious these influences, the more adjusted the marriage.

Keywords: Marriage, Conscientiousness, Unconscious, Animus, Anima.


 

 

Tendo como base teórica a Psicologia junguiana, este artigo faz uma análise da dinâmica inconsciente e o papel dos arquétipos animus/anima, que ocorrem nas escolhas de parceiros em relacionamentos do tipo casamento, sendo adotado como pressuposto que a consciência de si mesmo possibilita a identificação dos motivos direcionadores de escolhas. Geralmente os motivos envolvidos na escolha de parceiros para o casamento não são totalmente conscientes, embora, quando se pergunte à pessoa o que a levou a escolher aquele parceiro, ela acredite que a escolha foi consciente, porque aconteceu por sua livre e espontânea vontade.

Boa parte dos motivos que promovem as escolhas de um parceiro são influenciados por dinamismos inconscientes tais como, os arquétipos animus/anima.Os arquétipos enquanto possibilidades inatas de comportamentos, são constituídos por um conjunto de imagens que tem sua raiz no inconsciente coletivo, aponta E. Jung (1995).

O casamento será abordado neste artigo como um relacionamento psicológico. Por relacionamento psicológico entende-se a relação entre duas pessoas, no qual dois conscientes e dois inconscientes entram em contato.

Para alguém entrar em contato com o outro precisa estar separado deste outro, porque somente seres separados podem se relacionar. Se isso não acontece, um estado de identificação, no sentido de fusão mútua, embota o desenvolvimento psicológico de ambos os parceiros, conforme Sanford (2006). Assim, do ponto de vista junguiano, esse distanciamento pressupõe a existência da consciência em saber que o outro é diferente, não é igual a mim. Onde não houver consciência, o relacionamento psíquico ficara reduzido, tanto da pessoa em relação à sua autoconsciência, como em relação ao parceiro. Afirma C. Jung (2002, p. 195) “Sempre que tratamos do relacionamento psíquico, pressupomos a consciência. Não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado inconsciente”.

A partir do momento em que a criança é parida, nasce enquanto sujeito e reagirá gradativamente ao mundo do qual se desidentifica com o desenvolvimento. Neumann (1999) dá a idéia da estruturação de ego da criança que acontece pela separação do mundo inconsciente, o mundo da mãe, e que terá como conseqüência o aparecimento do outro na vida da criança, um alguém separado dele: “No processo de tornar-se ela mesma, a criança emerge dessa unidade com a mãe para transformar-se num sujeito apto a confrontar o mundo como tu e como objeto” (p. 12).

O gradativo aumento das totalidades pré-psíquicas emergindo do inconsciente dá origem ao ego da criança que se estruturará na vida adulta. Conforme propõe C. Jung (2002), o aparecimento da consciência na criança se assemelha a ilhas isoladas que emergem aos poucos do mundo psíquico inconsciente e se reúnem para constituir um continente, formando uma consciência coerente.

Ao alcançar a consciência, o ego deixa para trás a indiferenciação entre ele e o outro, dessa maneira alguém é consciente de si mesmo quando se discrimina, se separa, do outro. C. Jung (1991, p. 401) entende consciência como “a referência dos conteúdos psíquicos ao eu, enquanto assim for entendida pelo eu”, sendo “a função ou atividade que mantém a relação dos conteúdos psíquicos com o eu” (p.402). Quando essas referências não forem entendidas pelo eu, são tidas como inconscientes, ou seja, abrangendo os conteúdos ou processos psíquicos que não são conscientes, isto é, que não estão relacionados com o eu de modo perceptível. Os conteúdos ou processos psíquicos que não entram em relação com o eu constituem o domínio do inconsciente.

Esses conteúdos inconscientes agrupam-se em torno dos arquétipos, no caso deste artigo, animus/anima que representam a polaridade oposta à consciência. Os temas, que forem condizentes com os motivos da escolha, irão gravitar em torno do arquétipo, formando os complexos, que, quando muito carregados de energia, interferem nas atitudes da consciência.

