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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.58 n.129 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Relações entre aspectos afetivos e cognitivos em representações de contos de fadas

 

Cognitive and affective aspects fairy tales’ representations

 

 

Maria Thereza Costa Coelho de Souza*; Camila Tarif Ferreira Folquitto; Marcella Pereira de Oliveira; Samanta Pedroso Natalo1

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo se refere a uma pesquisa sobre representações de dois contos de fadas e teve como objetivo analisar aspectos afetivos e cognitivos de crianças, de diferentes idades, e sua interferência nas representações de histórias. O principal subsídio teórico foi a perspectiva piagetiana, quanto a sentimentos, interesses, valorizações atribuídas às personagens e quanto aos julgamentos sobre suas ações, atitudes e caráter. As análises dos dados indicaram que as crianças mais velhas tendem a escolher aspectos mais abstratos das histórias, enquanto as crianças mais jovens tendem a escolher aspectos mais concretos e materiais.

Palavras-Chave: Representações, Contos de fadas, Afetividade, Inteligência.


ABSTRACT

This paper presents a research about children’s representations about two fairy tales in order to analyze some aspects of their emotions and intelligence, related to stories’ representation. The main theoretical background was the Piagetian approach about emotions, interests, affective valorizations and judgments about stories’ characters. The analysis showed that older children based their judgments and valorizations on abstract characters’ aspects, while younger children presented concrete and material choices.

Keywords: Representations, Fairy tales, Emotion, Intelligence.


 

 

Este texto se refere à pesquisa realizada com crianças de diferentes idades sobre representações de dois contos de fadas clássicos dos Irmãos Grimm: “Senhor Lobo e Senhora Gata” e “O Lobo e os Sete Cabritinhos”. O objetivo principal da investigação foi o de relacionar aspectos cognitivos e afetivos presentes nas reconstituições dos contos, a partir da perspectiva de Jean Piaget quanto às estruturações cognitivas e à afetividade.

 

A REPRESENTAÇÃO COGNITIVA PARA PIAGET

Para Piaget (1945/1978), representação quer dizer reunião de um “significante” que permite a evocação de um “significado” fornecido pelo pensamento, sendo o significado ligado ao objeto em si e o significante um representante do mesmo. A instituição coletiva da linguagem é um fator primordial na socialização das representações, permitindo acentuar as interações entre indivíduos. Em seu estudo sobre a representação na criança considerou as diversas formas de pensamento representativo &– imitação, jogo simbólico e representação cognitiva &– como solidárias umas com as outras e evoluindo todas as três em função do equilíbrio progressivo entre assimilação e da acomodação até atingir a adaptação. Assim sendo, a representação implica num duplo jogo de assimilações e acomodações, atuais e passadas, das quais o equilíbrio de umas em relação às outras não poderia ser rápido, mas ocupa, na verdade, toda a primeira infância.

No primeiro período de desenvolvimento psicológico, a atividade da criança é sensóriomotora. Piaget chama de assimilações à forma da criança descobrir o mundo através de sua percepção e movimentos e, de acomodação, a essa modificação dos movimentos e do ponto de vista próprio, pelos movimentos e posições exteriores, relativos ao meio ambiente. Uma primeira relação entre a assimilação e a acomodação é o equilíbrio entre as duas, isto é, a adaptação, e são formas superiores dessa adaptação que vêm a dar na atividade inteligente. Segundo Piaget (1945/ 1978), a acomodação, diferenciando-se da assimilação, constitui uma espécie de “negativo” do objeto ao qual se aplica o esquema assimilado, e esse “negativo” prolonga-se então em um “positivo”, que é a imitação, exterior ou interiorizada.

No segundo período de desenvolvimento, o pré-operatório, a atividade representativa é inicialmente egocêntrica e depois intuitiva. Na fase egocêntrica, Piaget destaca o pensamento préconceptual, relacionado à representação cognitiva, que nasce da união de significantes que permitem evocar os objetos ausentes como um jogo de significação que os une aos elementos presentes. Essa conexão específica entre significantes e significados constitui o próprio de uma função nova, a qual ultrapassa a atividade sensório-motora e que foi denominada função simbólica. É ela que torna possível a aquisição da linguagem ou dos signos coletivos, na medida em que permite evocar objetos que não estão presentes no momento. Neste segundo período, a imitação propriamente dita é representativa, por oposição à imitação sensório-motora que funciona somente na presença do modelo; não apenas o sujeito imita de forma diferida, mas ainda essa imitação exterior se fundamenta na imagem mental do modelo. A representação cognitiva é constituída pelo “pré-conceito”, ou seja, a primeira forma de pensamento conceptual que se superpõe, graças ao aparecimento da linguagem, aos esquemas sensório-motores. Seu mecanismo próprio consiste, portanto, em assimilar o objeto dado ou percebido a objetos evocados pela representação, mas não reunidos em classes ou relações gerais e simplesmente significados pela imagem e por designações verbais semi-individuais.

Na fase do pensamento intuitivo, tem-se o intermediário exato entre o pensamento préconceptual e o pensamento operatório. Durante esta fase, como no decurso da precedente, as relações gerais da assimilação e da acomodação explicam simultaneamente as relações entre o jogo, a imitação e o pensamento adaptado, assim como o equilíbrio intrínseco atingido por este em suas formas específicas. É apenas por volta do fim do período intuitivo que, chegando a dissociar os pontos de vista, a criança aprende simultaneamente a levar em conta o ponto de vista próprio (e não mais confundi-lo com todos os outros possíveis) e a resistir às sugestões de outrem: o progresso da reflexão engloba então a própria imitação, que se reintegra assim na inteligência.

