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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.59 n.130 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Doação de órgãos: possíveis elementos de resistência e aceitação

 

Organ donation: possible elements of resistance and acceptance

 

 

Alberto Manuel Quintana * I II; Dorian Mônica ArpiniII

I Universidade Federal de Santa Maria - Programa de Pós-Graduação em Enfermagem
II Universidade Federal de Santa Maria - Departamento de Psicologia

 

 


RESUMO

Este trabalho estuda as representações sobre a doação de órgãos. Para isso realizou-se uma aproximação ao significado atribuído à doação de órgãos pela população leiga (identificado como aquele sujeito que não pertence, nem por trabalho, nem por formação, às áreas de saúde). Escolheu-se uma metodologia qualitativa, tendo como instrumentos entrevistas semi-estruturadas e grupos de discussão. No total, foram realizadas 19 entrevistas e cinco grupos de discussão. A partir da análise do material coletado, podem-se identificar fatores de resistência à doação, tais como: dificuldade de aceitação da morte, principalmente quando o possível doador é um filho, identificação da morte com a morte clínica (parada cardio-respiratória) e desejo de manutenção da integralidade do corpo da pessoa falecida. Como fatores de facilitação ao ato de doar podem set destacados a confiança em relação à equipe médica e, principalmente, o falecido ter expressado o seu desejo de ser doador.

Palavras-Chave: Doação de órgãos, Morte encefálica, Morte.


ABSTRACT

This article studies the representations on organ donation. An approach was made to the meaning attributed to organ donation by the layman (considered as such the participant who does not belong, neither by work, nor by having a degree, to the health area). A qualitative methodology was chosen, using as instruments semi-structured interviews and discussion groups. Thus 19 interviews and 5 discussion groups were conducted. The analysis of the material collected allowed to identify factors related to resisting to donation, such as: difficulty to accept death, mainly when the potential donor is a son or a daughter, identifying death as clinical death (cardio-respiratory collapse) and the desire to maintain the integrity of the deceased's body. Facilitating factors to the act of donating were: trustworthiness regarding the medical staff and, essentially, the deceased's express wish of being a donor.

Keywords: Directed tissue donation, Brain death, Death.


 

 

Apesar de o Brasil ser o segundo país do mundo em número de transplantes, ficando atrás somente dos Estados Unidos, constata-se a necessidade de aprimoramento do número de doações a partir de pessoas falecidas (Marinho, 2006). Ainda que as pesquisas (Santos e Massarollo, 2005; Rodrigues e Sato, 2002) apontem que a maioria das pessoas concorda quanto à importância atribuída ao ato de doar, isso não se concretiza no número efetivo de doadores, resultando num grande número de pessoas à espera da doação e num número reduzido de doadores. Isso pode nos indicar que as diversas campanhas para captar doadores de órgãos podem não estar alcançando os resultados esperados (Cooper et al., 2004; Steiner, 2004).

Acredita-se que um dos entraves nos quais possam estar esbarrando essas campanhas é o fato de elas planejarem uma mudança de comportamentos da população sem considerar a existência das diferenças culturais entre aqueles que as confeccionam e os destinatários da ação. De fato, essas mudanças comportamentais, necessariamente, vão estar vinculadas a valores, crenças, conceitos presentes no grupo ao qual se dirigem as campanhas e que, na maioria das vezes, são desconhecidos por aqueles que planejam as ações. Assim, uma comunicação realizada desde o lugar da ciência oficial vai ser insuficiente para modificar os universos simbólicos das camadas populares, uma vez que esses grupos reinterpretam parte das orientações e ignoram aquelas que se confrontam com a sua visão de mundo.

Tradicionalmente, as equipes médicas têm a tendência a enfatizar os componentes estritamente biológicos, desconsiderando, deste modo, as suas relações com o social e o cultural. Contudo, essa visão está em processo de modificação. Podemos constatar, em relação à doação de órgãos, que as equipes médicas estão se preocupando com a estrutura psicológica dos familiares do doador, com a maneira como o receptor vai conviver com esse seu novo órgão, enfim, estão introduzindo a importância dos fatores psicológicos na doação de órgãos (Bendassolli, 2001).