É a inconsciência de uma pessoa em relação a ela mesma que traz a indiferenciação entre ela e os outros. Sendo a psique constituída pelo consciente e inconsciente, mesmo em pessoas atentas a si próprias, às vezes, pode acontecer de a consciência se achar mais próxima a processos instintivos. Para falar disso, C. Jung (2002) retoma a situação de relacionamentos que apresentam lacunas de inconsciência, onde se observa a falta de diferenciação com o outro e a identidade inconsciente com ele. Na prática, essa situação, mais voltada a processos ligados ao inconsciente, faz com que se suponha no outro uma estrutura psíquica semelhante à própria, é quando acontecem as projeções. Projeta-se no outro conteúdos próprios e que se supõe serem do outro. Isso pode provocar atrações ou repulsões exageradas pelo parceiro.

A existência dessas lacunas de inconsciência pode ser responsável pela inconsciência na relação a dois. Onde há falta de consciência, o inconsciente age. Este agir pode se manifestar por falta de responsabilidade em relação à própria conduta, ou porque acha que não precisa modificar suas atitudes ou, porque em sua opinião, o único que comete faltas é o outro, a sociedade, etc.

O processo de conscientização da relação a dois não costuma acontecer sem sofrimento. No início da convivência, geralmente enquanto tudo vai bem, os vínculos inconscientes de caráter projetivo podem servir de pontes agradáveis e úteis, porém, manter uma convivência requer consciência. Quando essas projeções em relação ao companheiro caem, a pessoa percebe que seu parceiro não é quem ele pensava que era, na verdade ele estava se relacionando consigo mesmo, isto é, com a projeção de animus/anima.

Na adaptação das diferenças individuais, são revistos hábitos pessoais e estereótipos de relacionamento como, por exemplo, os controles informais promovidos pela sociedade e o que há de comum na educação ou no lastro social. Esse ajuste de comportamentos custa caro ao ser humano, revertido em sentimentos doloridos, difíceis de serem elaborados, mas que pertencem a um processo de conscientização da relação a dois.

Apesar da escolha do parceiro poder se basear em motivos inconscientes e instintivos, com a convivência em um casamento, o que antes era identidade com o outro, agora é diferença e passam a vir à tona todo o tipo de desigualdades do casal, desde gostos e preferências, até diferenças em valores individuais e sociais, fantasias e projetos de vida.

Geralmente as pessoas escolhem seus parceiros, achando que estão plenamente conscientes dos motivos que as levam a fazer tal escolha, a qual é geralmente determinada pelas imagens de animus/anima, mas com a convivência a dois, os referidos motivos tidos por quem escolhe como conscientes, parecem não ser mais reconhecidos como os responsáveis pela escolha feita. A esposa antes tão solícita torna-se autoritária e o marido, confidente nos momentos difíceis, agora fica aborrecido ao ouvir as questões domésticas.

A inconsciência parcial, em maior ou menor amplitude nos relacionamentos, é a condição muitas vezes responsável pela pouca informação que a pessoa tem sobre si própria e conseqüentemente do outro, seu parceiro. A atenção aos conteúdos inconscientes será útil para o relacionamento a dois.

A escolha que se faz do objeto, no caso um parceiro, carrega projeções que não são aleatórias, são determinadas pela similaridade psíquica entre quem escolhe e projeta e pelos conteúdos psíquicos de quem é escolhido. Possivelmente a imagem que alguém faz do outro está baseada nas projeções que lança sobre ele em que a imagem projetada é a representação do animus/anima. Só com o desenvolvimento da consciência há o distanciamento entre o sujeito e o objeto. A maturidade e a atenção a si mesmo promovem o desenvolvimento dessa consciência.

Para C. Jung (2006), projetar conteúdos inconscientes é um fato natural e normal, assim todo o ser humano contemporâneo, que não possua um caráter reflexivo acima da média, está ligado ao meio ambiente por projeções inconscientes.

A projeção é sempre um mecanismo inconsciente. Projetar sobre o outro, características pouco condizentes com este outro, podem acarretar mal entendidos no relacionamento. As projeções que têm origem nos relacionamentos dos pais e que não são adequadamente conscientizadas instalamse em outros relacionamentos. Dessa maneira alguém pode escolher seu parceiro para o casamento de acordo com os parâmetros do próprio pai ou mãe. A vivência com os pais, ajuda a constelar conteúdos que irão gravitar em torno dos arquétipos do animus/anima, isto é, o fator que gera a projeção. A inconsciência é o que limita o contato da pessoa com ela mesma e com o outro.

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a dinâmica inconsciente presente na escolha de parceiros para o casamento e o que leva o indivíduo a essas escolhas.