Por volta dos sete/oito anos, quando do aparecimento das primeiras operações concretas, o jogo simbólico se transforma no sentido de uma adequação progressiva dos símbolos à realidade. A imaginação criadora, que é a atividade de assimilação em estado de espontaneidade, não se debilita de modo algum com a idade, mas, graças aos progressos correlativos da acomodação, reintegra-se gradualmente na inteligência, a qual se amplia na mesma proporção, tendendo ao equilíbrio ou adaptação. Essa coordenação permanente é oferecida pelo pensamento operatório. A reversibilidade só se explica precisamente como o produto desse equilíbrio entre assimilação e acomodação, equilíbrio que permite que a assimilação seja descentrada em função das transformações do real, enquanto que a acomodação teria que levar em conta tanto os estados anteriores quanto os ulteriores. O equilíbrio das duas garante, assim, a reversibilidade e cria, por isso mesmo, a operação como tal ou ação tornada reversível. A construção operatório-concreta e, em seguida, a formal dão, portanto, o acabamento necessário à representação do mundo e de si mesmo.

 

AFETIVIDADE E INTELIGÊNCIA: A ÓTICA PIAGETIANA

Piaget (1953-54) afirma que a afetividade intervém nas operações de inteligência, podendo acelerar ou retardar o seu funcionamento. O problema consiste, então, em esclarecer como a afetividade intervém, se ela é fonte de conhecimentos, se altera as estruturas cognitivas ou, se a afetividade é uma espécie de energia que impulsiona a conduta, tendo assim uma relação funcional com a inteligência. O autor sustenta a última hipótese e, para comprová-la, pretende estudar as relações entre inteligência e afetividade sob uma perspectiva genética, isto é, analisando as transformações desses dois aspectos durante o desenvolvimento da criança. A energética da conduta proviria da afetividade e as estruturas, das funções cognitivas. Se a afetividade e a inteligência são indissociáveis na conduta, então, numa perspectiva genética, poderia se pensar num paralelismo entre o desenvolvimento afetivo e o cognitivo. Tanto a inteligência quanto a afetividade são construídas ao longo do desenvolvimento, não são aquisições dadas no nascimento.

Baseado nesse raciocínio, Piaget propõe um quadro de correspondências entre o desenvolvimento intelectual e o afetivo, que é dividido em duas partes pelo critério da aquisição da linguagem, a qual, no nível intelectual, proporciona a passagem da inteligência sensório-motora para a inteligência verbal e, no nível afetivo, a passagem dos sentimentos intraindividuais para os sentimentos interindividuais. No primeiro período, o da inteligência sensório-motora, são observados três momentos evolutivos. No primeiro, o interesse está voltado para a questão instintiva. O que mais interessa a Piaget neste momento inicial do desenvolvimento é o papel positivo que pode ser atribuído à emoção no curso do desenvolvimento. No segundo momento, do ponto de vista cognitivo, aparecem as primeiras aquisições em função da experiência (reações circulares primárias e secundárias). Em função dessas reações, tem início uma diferenciação progressiva da percepção dos objetos e das situações. Do ponto de vista afetivo, aparecem os primeiros afetos perceptivos, que são sentimentos ligados às percepções de prazer, dor, etc. Ocorre também uma diferenciação das necessidades e dos interesses. O terceiro momento do período sensório-motor é marcado pelo aparecimento dos atos de inteligência propriamente ditos. Neste estágio se manifestam, tanto no plano afetivo quanto no cognitivo, regulações e coordenações complexas, tais como a diferenciação dos meios e dos fins, acompanhada pela coordenação dos meios a um fim fixado previamente (início dos atos inteligentes). Ocorre também o começo da descentração: a afetividade começa a dirigir-se ao próximo, conforme este se distingue do próprio corpo.

Piaget focaliza essencialmente as noções de valor e de interesse como a dimensão geral da afetividade. O problema consiste em saber quando e porque intervém a valorização. O sistema de valores, que começa assim a estabelecer-se, constitui a finalidade da ação própria e se estende ao conjunto das relações interindividuais, que aparecem aqui com as condutas de imitação. Estes valores atribuídos às pessoas são o ponto de partida dos sentimentos morais. Neste estágio, aparecem também as primeiras formas de sentimentos interindividuais, o que supõe então o descentramento da afetividade, limitada até este momento ao sujeito.

O segundo período de desenvolvimento (pré-operatório) começa por volta dos dois anos, com a aparecimento da linguagem e da representação (aparecimento da função simbólica). Graças a ela, a criança pode evocar uma situação ausente por intermédio de um significante qualquer. Por outro lado, a linguagem constitui, ao mesmo tempo, um elemento essencial da representação e torna possível a socialização do pensamento. No plano afetivo, a representação da linguagem vai permitir que os sentimentos adquiram uma estabilidade e uma duração, que até este momento não podiam ter. Então, veremos que se desenvolvem os sentimentos interindividuais (simpatias e antipatias) e, ao mesmo tempo, começarão os sentimentos morais que, pelo fato de que se conservam, constituirão progressivamente os sentimentos normativos e as escalas de valores. Apoiado em Pierre Bovet, Piaget estuda o sentimento de respeito, que é uma mescla dos sentimentos de amor e temor, e tem sua gênese, bem como os outros sentimentos morais, nas relações interindividuais. Por isso o respeito pelo outro seria uma condição prévia para o estabelecimento da lei moral e também estaria relacionado com o sentimento de obrigação. Mas, segundo Piaget, esta hipótese só se aplica à moral heterônoma da obediência. Para preencher essa “lacuna” na explicação de Bovet, Piaget introduz a noção de sentimentos semi-normativos. Tais sentimentos representam um caso particular das relações interindividuais de intercâmbio, que Piaget denominou de realismo moral. Nessa situação a lei moral segue ligada a certas situações que a engendram, portanto se dá como “existente em si” (exterior ao indivíduo).