A morte é uma das diversas construções imaginárias que estão relacionadas à doação. A pessoa morre, mas o órgão doado permanece vivo em outra pessoa, possibilitando que, no imaginário dos familiares, seu parente continue vivo.

A doação de órgãos está diretamente relacionada ao início dos transplantes, os quais começaram com o transplante de córneas e tiveram um forte impulso no começo da década de cinqüenta, com o as técnicas do transplante renal (Garrafa, 1993; Lima, Magalhães e Nakamae, 1997). A partir da difusão dos transplantes surge o descompasso entre o número de transplantes possíveis e o número de doadores disponíveis. Tal descompasso é atribuído, por vezes, à má compreensão, por grande parte da população, do conceito de morte encefálica (Steiner, 2004).

Ainda que tecnicamente definido, o conceito de morte encefálica está estreitamente vinculado com o processo de doação de órgãos, uma vez que órgãos como coração, pulmões, fígado e pâncreas somente podem ser retirados antes da parada cardíaca (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, 2007; Gogliano, 1993). Esse é um grande ponto de discussão que leva a afirmações como a de que não existe um conceito de morte "inequívoca"; a morte encefálica é um conceito de morte criado para possibilitar o transplante de órgãos (Batista e Schramm, 2004; Kipper, 1999).

Como o diagnóstico de morte encefálica é um ponto fundamental no processo de doação e a partir da evidência na literatura de que esse diagnóstico, ainda que amplamente aceito, apresente pontos polêmicos, cabe questionar-se como será a sua aceitação na população leiga e suas influências no processo de doação. Com efeito, pesquisadores como Santos e Massarollo (2005) já identificaram, tanto na população quanto nos profissionais de saúde, a dificuldade na aceitação da morte encefálica como forma de identificação da morte.

Desse modo, o presente artigo pretende realizar uma aproximação às representações construídas em face da doação de órgãos, procurando identificar aqueles fatores que levam tanto à aceitação como à recusa da doação.

 

MÉTODO

Para uma melhor adequação aos objetivos, optou-se pelo método qualitativo, utilizando as técnicas das entrevistas semi-estruturadas e grupos de discussão (Turato, 2003). Os sujeitos da pesquisa foram pessoas residentes numa vila da cidade de Santa Maria, escolhidas de forma aleatória.

Antes de ir a campo, foram assinaladas num mapa, de maneira fortuita, as residências onde se contatariam os possíveis entrevistados. Uma vez no local, procuraram-se tais moradias anteriormente designadas, solicitando a seu morador o consentimento para participar da pesquisa. o critério de inclusão estabelecido foi ser maior de dezoito anos e não ter passado pela experiência de ter sido solicitado a doar órgão de um familiar falecido.

As entrevistas, assim como os grupos, foram utilizadas a fim de permitir uma maior aproximação em relação ao fenômeno a ser estudado. Nelas mantiveram-se uma "escuta ativa" e uma "atenção receptiva a todas as informações prestadas", intervindo com discretas interrogações ou sugestões, que estimulavam a abordagem da temática proposta na pesquisa. O entrevistador manteve uma atitude aberta, flexível e disponível à comunicação, construindo um clima de confiança e favorecendo que o entrevistado apresentasse suas idéias livremente, sem receios ou constrangimentos (Chizzotti, 1998).

Para Bleger (1980), a entrevista permite uma flexibilidade na relação pesquisador/pesquisado, reduzindo os efeitos de uma imposição direta da problemática a ser investigada e facilitando, desse modo, a interação com os sujeitos entrevistados. De fato, nas entrevistas semi-estruturadas, "o informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa" (Trivinos, 1987, p. 146).