Para ilustrar esse aspecto serão apresentados dados provenientes de atendimentos psicoterápicos de três adultos, que espontaneamente procuraram a Seção de Psicologia do Hospital do Servidor Público Estadual ou o consultório particular, para se submeterem a trabalho terapêutico individual. Esses pacientes apresentaram várias queixas iniciais nas quais o casamento se incluía como um relacionamento com problemas, eram uma mulher com 37 anos e dois homens; um com 40 e outro com 30 anos de idade. Não foi considerado o tempo de duração do casamento.

A busca de psicoterapia teve como objetivo aliviar o próprio sofrimento muitas vezes proveniente do relacionamento com o parceiro com o qual se encontravam casados. As principais queixas relativas sobre porque o casamento não estava bem foram:

• Aconteciam brigas entre o casal: “Estamos brigando muito, às vezes penso que vamos perder o controle, que ele vai me deixar, quero salvar o casamento”;
• Descoberta que o(a) parceiro(a) tinha amante: “Ele tem uma amante, mandei um detetive investigar, tenho até as fotos”;
• Mudanças na percepção da imagem do(a) companheiro(a): “Quando olhei para ela ali deitada, percebi que ela não tinha nada a ver comigo”;
• Interesse por outro(a) parceiro(a): “O amor acabou, quero ter um novo relacionamento, com alguém diferente dela”.

Para os pacientes com essas queixas, foi feita a pergunta: “Por que escolheu esse(a) parceiro(a) para casar?”. Apesar das respostas obtidas apresentarem diversos motivos, estes diziam respeito a: pressões familiares ou sociais para casar; achar que todas as pessoas devem casar; porque foi pedido(a) em casamento; admiração por alguma característica física ou moral do(a) parceiro(a); crença de que necessidades pessoais seriam supridas pelo(a) companheiro(a).

Observou-se também que as queixas iniciais foram acompanhadas por desconfortos físicos como: mal estar ao cair da tarde, falta de sono, nó na garganta, diversas tensões ao longo do corpo e mesmo certa hipotonia. Com freqüência essas questões físicas só foram conscientizadas e associadas com a problemática em questão no decorrer da psicoterapia, como se o corpo reagisse à parte, nada sabendo do sofrimento psíquico que o sensibilizou.

Apesar dos pacientes acharem que a escolha de seu parceiro foi consciente, porque aconteceu por sua livre e espontânea vontade, ao longo da psicoterapia perceberam que a escolha foi permeada pela influência de motivos inconscientes, que tinham origem na sua relação com a família ou com a sociedade em que vivia.

Segundo E. Jung (1995, p.15) animus/anima, são figuras arquetípicas que “constroem uma espécie de elo de ligação entre o pessoal e o impessoal, entre o consciente e o inconsciente... uma é masculina, e outra feminina”. São características femininas no homem e masculinas na mulher, continua a mesma autora “estas figuras são condicionadas pela experiência que cada um traz em si do trato com indivíduos do sexo oposto do decurso da vida e através da imagem coletiva que o homem tem da mulher e a mulher do homem” (p.16).

Percebeu-se que, para uma melhor compreensão sobre o que influencia as escolhas do parceiro, devem ser considerados aspectos pessoais e impessoais, o quanto quem escolhe está consciente a respeito de sua personalidade, ou seja, o relacionamento consigo próprio, com as figuras parentais, com a sociedade e com seu inconsciente.

A seguir são apresentados casos clínicos que demonstram como as escolhas de parceiros para o casamento sofrem influências dos pais e da sociedade e dos aspectos do animus/ anima. As escolhas sempre são permeadas em maior ou menor amplitude por aspectos do consciente e do inconsciente. Embora no desenvolvimento humano, assim como no casamento, não se possa evitar o sofrimento, a auto-análise e autocrítica aliados à psicoterapia, possibilitaram o reconhecimento dos aspectos que estavam ocasionando o sofrimento no relacionamento.

Os dois primeiros casos estão relacionados com escolhas influenciadas predominantemente por motivos vindos da ligação entre pais e filhos(as) e o último caso clínico por motivos sociais.

 

CASO 1

Paciente homem, 40 anos, músico.

Queixa : Procura psicoterapia por estar insatisfeito pessoal e profissionalmente, diz que não consegue deslanchar na profissão, “Parece que tem alguma coisa que sempre atrapalha”, alega ele. Acha que o casamento está morno, com isso sente-se desanimado, achando que está se afastando da esposa.