No campo da cognição, o período entre sete/oito e doze anos se caracteriza pelas operações propriamente ditas, pela aquisição do pensamento reversível e pela noção de conservação. No campo da afetividade, Piaget se propõe a examinar o problema da conservação dos sentimentos e da vontade (ou melhor, da força de vontade), que introduz certa forma de reversibilidade à vida afetiva, e, finalmente, os sentimentos morais autônomos, como a justiça e o respeito mútuo (sentimentos característicos desse estágio).

O autor afirma que é possível falar em uma “lógica dos sentimentos”, apesar dos sentimentos morais serem menos estáveis e menos coercitivos do que as regras operatórias. No que diz respeito à vontade, o autor a define como um instrumento que promove a conservação dos valores, atuando como um regulador do campo afetivo, que possibilitaria ao sujeito hierarquizar seus valores. A vontade agiria, portanto, numa situação de conflito entre duas tendências independentes, uma mais forte, porém menos “correta” moralmente, e outra mais fraca, mas mais aceitável, fazendo triunfar, no percurso do ato voluntário, esta última tendência. Portanto a vontade corresponderia, no campo afetivo, às operações racionais do campo cognitivo. Quanto aos sentimentos autônomos, Piaget aponta como característicos do estágio, o sentimento de justiça e o respeito mútuo. O sentimento de justiça surgiria da capacidade da criança, após 7- 8 anos, de fazer valorizações morais pessoais de atos voluntários livres e de sentimentos morais que podem estar em conflito com a moral heterônoma.

Finalmente, o último período de desenvolvimento é o das operações formais, que começam aos 11-12 anos e alcançam o equilíbrio por volta dos 14-15 anos, em média. Com o advento da capacidade de raciocínio hipotético dedutivo “a inteligência pode não só operar sobre os objetos e as situações, mas também sobre hipóteses, por conseguinte, tanto sobre o possível quanto sobre o real” (Piaget, 1953-54, p.283). A capacidade para pensar formalmente é um quesito indispensável para que o adolescente se insira na sociedade adulta. E é a aquisição do pensamento formal que permite que seja um “revolucionário” sem ao menos sair de seu quarto. Isto porque seus sonhos se realizam no plano do pensamento, “através da elaboração de teorias, de sistemas ou doutrinas para assimilar e reformar, se for necessário, as ideologias existentes em todos os planos: social, político, religioso” (p. 284). Afetivamente o adolescente adquire valores ideais por meio dos quais vai construindo sua personalidade e, conseqüentemente, participando progressivamente da consciência coletiva. Segundo Piaget, a personalidade seria o eu adaptado ao mundo (em oposição ao egocentrismo, no qual o mundo é adaptado ao eu).

Piaget conclui enfatizando a necessidade de se romper a tradicional dicotomia existente entre afetividade e inteligência, mostrando o quanto é problemático do ponto de vista teórico, dizer que a afetividade é orientada e causada pela inteligência ou, o contrário, presumir que a inteligência dirige a afetividade. Isto significaria não compreender que toda a conduta é una e, portanto, pressupõe inteligência e afetividade em constante interação e interdependência, transformando-se e desenvolvendo-se durante a organização progressiva das condutas.

 

A LITERATURA DOS CONTOS DE FADAS E A PSICOLOGIA

Os contos de fadas, desde há muito tempo, constituem literatura atraente para crianças de várias idades e também para os adultos, os quais, ouvintes de histórias de fadas em sua infância, muitas vezes tornam-se contadores destes mesmos contos na idade adulta, mantendo a mesma atenção (ou até mais) em relação às personagens fantásticas destes enredos.

Coelho (1987) distinguiu os contos de fadas dos contos maravilhosos por possuírem como eixo gerador uma problemática existencial. Nos contos de fadas, é imprescindível a presença do maravilhoso, com ou sem a presença das fadas. Os contos maravilhosos, por sua vez, são narrativas sem a presença das fadas e que enfatizam uma problemática social ou relacionada à vida prática. Estes últimos têm origem oriental e realçam a parte material, sensorial e ética do ser humano. Os contos de fadas são de origem celta e apareceram inicialmente como poemas. Os contos clássicos infantis tiveram suas origens no século XVII, na França, e nasceram para falar aos adultos. Nesse contexto, Charles Perrault buscou redescobrir os relatos maravilhosos numa época em que as narrativas maravilhosas entraram em declínio. De início, não estava preocupado com as crianças; apenas mais tarde pretendeu diverti-las e orientar a formação moral das meninas. Sua primeira seleção de contos é composta de seis contos de fadas e dois contos maravilhosos e recebeu o nome de “Histórias do tempo passado com suas moralidades: contos de minha mãe gansa” (1697). Os contos aí incluídos são: “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba Azul”, “O Gato de Botas”, “As Fadas”, “A Gata Borralheira”, “Henrique do Topete” e “O Pequeno Polegar”.