Foi realizado um total de 19 entrevistas que tiveram os seguintes eixos norteadores: doação de sangue, doação de órgãos, transplante, morte, morte encefálica e coma.

Os grupos de discussão foram compostos por um coordenador do grupo e um auxiliar, tendo, no máximo, dez e, no mínimo, seis membros participantes, todos eles pertencentes a programas de saúde que ocorrem na Unidade Sanitária da comunidade pesquisada, Foram realizados: dois grupos de Sala de Espera compostos por homens e mulheres com idades oscilando entre 21 e 54 anos; um grupo de Diabéticos e Hipertensos, com participantes de ambos os sexos com média de idade mais avançada (o participante mais jovem tinha 47 anos e o mais velho 77); um grupo de Mães integrado por mulheres cuja faixa etária oscilava entre 31 e 42 anos, e um grupo do Programa de Planejamento Familiar, do qual participaram mulheres, cuja idade variava de 23 a 30 anos. Nos cinco grupos foram utilizados os mesmos eixos norteadores das entrevistas.

Os grupos de discussão complementaram as entrevistas, pois neles o papel prioritário foi desempenhado pelas opiniões, relevância e valores de seus componentes, enquanto na observação o foco recaiu sobre comportamentos e relações. os grupos de discussão permitiram, também, esclarecer temáticas que surgiram na observação e nas entrevistas individuais devido à interação de seus membros. Com efeito, acredita-se que a interação presente nos grupos possibilitou a visualização de novas formas de interpretação da problemática abordada(Jovchelovitch, 2000).

Nenhuma das duas técnicas foi baseada em perguntas. Foi propiciado um clima de descontração, de modo que as entrevistas se aproximassem de uma conversa informal. os eixos norteadores serviram como sinalizadores dos aspectos a serem abordados pelo entrevistador. Nos grupos de discussão, os eixos norteadores foram utilizados como forma de estimular a discussão entre os participantes.

Para preservar o anonimato dos participantes da pesquisa, os depoimentos foram referidos por meio de um código. Nas entrevistas individuais, o código foi constituído das iniciais da técnica (Ei), seguidas do número da entrevista e da letra F ou M conforme o entrevistado fosse do sexo feminino ou masculino. Nos grupos de discussão, o código foi composto da palavra Grupo, identificando a técnica seguida do número do grupo. Do mesmo modo, nas entrevistas, foi acrescentada a letra F ou M para diferenciar o sexo do entrevistado mais o número que identifica o participante desse grupo.

As entrevistas, assim como os grupos de discussão, foram gravadas em áudio, precedidas pela leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. os dados assim obtidos foram tratados empregando a análise de conteúdo (Bardin, 2000), método de reconhecida importância nas pesquisas qualitativas (Turato, 2003), uma vez que possibilita visualizar os diferentes sentidos (manifestos e latentes) das falas dos sujeitos da pesquisa. Após a "leitura flutuante" do material coletado, foram categorizados os tópicos emergentes segundo os critérios de relevância e repetição (Turato, 2003).

A pesquisa foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria sob o número 23081. 006797/2006-03.

 

ANÁLISE E COMENTÁRIO DOS RESULTADOS

1. A razão e a emoção

Frente a uma primeira abordagem sobre o ato da doação, os entrevistados se colocam de forma favorável à doação de órgãos de pessoas falecidas: "acho um ato tão bonito". No entanto, na medida em que as entrevistas e os grupos foram se desenvolvendo, esse posicionamento inicial foi desaparecendo, dando lugar a expressões de resistência ao ato da doação. Deve-se considerar que, no momento inicial, tanto nas entrevistas como nos grupos, os discursos se caracterizavam pelo pouco envolvimento dos sujeitos. Estes mantinham uma atitude formal diante do pesquisador, a qual ia diminuindo no transcurso das conversas. Disso podemos inferir que as afirmações favoráveis à doação expressavam uma posição racional àquilo que se acredita ser o correto. Por outro lado, a posição negativa à doação seria resultado do envolvimento dos sujeitos nas temáticas abordadas, possibilitando a emergência da emoção ao se colocarem no lugar daquele que perdeu um familiar e que poderia, ou não, doar os seus órgãos.