Escolha: Perguntado porque escolheu sua parceira para casamento, afirma que inicialmente apresentou certa hesitação em querer se casar e os pais, principalmente a mãe, não gostavam da namorada, porque a achavam mandona. O fato de a mãe achar a namorada mandona, mostra a projeção da mãe sobre a moça: provavelmente ambas eram mandonas. Aqui se percebe o aspecto da Anima que ele reconheceu na esposa: já tinha sido colocado ali pela mãe. Mas, a partir do momento em que decidiu, acolheu a idéia do casamento, achando que se sentia bem ao lado da parceira, que também estava ligada ao meio musical, era carinhosa e isso fez com que se decidisse por ela.

Queixas físicas: certa hipotonia.

Apesar da pressão exercida pelos pais para não haver o casamento, era comum esse paciente precisar de um tempo para decidir, achava-se um rebelde, escolheu a parceira acreditando não se importar em responder ao que os pais ou a sociedade determinavam.

No decorrer da psicoterapia o paciente trabalhou a possibilidade de existir um motivo inconsciente que o tivesse levado a escolher sua parceira. Um fato novo que apareceu foi a descoberta de que este paciente ficava muito irritado em responder aos anseios de sua mãe, “Parece que tenho que ir sempre contra ela”, dizia ele. Essa percepção deu um novo rumo à psicoterapia. A consciência de que sua escolha poderia ter sido influenciada por um relacionamento difícil entre ele e a mãe fez com que pudesse redirecionar seu casamento e vida pessoal.

Superar o medo de ser rejeitado fez esse paciente desidentificar-se do papel do “meninozinho” que não podia desagradar a mulher. Identificar-se com esse aspecto da anima, dificultava a possibilidade de decidir com facilidade e criatividade questões de sua vida.

Conseguiu perceber que, sendo sua parceira uma pessoa extrovertida, mais prática e objetiva, acabava tomando decisões, quando ele não conseguia ou achava difícil decidir mais praticamente. A parceira, que até então tomava decisões por ele, como sua própria mãe o fazia, deixou de fazê-lo, desde que esse paciente assumiu e aceitou seu ritmo de escolhas e decisões. Apesar de algumas decisões tomadas pela esposa serem acertadas, em outros momentos, eram bastante equivocadas.

Perceber a necessidade de se auto-afirmar, como alguém que tem um ritmo próprio para escolher e decidir, ajudou-o a reconhecer que estava deixando sua vida profissional e pessoal acontecer em um tempo e de uma maneira que não eram os dele, mas o de outra pessoa, sua esposa.

Após algum tempo sua vida profissional muda de rumo, sai do país para dar continuidade à sua vida profissional em outro lugar. De volta ao Brasil, em outra ocasião, marcou uma sessão para dar notícias. Sentia-se bem, era respeitado como sempre quis ser.

Este paciente não se separou da esposa. Houve uma adaptação no casamento, onde o paciente retomou para si, mesmo com dificuldades, as decisões sobre sua vida. A tomada de consciência sobre a maneira como ele orientava sua vida fez com que percebesse, que ao tomar decisões, poderia ter a ajuda da esposa ou de outras pessoas, mas caberia a ele reorientar sua vida. Ter consciência disso fez toda a diferença, mesmo que em determinados momentos ainda fosse difícil tomar decisões sozinho.

A queixa corporal de hipotonia, apresentada por esse paciente, foi associada por ele, como correspondente à sua postura frente à própria vida, como algo sem força, precisando de firmeza.

 

CASO 2

Este caso clínico refere-se a uma mulher, 37 anos, professora, penúltima filha de cinco irmãos. Fazia críticas freqüentes ao pai por ter sido autoritário e rígido na educação dos filhos, atitudes que causaram diversos transtornos na vida familiar e doméstica.

Queixa: “O casamento não vai bem, estamos brigando muito, não sei se gosto dele”, disse a paciente. Percebe o marido pouco interessado nela e no casamento. É comum ouvir a frase do marido: “Vai tomar um bom banho, que passa tudo”, sempre que a paciente expressava alguma angústia em relação a si própria ou ao relacionamento entre os dois. Sentia-se desvalorizada; “Tenho que fazer tudo para ele, buscar a cerveja que ele toma todos os dias e, às vezes, escolher a roupa que ele vai vestir, me sinto uma empregada”.