No século XVIII, os contos de fadas passaram a se referir essencialmente ao mundo infantil. Mais tarde, no século XIX, retornaram por uma preocupação lingüística. Destacam-se neste período Jacob e Wilheelm Grimm, estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão, que passaram a coletar e estudar uma grande massa de textos. Como conseqüência, publicaram os “Contos de fadas para crianças e adultos” (1812-1822). Dentre os quais se destacam: “A Bela Adormecida”, “Os Músicos de Bremen”, “Os Sete Anões e a Branca de Neve”, “Chapeuzinho Vermelho”, “A Gata Borralheira”, “O Corvo”, “As Aventuras do Irmão Folgazão”, “A Dama e o Leão”. Também como representantes da literatura infantil desse século XIX, temos Hans Christian Andersen, poeta e novelista dinamarquês, a Condessa de Segur (1856), Lewis Carroll (1865), com “Alice no País das Maravilhas” e, finalmente, Collodi, que, em 1883, publicou “Pinóquio”.

Na Psicologia, duas abordagens principais se referem à literatura dos contos de fadas. De um ponto de vista psicanalítico, Bettelheim (1978, 1980) aponta como esta literatura pode favorecer a busca de significado para os indivíduos. Os contos ofereceriam elementos que permitiriam aos indivíduos encontrar significados mais profundos para suas vidas em termos de desenvolvimento, ou seja, maneiras de enfrentar os dilemas, conflitos e angústias, que também fazem parte da evolução psicológica. Ao observarem os encaminhamentos dos personagens ao longo das histórias, suas dificuldades, seus sucessos e fracassos, os indivíduos, em especial as crianças, poderiam ter alívio para suas próprias dificuldades além de terem contato com diferentes maneiras de enfrentamento dos ‘perigos’ da vida, do desenvolvimento e dos dilemas entre o certo e o errado.

Assim, para este autor, os contos folclóricos não ensinam nada no nível manifesto, considerando as sociedades modernas, mas muito sobre os problemas existenciais dos seres humanos, os quais perduram ao longo dos tempos. Os contos foram se tornando mais refinados através dos séculos, com significados manifestos e encobertos cada vez mais complexos e multifacetados. Por esta razão, os contos ofereceriam maneiras de colocar ordem no mundo interior, transmitindo importantes mensagens sobre o desenvolvimento. Para Bettelheim as crianças normais e doentes vêem nos contos de fadas maior satisfação do que em outras histórias infantis, porque estes apresentam problemas existenciais e dilemas de maneira breve e categórica. Para este autor é a dualidade entre o bem e o mal, colocada claramente que cria uma demanda de luta para resolvê-la. O auxílio se daria pela via da imaginação infantil, isto é, às estruturas dos contos se encaixam na capacidade das crianças para produzir imagens, as quais permitem que estruturem seus devaneios e, por conseguinte, dêem maior direção às suas vidas. O fato deste tipo de história não oferecer figuras ambivalentes é, assim, de grande valia para as crianças, em especial as mais jovens, na medida em que permitem que elas se tornem mais fortes para lidar com as ambigüidades. Dessa forma, as crianças pequenas, que se identificam com o herói, o fazem para se ligarem à sua pessoa e não propriamente à qualidade que representa (bondade, por exemplo), o que só virá com o desenvolvimento cognitivo e afetivo.

Outra relação com o desenvolvimento psicológico apontada por Bettelheim é a de que o significado mais profundo do conto varia de pessoa para pessoa e de idade para idade, já que as qualidades das estruturações variam ao longo da vida e podem sofrer a influência de outros aspectos (contextuais). É por esta razão que, a seu ver, não se deve explicar o significado do conto para a criança, o que impediria seu trabalho pessoal de elaboração. Nem tampouco se deve deixar que ela faça sozinha este trabalho, o adulto pode e deve ajudá-la nisso, mas nunca de maneira diretiva.

A perspectiva da Psicologia Analítica de Jung também tem sido utilizada para compreender o envolvimento das crianças e também dos adultos com os contos de fadas. A ‘mágica’ dos contos seria o elo entre a criança que escuta e o adulto que conta a história e, dessa atmosfera surgiria a construção de novos significados para ambos. Os mitos presentes nos contos e a sua transferência para as psiques individuais são o foco principal das análises junguianas. As interpretações nesse caso se referem mais às relações entre o indivíduo e a humanidade, entre o ouvinte e o contador. As principais referências para conhecimento dessa compreensão junguiana são as obras de Von Franz (1985a, 1985b).

Investigações que utilizam contos de fadas a partir de uma perspectiva piagetiana não focalizam diretamente a elaboração pessoal de significados comentada acima, destacando, por outro lado, as regularidades dos elementos escolhidos para pensar, em função da idade e sexo. Portanto, ao estudar e analisar as qualidades dos elementos valorizados das escolhas de personagens pretende-se destacar os modos como as crianças utilizam os contos para refletir, envolver-se e retirar mensagens, o que pode relacionar-se à produção de significados. Os contos são, nesse caso, a matéria-prima para reflexão e valorização, oferecendo farto conteúdo para elaboração.