Os próprios entrevistados identificam a distância existente entre uma posição baseada no raciocínio e outra realizada em meio a um contexto com forte carga emotiva, como se verifica no enunciado a seguir.

"Eu acho que, que existe tanta carência de órgão né, porque que não ia colabora né. Ah, e eu também não sei na hora né, que a gente não, não tá passando por um momento difícil que a gente diz né, mas de repente chega na hora a gente também não, muda de opinião né. Isso aí é questão de momento né, não é assim, dizê assim: ah, por que eu vo fazê" (EI6M).

Essa posição favorável à doação de órgãos também estava relacionada, num primeiro momento, à identificação dos sujeitos da pesquisa como eles próprios doadores e não um familiar. Assim, o aumento da posição contrária à doação se tornava maior quando o suposto doador falecido deixava de ser o próprio sujeito para ser algum familiar próximo dele, obtendo sua expressão máxima ao se tratar de um filho. O entrevistado EI5M, após ter se manifestado favorável à doação, foi questionado sobre como teria respondido se, na ocasião do falecimento do seu filho, tivessem lhe solicitado doar os órgãos. Ele respondeu:

"Filho é uma coisa que aperta o coração né. Uma coisa que tem que pensá um poco né.... Uma coisa mais difícil, né. Se é da gente, a gente né, se doa como se diz o ditado, mas dum filho assim a coisa fica mais, ba, fica mais, mais dolorida né" (EI5M).

Este outro depoimento confirma:

"Eu acho que eu não deixava. Eu acho que eu não deixava. Ainda mais um filho. Eu não sei, eu ... Sei lá, vão picotiá, vão cortá, sei lá" (EI13F).

Assim, quanto mais estrito o vínculo com a pessoa morta, maior a dificuldade de doar, o que também pode se relacionar com a dificuldade da aceitação da morte (Bendassolli, 2001; Chiavenato, 1998; Hennezel, 2004). Doar implica aceitar que o outro morreu, o que, por vezes, é difícil num primeiro momento, como expressa uma entrevistada ao falar da morte do seu filho: "ele não tava morto, só tava descansando" (Grupo 4, F6). Assim, a resistência a doar está estreitamente vinculada à dificuldade de aceitar a perda do familiar e a sua irreversibilidade. Essa idéia é manifestada no seguinte depoimento:

"A mãe sempre tem a esperança que a pessoa ainda possa se recuperá. Mesmo sabendo que não tem mais volta.... É, porque eu, eu perdi dois filho e eu tava vendo eles morto ali e tive esperança que eles ainda acordassem, por causa da dor, né, a pessoa sempre tem a esperança" (Grupo 5, F4).

Na última fala, observa-se que a decisão de doar não passa por uma questão racional de conhecimentos, pois a entrevistada sabia que seus filhos estavam mortos, mas, mesmo assim, precisava acreditar que estavam vivos.

2. Um pedaço de mim

Sendo o corpo visto como algo a ser venerado, respeitado (Chiavenato, 1998; Áries, 2003), a doação é sentida como uma profanação do cadáver da pessoa morta; uma falta de preocupação com a memória dele. o familiar sente que, ao liberar o corpo para doação e deixar que os órgãos sejam retirados ("mutilados" nas palavras dos entrevistados), estaria demonstrando um desinteresse e uma falta de cuidado para com o morto - idéia já presente na bibliografia na qual o cuidado com o cadáver é uma forma de "homenagear os mortos" (Hennezel, 2006). Com efeito, a partir da fala dos entrevistados, observa-se que a doação é vista como geradora de um sentimento de culpa por não se respeitar o familiar morto. A retirada dos órgãos do corpo do familiar é identificada como uma falta de cuidado com aquele que morreu, incrementando, assim, a dor e o sofrimento dos familiares. o cadáver não é visto como algo meramente material, mas como se a pessoa, de algum modo, continuasse existindo ali.