Queixas físicas: nó na garganta e mal estar ao cair da tarde. Descartou a existência de doença física.

Escolha: Relata ter escolhido esse parceiro “Porque ele surgiu como uma tábua de salvação”, num momento em que se sentia pressionada pela família para que se casasse, “todos os meus irmãos já estavam casados”. Percebe-se que aqui já se mostra uma projeção em termos da “filha obediente”, aquela que não pode desagradar.

A família sempre foi um elemento muito importante para a paciente e ser casada era uma maneira de estar inserida na esfera afetiva de seus pais. Posteriormente, percebeu que seu parceiro apresentava uma dinâmica de personalidade semelhante à de seu pai, que é o fomentador da imagem de animus para esta mulher.

Apesar de se sentir infeliz com o marido, queria salvar seu casamento, porque uma separação nunca havia acontecido em sua família e achava que não a perdoariam se isso acontecesse, afinal ela era a “filha obediente”.

A pressão social estava presente na convenção e no valor dado ao casamento, que precisava ser mantido a qualquer custo. C. Jung (2002) mostra que, quando isso acontece, a pessoa não escolhe “seu próprio caminho”, segue um método, que é coletivo, em detrimento da própria totalidade.

Dois anos após início da terapia, a paciente se separa legalmente. A própria experiência com seu casamento fez com que esta paciente refletisse sobre sua relação com os homens em geral e, dentre eles, seu pai e a família. Percebeu que não escolhera um marido, apenas respondeu aos anseios familiares para se casar. A avaliação de seu casamento e de como acontecera a escolha do parceiro foi encarada por ela com sofrimento, pois se sentiu como alguém que agiu inconscientemente, manipulada pelo desejo familiar. Quanto menos diferenciado e maduro é o ego, mais estará sujeito às pressões sociais.

O conhecimento que a pessoa tem a respeito de sua personalidade, alcançados pela atenção e percepção de si próprio, auxilia no autoconhecimento e a distinguir-se do outro. A possibilidade de ser mais consciente de si mesmo favorece escolhas mais livres da influência de conteúdos predominantemente inconscientes.

Como aponta C. Jung (2002, p.328), “é decisivo para o rapaz o relacionamento com a mãe, e para a moça o relacionamento com o pai”, sendo que “o grau de ligação com os pais influencia na escolha do consorte”. Assim, escolhas em que prevalecem conteúdos de cunho familiar estão baseadas no tipo de ligação afetiva, consciente ou inconsciente, que os jovens têm com seus pais, favorecendo ou dificultando essa escolha.

Dessa maneira, alguém que conscientemente admira seu pai tende a escolher parceiros semelhantes a ele, o mesmo acontecendo com o jovem em relação à sua mãe. Mas, se o relacionamento com os pais for uma ligação predominantemente inconsciente e negativa, o(a) parceiro(a) será escolhido(a) mais em função dos conteúdos dessa ligação. A escolha de um parceiro estará baseada na projeção dessa ligação afetiva predominantemente inconsciente, que o(a) jovem tem com seu pai ou mãe.

Com isso o(a) parceiro(a) preferido(a) poderá ser pouco condizente com a personalidade consciente de quem escolhe, como se o inconsciente fizesse a escolha e não ele(a) próprio. Na prática, uma relação de demasiada submissão aos pais pode acarretar a escolha de alguém que se confronte com esse pai ou mãe. Nem sempre a compensação acontece por uma situação de contraste, mas em casos extremos, a submissão como o deste caso, pode ser compensada pelo confronto.

Segundo C. Jung (2006), sendo a psique um sistema fechado, que se auto-regula, a energia retirada da consciência está no inconsciente e vice-versa. Uma ligação afetiva predominantemente inconsciente com os pais será compensada, no consciente, por atitudes que compensem essa ligação inconsciente. Deve-se conhecer como a ligação com os pais facilita ou dificulta a escolha do filho (a). C. Jung (2002) aponta que um amor inconsciente entre o filho e sua mãe poderá favorecer a escolha, por parte do filho, de uma parceira que se confronte com essa mãe e de alguma maneira o solte dessa relação materna ou ele pode escolher uma parceira que favoreça a manutenção dessa relação inconsciente entre a mãe e ele e, neste caso, não haveria uma concorrência por esse amor.