 

MÉTODO

O problema desta pesquisa foi verificar se existiriam relações possíveis entre as valorizações afetivas de personagens dos contos e as estruturações cognitivas subjacentes às reconstituições das histórias de fadas. A hipótese geral foi a de que há relações observáveis entre aspectos afetivos e cognitivos das representações de contos de fadas. Dessa hipótese geral decorreram duas hipóteses: 1) a de que a qualidade das escolhas e das valorizações afetivas melhoraria com a idade; 2) a de que as estruturações cognitivas ficariam mais abstratas com a idade.

Participantes

Participaram desta pesquisa 76 crianças de cinco a dez anos, que freqüentavam ambiente educacional (creche ou escola), das cidades de São Paulo e de São José dos Campos/SP. Na composição dos grupos etários, por exemplo, para o de 5 anos, foram consideradas crianças com idades entre 4 anos e 6 meses a 5 anos e 5 meses; e assim sucessivamente. A escolha dos participantes ocorreu de maneira aleatória nas duas instituições. As crianças foram divididas em dois grupos: as que foram entrevistadas após ouvirem o conto “O Lobo e os Sete Cabritinhos” e as que ouviram e participaram de entrevistas sobre o conto “Senhor Lobo e Senhora Gata”. Tal divisão também foi aleatória, procurandose apenas manter um número semelhante de participantes em cada grupo, apresentada na Tabela 1.

Tabela 1. Distribuição de freqüência das idades das crianças por grupo

 

 

Instrumentos

Entrevista clínica piagetiana adaptada a dois contos de fadas: “O Lobo e os Sete Cabritinhos” e “O Senhor Lobo e a Senhora Gata”, ambos dos Irmãos Grimm (Grimm, 1989; Owens, 1996).

Procedimento

A pesquisa foi realizada em ambiente razoavelmente livre de interferências que pudessem prejudicar o andamento da coleta de dados. Por razões éticas, as crianças só foram entrevistadas após consentimento de seus pais ou responsáveis.

A coleta de dados seguiu as seguintes etapas: 1) 36 crianças ouviram o conto “O Lobo e os Sete Cabritinhos” e, o restante (n=40), o conto “Senhor Lobo e a Senhora Gata”; 2) terminada a leitura, foi pedido que o conto fosse recontado, com o objetivo de verificar se a criança havia entendido os aspectos principais da história. Depois da recontagem, as crianças responderam às perguntas dos protocolos (Anexo I). As entrevistas foram gravadas para posterior transcrição e análise.

Os contos utilizados na presente pesquisa foram escolhidos por se adequarem aos objetivos propostos, após a realização de diversas pesquisas com contos de fadas, especialmente com os contos de Grimm (1989), organizadas por de Souza e colaboradores. (De Souza, 2005). Um estudo piloto, ocorrido no ano de 2003, mostrou a adequação dos contos e protocolos utilizados para o acesso aos aspectos afetivos e cognitivos de crianças. No Piloto participaram 38 crianças e ele permitiu ajustar os protocolos de entrevista, oferecendo às pesquisadoras a experiência necessária para a realização da coleta definitiva de dados. A análise dos resultados obtidos no Estudo Piloto permitiu ainda o exercício da construção de categorias de análise por agrupamento dos argumentos em função de suas semelhanças e regularidade. O mesmo procedimento foi novamente utilizado na presente pesquisa para a construção de novas categorias de análise.

Os protocolos de entrevista foram elaborados de maneira a contemplar diferentes direções de análise. Assim, havia questões que abordavam mais especificamente cada uma das direções, embora não de forma exclusiva, ou seja, as perguntas poderiam eliciar respostas analisáveis em mais de uma direção. Porém, algumas questões abordavam de forma predominante uma dessas direções analisadas. Para observar a orientação de pensamento da criança e sua compreensão a respeito do conteúdo do conto (habilidades mais relacionadas às estruturações cognitivas do pensamento), foram elaboradas as cinco primeiras questões do protocolo do conto “O Lobo e os Sete Cabritinhos” e as quatro primeiras questões do protocolo de “Senhor Lobo e Senhora Gata”. Para investigar os tipos de valorizações afetivas relacionados à escolha das personagens preferidas, utilizaram-se as questões 8 a 11 do protocolo do conto “O Lobo e os Sete Cabritinhos” e ‘7 a 10 do conto “Senhor Lobo e Senhora Gata”. Essas duas direções de análise serão apresentadas neste artigo. Além destas, os protocolos buscaram investigar as relações entre a escolha de personagens e o julgamento moral a respeito de suas ações no conto, assim como a utilização do argumento de gênero nas escolhas das crianças. Essas relações com julgamento moral e gênero não serão analisadas no presente artigo.

Para a análise, os dados brutos (as respostas) foram agrupados de acordo com as regularidades observadas (semelhanças de argumentação), questão por questão e para cada conto, separadamente. Em seguida, foram elaboradas categorias de análise para tabulação das respostas quanto aos aspectos cognitivos (estruturações cognitivas) e afetivos (relacionados às valorizações), a partir das questões relacionadas com cada um desses aspectos. Essas categorias serão apresentadas mais adiante, juntamente com cada hipótese de pesquisa derivada da direção de análise especifica. Os resultados foram analisados conforme duas direções: a) quanto aos aspectos afetivos (valorizações e escolhas); b) com relação aos níveis de estruturação cognitiva. Após esta etapa, duas questões foram selecionadas, uma para cada direção de análise, nas quais as categorias anteriormente elaboradas puderam ser aplicadas de forma mais evidente. Foi efetuado tratamento estatístico dos resultados para verificação da significância entre as diferenças observadas e realizada a discussão dos mesmos de acordo com os conceitos de Piaget.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Hipótese 1: Haveria progressão na qualidade das valorizações (aspectos admiráveis), conforme a idade das crianças. Esta hipótese referiu-se à questão 10. Que qualidades ela tem (personagem escolhida como preferida) que você admira (= gostaria de ter)? Por que”, do protocolo do conto “O Lobo e os Sete Cabritinhos”. As categorias de análise obtidas (a partir do agrupamento de respostas similares em sua argumentação) foram:

I) Atributos Concretos: a escolha é feita levando-se em consideração somente os atributos físicos do personagem e/ou coisas materiais que ele possui.