Para C. Jung (2006), em qualquer relacionamento existe a atuação do consciente e do inconsciente, não havendo relacionamento psicológico totalmente inconsciente e nem totalmente consciente. A queixa corporal de nó na garganta, apresentada por essa paciente, foi associada por ela com sua vontade de chorar e falar.

 

CASO 3

Este é um exemplo de escolha por parceiro baseada predominantemente em fatores sociais. Homem, 30 anos, engenheiro, filho único. Apresenta dificuldades em identificar ou verbalizar os próprios sentimentos. O parâmetro de seus sentimentos correspondia a modelos de anseio geral da sociedade.

Queixa: Pouco específica, procurou terapia porque o “casamento está estranho”. Existe a fantasia de que a esposa possa ter um amante, porque o relacionamento íntimo mudou. Refere gostar da esposa, achando que a mesma mudou muito desde o casamento. Com freqüência sai para relaxar com outras mulheres, conduta que acha normal para os homens. Percebe a parceira como alguém que mantém tudo em ordem, filho e casa.

Queixas físicas: tensões generalizadas ao longo do corpo.

Escolha: Paciente relata ter escolhido aquela parceira, porque ela era carinhosa e as pessoas devem se casar e ter filhos. Para ele, casar significava estar inserido na esfera social, num espaço em que a união entre o homem e a mulher deve estar de acordo com o sistema social vigente. Não havia questionamento sobre as constantes saídas com outras parceiras.

A dificuldade em assumir e expressar os próprios sentimentos era compreensível, já que o compromisso era mais com o social do que consigo próprio. Até pela própria profissão de engenheiro, parecia ter pouco contato com sua anima.

Sua preferência em assumir padrões de comportamento socialmente existentes, que regem a vida coletiva e o grupo social, pode justificar a opção por relacionamentos sem compromisso “Assim não tenho problemas”, isto é, ele não correria o risco de se envolver. Parecia não ter bom contato com os aspectos emotivos de sua personalidade, ou seja sua anima, provavelmente por ter medo de se envolver e com isso não saberia o que fazer com suas emoções.

A fantasia de que sua esposa tivesse um amante o preocupava, porque não queria ser apontado pelos amigos como marido traído. Foi aventada na terapia a possibilidade de que essa fantasia existiria mais em função dele se sentir rejeitado pela parceira, do que propriamente ser apontado como um marido traído. Isto viabilizaria o reconhecimento e a discriminação de sentimentos próprios. À medida que descobria seus verdadeiros sentimentos, faltas às sessões de terapia começaram a acontecer.

Após quatro meses de terapia, interrompeu o tratamento por telefone. Talvez essa interrupção tenha acontecido pelo receio de entrar em contato com seus reais sentimentos: de envolvimento e possibilidade de ser rejeitado.

As queixas corporais de tensões ao longo do corpo, apresentadas por esse paciente, foram associadas por ele, como sendo um registro no corpo das tensões pelas quais passava.

Para uma melhor compreensão das influências coletivas exercidas sobre a personalidade, Hillman (1981) aponta que, como a personalidade individual está inserida na coletividade, é daí que recebe informações vindas de forças sociais, políticas e econômicas. Segundo este autor, tanto individual como coletivamente a personalidade age e sofre ações. A personalidade individual não pode renegar a coletividade, pois é pela interação entre o individual e o coletivo, que são fornecidas pistas sobre o estilo da personalidade e como as variações dessa individualidade se adaptam no contexto coletivo. Entende-se por coletivo, conteúdos que são de muitos indivíduos ao mesmo tempo, de uma sociedade.

Stein (1998) fala da importância do pai enquanto introdutor e representante do contexto social para a família. À medida que os filhos saem da dependência da mãe, o papel do pai é o de representar para a família os padrões sociais dominantes, as leis e regras, transmitindo aos filhos o mundo cultural e introduzindo-os no universo não pessoal das expectativas sociais.

Para C. Jung (2006), se a escolha for predominantemente permeada por fatores sociais, significa que a pessoa escolhe de acordo com as idéias e as opiniões da coletividade. “O Eu é sugado pelas opiniões e tendências da consciência coletiva e o resultado disso é o homem massificado, a eterna vítima de qualquer ‘ismo’” (2006, p. 425).

Na prática, a pessoa se casa porque acredita que em nossa sociedade todos devem se casar, não se casar é ficar fora do contexto social, como se fosse uma obrigação e não uma opção de relacionamento.

As queixas corporais foram associadas com o momento e a problemática da pessoa. C. Jung (1993, p. 195) mostra que os sintomas corporais, enquanto linguagem do corpo, podem ajudar no melhor conhecimento e elaboração de aspectos inconscientes da problemática do indivíduo,

se ainda estivermos imbuídos da antiga concepção de oposição entre espírito e matéria, isto significa um estado de divisão e de intolerável contradição. Mas se, ao contrário, formos capazes de reconciliar-nos com o mistério de que o espírito é a vida do corpo, vista de dentro, e o corpo é a revelação exterior da vida do espírito, se pudermos compreender que formam uma unidade e não uma dualidade, também compreenderemos que a tentativa de ultrapassar o atual grau de consciência, através do inconsciente, leva ao corpo e, inversamente, que o reconhecimento do corpo não tolera uma filosofia que o negue em benefício de um puro espírito.

O corpo, enquanto veículo que registra sensações físicas e psíquicas, que se mostram como mal ou bem-estar, foi algo novo para esses pacientes. A atenção às reações corporais possibilitou um reconhecimento de como sentimentos e emoções atuam no corpo, como se dessa maneira as queixas físicas ajudassem o paciente a perceber melhor seu corpo, até então esquecido.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos casos apresentados e da análise teórica realizada é possível constatar que as escolhas de parceiros para casamento, por serem feitas de livre e espontânea vontade, são encaradas pelos pacientes como escolhas exclusivamente conscientes. Mas, sendo a psique, como mostra C. Jung (2002), constituída não só pelo consciente, mas também pelo inconsciente, este tem sua parcela de participação na escolha e é natural que o faça, daí o envolvimento de motivos inconscientes permeando as escolhas. Quando se consegue formular e entender o sentido do conteúdo inconsciente envolvido na escolha, tem início um processo de conscientização. Com a conscientização e posterior resolução do conflito psicológico os sintomas físicos da paciente mulher desapareceram. Com relação à queixa física do paciente homem com hipotonia, percebeu-se que ao longo da terapia, a adequada conscientização corporal foi registrada por ele como firmeza ao sentar-se, não precisar afundar na poltrona, postura corporal mais reta. O outro paciente homem, com queixa corporal de tensões generalizadas ao longo do corpo, relatou que apesar de apresentar tensões, agora estava consciente delas.

A conscientização dos motivos, como nos mostra C. Jung (2002), leva ao esclarecimento dos sofrimentos ocasionados pela atuação de conteúdos inconscientes presentes no casamento. Com a passagem para a consciência dos conteúdos e fatos até então desconhecidos, pode-se fazer algum tipo de alteração nos mesmos. O sofrimento, se ainda persistir, terá um sentido e será verdadeiro.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jung, C.G. (1991). Tipos psicológicos. (L. M. Orth, trad.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1920).        [ Links ]

Jung, C.G. (1993). Civilização em transição. (L. M. E. Orth, trad.). Petrópolis: Vozes.        [ Links ]

Jung, C.G. (2002). O desenvolvimento da personalidade. (V. Amaral, trad.; 8ªed). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1910).         [ Links ]

Jung, C.G. (2006). A natureza da psique. (M. R. Rocha, trad.; 6ª ed.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1916).        [ Links ]

Jung, E. (1995). Animus e anima. (D. Pignatari, trad.). São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

Hillman, J. (1981). Estudos de Psicologia arquetípica. (P. R. Silva, trad.). Rio de Janeiro: Achiamé.        [ Links ]

Neumann, E. (1999). A criança: Estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o inicio de sua formação. (P. R. Silva, trad.; 2ª ed.). São Paulo: Cultrix. (Original publicado em 1980).        [ Links ]

Sanford, J.A. (2006). Os parceiros invisíveis o masculino e o feminino dentro de cada um de nós. (I. F. L. Ferreira, trad.; 6ª ed.). São Paulo: Paulus.        [ Links ]

Stein, M. (1998). Consciência solar, consciência lunar. (M. S. M. Netto, trad.) São Paulo: Paulus.        [ Links ]

 

 

Recebido em 18/07/07
Revisto em 27/03/08
Aceito em 30/03/08

 

 

* Endereço para correspondência: Rua Raul Devesa 42, Perdizes - São Paulo, SP. CEP: 05012-040. Fone: 3672-9955 E-mail: aupar@bol.com.br.

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