IIA) Descrição da ação: a criança manifesta sua admiração por algo que o personagem fez durante a história. Nesta escolha, não é levada em consideração a intenção do personagem, tampouco há inferência sobre significações implícitas do conto. A criança reproduz quase literalmente o trecho da história onde ocorre a ação admirada.

IIB) Inferência a partir de uma ação: a criança recorre ao conto para servir de base para a resposta, mas vai além do relato das ações ocorridas, inferindo e interpretando acerca de relações, significados e intenções que estariam implícitas no mesmo.

III) Conteúdo Abstrato: respostas em que os aspectos escolhidos não se relacionam diretamente ao conto e são inferidos pelas crianças, mas não tem como ponto de partida um determinado trecho do conto. A criança parece estar fazendo um julgamento moral a respeito da personagem, admirando qualidades que são abstratas, como por exemplo, a coragem e a esperteza. Pertencem também a esta categoria as respostas, nas quais os aspectos admiráveis não são puras virtudes, mas inferências generalizadas acerca de algo que o conto desencadeou, mas estas conclusões não estão ligadas diretamente ao conto. A criança percebe que sua conclusão vale para diversas situações, inclusive em sua vida cotidiana (seria algo semelhante à “moral da história”).

Assim, foi atribuído 1 ponto para as respostas classificadas no nível I (atributos concretos); 2 pontos para o nível IIA (descrição da ação), 3 pontos para as respostas da categoria IIB (inferência a partir de uma ação), e 4 pontos quando as respostas apresentavam conteúdo abstrato (nível III). Na Tabela 2 podem ser observados os resultados referentes à classificação e pontuação das crianças do primeiro Grupo.

Tabela 2. Pontuação para as respostas à questão 10

 

 

A elaboração das categorias de análise forneceu um panorama mais claro dos dados, no qual é possível perceber que as respostas podem ser classificadas desde um nível que foi denominado concreto (respostas que não são baseadas em inferências e nas quais não há indícios de coordenação de valores, tampouco aspectos morais), até um nível mais abstrato, no qual essas características estão presentes, indicando um tipo de pensamento que, de acordo com Piaget, seria mais desenvolvido, já que a capacidade de construir uma escala de valores e considerar aspectos morais aparece, em média, no final do período operatório concreto e é condição necessária para o posterior aparecimento do pensamento formal, no qual esses aspectos se tornarão ainda mais desenvolvidos e evidentes.

Para esta questão, a amostra constituiu-se de 33 crianças, sendo 14 meninos (42,4%) e 19 meninas (57,6%). Apesar de 36 crianças terem sido entrevistadas, três não responderam ou não puderam ter suas respostas aproveitadas para esta questão. A idade média foi de 8,18 anos (DP = 1,47), variando entre 5 a 10 anos. Com o intuito de facilitar o trabalho estatístico, a amostra foi agrupada em três faixas etárias: 5 a 7 anos (n=12, 36,4% da amostra); 8 a 9 anos (n=13, 39,4%); e 10 anos (n=8, compondo 24,2%). Quanto às escolhas dos aspectos admiráveis do personagem, quando são comparados os grupos etários, observase uma diferença estatisticamente significativa entre eles, em relação à distribuição das respostas nas categorias de análise pelo teste de Kruskall Wallis (KW = 12,894; p= 0,002). Quando são comparadas as faixas etárias de 5-7 anos com a de 8-9 anos, através do teste de Mann-Whitney, não foi verificada diferença estatisticamente significativa (MW = 53,50; p= 0,153). Na comparação entre as faixas etárias 5-7 anos e 10 anos foi observada diferença significativa na distribuição das respostas das crianças nas categorias (MW = 2,5; p < 0.001), bem como na comparação entre as faixas etárias 8-9 anos e 10 anos (MW = 23; p = 0,027). Foi obtida a correlação de postos de Spearman entre a idade e a distribuição das respostas nas categorias de 0,655 (p < 0,001), ou seja, quanto maior a idade, maior a tendência de classificação da resposta em níveis superiores. As respostas de crianças mais velhas tenderam a receber melhor pontuação, ou seja, na escolha de aspectos admiráveis da personagem estas respostas apresentavam com maior freqüência inferências a respeito de atributos e qualidades abstratas.

Hipótese 2: Os níveis de estruturação mais avançados diriam respeito às crianças mais velhas (teoricamente com melhor nível de desenvolvimento cognitivo). Também nesse caso, foram atribuídos pontos às respostas das crianças, para a questão 3. “Quem tinha mais truques? Por que?, do conto “Senhor Lobo e Senhora Gata”. De maneira geral, as categorias de análise elaboradas para esta questão foram:

I) Fora do contexto: incluem-se nesta categoria respostas que fogem do contexto em questão, ou seja, respostas que não correspondem ao que foi perguntado exatamente.

II) Uso restrito do conteúdo: respostas que se prendem ao conteúdo do conto, muitas vezes repetindo até as mesmas palavras deste, não utilizando elementos adquiridos por outro meio.

IIIA) “Mais além” sem generalização: respostas que utilizam inferências, porém ainda baseadas à priori em elementos do conto. As crianças já são capazes de se desprenderem um pouco do conteúdo literal do conto, respondem usando mais suas próprias palavras.

IIIB) “Mais além” com generalização: respostas que mostram que as crianças são capazes de transportar o que está dito no conto para além deste, para outros conteúdos que foram adquiridos por abstrações ao longo de sua vida, ampliando o que está no conto e generalizando.

Respostas sem relação com o texto receberam menos pontos e respostas baseadas em inferências (sem e com generalização) receberam mais pontos, já que expressariam maior complexidade de estruturação cognitiva.

A classificação dos resultados referentes à classificação e à pontuação das crianças do outro grupo são mostradas na Tabela 3.

Tabela 3. Pontuação para as respostas à questão 3

 

 

NC = Não classificada

A amostra para a análise das respostas a esta questão foi composta de 39 crianças: 12 meninos (30,8%) e 27 meninas (69,2%), com média de 8 anos (DP = 1,59), já que uma criança não respondeu a esta questão. E também foi dividida em três grupos etários: 5 a 6 (n = 11, 28,2% do total); 7 a 9 (n = 20, 51,3%), e 10 (n = 8, 20,5% da amostra). Quando foram comparados os três grupos etários, observa-se uma tendência a diferença estatisticamente significativa entre eles, com relação às categorias de análise pelo teste de Kruskal-Wallis (KW = 5,208; p=0,074). Quando analisados os grupos dois a dois, foi constatada uma diferença estatisticamente significativa entre o grupo 5-6 anos e o grupo 7-9 anos (MW = 60,50; p= 0,032). Houve uma tendência a diferença estatística significativa entre os grupos 5-6 anos e 10 anos (MW = 24,50; p = 0,085). Não houve diferença entre os grupos de 7-9 anos e 10 anos (MW = 72,50; p= 0,689).

Diante das análises empreendidas pode-se concluir que a relação entre idade e os aspectos cognitivos não foi confirmada, como era esperado. Isto pode significar que a questão 3 do protocolo do conto Senhor Lobo e Senhora Gata (“Quem tinha mais truques? Por que?) não apresentou desafio especial às crianças, já que a resposta estava no texto (o lobo afirmava que era mestre numa centena de truques). Tratava-se, assim, de identificar diretamente no enredo o elemento para responder à questão e não de inferir a partir de relações entre os elementos. Este era o desafio da questão seguinte do protocolo (“Quem tinha o melhor truque de todos? Por que?”), que demandava análise de pelo menos dois elementos: o saco de truques do lobo e a eficácia do único truque da gata.

Apesar disso, a diferença estatisticamente significante encontrada entre o grupo etário 5-6 anos e o de 7-9 anos demonstra que, ainda que a questão analisada não representasse um desafio especial às crianças, a qualidade das respostas e argumentações utilizadas evoluiu com a idade. Com base na teoria piagetiana, é possível relacionar estas duas faixas etárias com os períodos de desenvolvimento pré-operatório e operatório concreto, este último sendo conquistado, em média, a partir dos 7 anos, permitindo à criança pensar de maneira mais realista, estável e reversível, o que se traduz, nesta amostra, por respostas mais adequadas ao contexto do conto.

Os dados confirmaram a hipótese de relação entre valorizações e escolhas de aspectos admiráveis e a idade das crianças, o que está em concordância com as teorias acerca do desenvolvimento, de modo geral. De acordo com Piaget, a capacidade de coordenar valores, de realização de julgamento moral autônomo e, conseqüentemente, de escolher aspectos para admiração, são competências que se adquirem no curso do desenvolvimento. Na medida em que as capacidades cognitivas avançam, concomitantemente avança também a capacidade da criança em se posicionar diante de sua afetividade, isto é, de fazer escolhas e expressar com maior clareza seus interesses e valorizações, desprendendo-se do plano concreto e do ponto de vista egocêntrico, podendo assim levar em consideração aspectos mais abstratos do conto e das personagens, como intenções, conseqüências de ações e qualidades admiráveis, escolhidas, não apenas pelo papel desempenhado pela personagem no conto, mas por serem consideradas qualidades a serem cultivadas pelas pessoas, de uma maneira geral, e que a criança também gostaria de ter.

O desenvolvimento dos aspectos afetivos e a formação da escala de valores do indivíduo, construída em conjunto com o desenvolvimento cognitivo, como observado a partir dos dados obtidos, indicaram evolução de ambos os aspectos com a idade. Para os aspectos admiráveis dos personagens do conto, a diferenciação entre as respostas dadas por crianças mais velhas e mais novas foi ainda mais evidente, indicando que, possivelmente, a escolha (e a sua respectiva justificativa) de aspectos afetivos admiráveis de personagens do conto demandaria uma coordenação, ao mesmo tempo de capacidades afetivas e cognitivas, que crianças mais novas teriam maior dificuldade em fazer, enquanto que responder a uma questão de ordem mais explicitamente cognitiva, relacionada ao conteúdo do conto, não desencadearia tantos desafios. Além disso, a coordenação de valores afetivos supõe, necessariamente, dois fatores fundamentais: a superação do egocentrismo, com a capacidade de colocar-se no lugar da outro, para daí, apreender aspectos admiráveis, aquilo que a criança “gostaria de ter”; e a capacidade operatória de organizar não somente o pensamento, mas também os sentimentos numa escala de juízos e valores. Os resultados indicam que a coordenação de valores, descrita aqui a partir da escolha de sentimentos admiráveis e sua tradução em argumentações baseadas em inferências e sentimentos mais abstratos, parece depender também de uma capacidade cognitiva prévia bem construída, o que, para as crianças mais novas, ainda estaria em curso.

O estudo mostrou, portanto, que as representações de contos podem fornecer informações sobre aspectos afetivos e cognitivos do desenvolvimento psicológico da criança. Por meio das questões elaboradas, tendo como procedimento metodológico a entrevista clínica piagetiana, as regularidades de respostas observadas para cada faixa etária permitiram relacionar tipos de argumentações com etapas do desenvolvimento afetivo e cognitivo propostos por Piaget (1953-1954). Portanto, as entrevistas com contos de fadas podem, dessa maneira, constituir-se como um interessante instrumento para acessar tais aspectos do desenvolvimento psicológico infantil, sendo necessários mais estudos a este respeito. Além disso, indicou a possibilidade do uso da perspectiva e do método piagetiano para a pesquisa das representações de histórias.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bettelheim, B. (1978). Les contes de Perrault. Paris: Éditions Seghers.        [ Links ]

Bettelheim, B. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra.        [ Links ]

Coelho, L.M.S. (1987). O conto de fadas. São Paulo: Ática.        [ Links ]

De Souza, M.T.C.C. (2005). Valorizações afetivas em representações de contos de fadas. Boletim de Psicologia, LV (123), 205-232.        [ Links ]

Grimm, J. (1989). Os contos de Grimm. (T. Belink, trad.). São Paulo: Ed. Paulinas.        [ Links ]

Owens, L. (1996). The complete brothers Grimm fairy tales (M. T. C. C. De Souza, livre tradução do original). New York: Arenel, Gramercy Books.        [ Links ]

Piaget, J. (1978). A formação do símbolo na criança. (A. Cabral e C. M. Oiticica, trad.). Rio de Janeiro: Zahar Editores. (Original publicado em 1945).        [ Links ]

Piaget, J. (1953-54). Les relations entre l’intelligence et l’affectivité dans le devéloppement mental de l’enfant. Bulletin de Psychologie. Cours de Sorbonne, 1953 (3 - 4) e (6 - 7) e 1954 (9 e 12).

Von-Franz, M.L. (1985a). A sombra e o mal nos contos de fadas. São Paulo: Ed. Paulinas.        [ Links ]

Von-Franz, M.L. (1985b). O significado dos motivos de redenção nos contos de fadas. São Paulo: Cultrix.        [ Links ]

 

 

Recebido em 22/10/07
Revisto em 18/08/2008
Aceito em 20/08/2008

 

 

* Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da USP, Avenida Professor Mello Moraes, 1721. São Paulo &– SP. CEP: 05508-900; E-mail: mtdesouza@usp.br.
1 Bolsistas de Iniciação Científica da FAPESP.

 

 

Anexo I

 

Protocolo 1: O Lobo e os Sete Cabritinhos

  1. Por que a cabra foi para a floresta?
  2. Por que você acha que o lobo chamou os cabritinhos de filhos queridos?
  3. Por que você acha que o padeiro e o moleiro ajudaram o lobo?
  4. Por que você acha que os cabritinhos acharam que o lobo era a cabra?
  5. Por que o lobo comeu os cabritinhos?
  6. O que você acha que o cabritinho mais novo sentiu, quando viu que só ele não tinha sido devorado pelo lobo?
  7. Por que você acha que os cabritinhos não morreram na barriga do lobo?
  8. Que personagem dessa história você gostou mais?
  9. O que você acha que esta personagem tem de interessante (= legal)? Por que?
  10. Que qualidades ela tem que você admira (= gostaria de ter)? Por que?
  11. Tem alguma coisa nela que você não admira? O que? Por que?
  12. Quem você acha que tem (a qualidade apontada anteriormente): os meninos ou as meninas? Por quê?
  13. Para você, quem é o herói dessa história? Por que?
  14. Você gostaria de mudar alguma coisa no final dessa história? O que?

Protocolo 2: Senhor Lobo e Senhora Gata

  1. Por que a gata falou com o lobo?
  2. Por que o lobo perguntou quantos truques ela sabia?
  3. Quem tinha mais truques? Por que?
  4. Quem tinha o melhor truque de todos? Por que?
  5. O que você achou do que o Senhor lobo fez na história? Por que?
  6. E o que a gata fez na história? O que você achou? Por que?
  7. Que personagem dessa história você mais gostou?
  8. O que esse personagem tem que você acha interessante (=legal)? Por que?
  9. Que qualidades ela tem que você admira (=gostaria de ter)? Por que?
  10. Tem alguma coisa nela que você não admira? O que? Por que?
  11. Quem foi mais esperto nesta história? Por que?
  12. Quem você acha mais esperto: os meninos ou as meninas? Por que?
  13. Para você, quem é o herói desta história? Por que?
  14. Gostaria de mudar alguma coisa no final desta história? O que?

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