Existe, nos entrevistados, a identificação do cadáver com a pessoa que morreu. O cadáver é visto como sendo ainda parte desse sujeito que, de alguma forma, continua presente no seu corpo sem vida. Com efeito, a preservação do corpo passa a ser vista como uma forma de preservar a vida.

"Vão extrai um órgão e aí ficam (os familiares) mais revoltado né... parece que... eles tão maltratando a pessoa, o cadáver né, parece que a pessoa não morreu ainda" (EI6M).

Após a morte, é por meio do corpo que o familiar identifica o seu ser querido. Nesse sentido, a manutenção da integralidade do corpo se torna uma forma de preservar a pessoa falecida. A dilaceração do cadáver é sentida como se o próprio sujeito estivesse sendo despedaçado. De fato, os entrevistados consideram que esse corpo sempre vai fazer parte daquele que morreu e, portanto, a doação de órgãos se transforma, para o grupo pesquisado, numa mutilação da pessoa.

"Aí, eu acho assim, tirarem um pedaço da gente eu acho que é ruim né. Deus mando a gente bem perfeito e acho que voltá, quando a gente morre né, voltá assim, voltá inteirinho né" (Grupo 3, M6).

3. As diversas mortes

A identificação da morte, por vezes, é delegada à figura do médico, como sendo ele o único capaz de definir esse estado. Deferências como "o médico vai dizê que tá morta" (EI4F); "isso aí [a morte] não se sabe, só o médico mesmo" (EI5M) podem ser consideradas afirmações resultantes do contato com o pesquisador, o qual era visto como representante do mesmo grupo erudito e, assim, próximo à figura do médico. À medida que o pesquisador deixava de ocupar esse papel, surgiam, nas entrevistas, não só questionamentos aos diagnósticos médicos de morte, como também se revelavam outras maneiras de identificá-la. Assim, após esse primeiro modo de reconhecer a morte, o qual era usado pelos entrevistados como anteparo para resguardar as suas opiniões, iam emergindo as idéias através das quais esse grupo identificava a morte.

3.1 A morte antecipada

Vários entrevistados identificam a morte com a morte encefálica (Rodrigues e Sato, 2002). Esta aconteceria quando o cérebro parasse de funcionar, pois ele seria o órgão que comanda todos os outros órgãos - "o cérebro que manda em todo o resto do corpo" (Grupo 5, F3).

"No coma né, ... o cérebro continua funcionando né, mas ele pode tê um, ele pode retorná, mas na morte cerebral não tem retorno" (EI6M).

Contudo, a irreversibilidade está sendo atribuída ao quadro do paciente. Noutras palavras, a morte encefálica é identificada como a impossibilidade de o paciente vir a recuperar a consciência, mas não como a sua morte. outro depoimento pode nos esclarecer mais essa situação:

"Mas, morte 'celebral' é uma coisa que não tem, não tem como fazê melhorá, eu acho que já é bem dizê mais morto do que vivo daí né" (Grupo 3, M1).

Assim, o grupo pesquisado considera que, ao morrer o cérebro, a pessoa se encontraria numa zona limítrofe entre a vida e a morte. Ela já está condenada a morrer; contudo, ainda continua existindo vida nela. Essa idéia se assemelha às posições de alguns pesquisadores como Kipper (1999) e Coimbra (1998) que consideram a morte encefálica um prognóstico de que o paciente vai evoluir ao óbito, mas não à constatação do falecimento.

Inclusive entrevistados que colocaram como característica da morte encefálica a sua irreversibilidade, "esse aí não tem mais volta, é irreversível" (EI3M), noutros momentos de seus depoimentos se contrapõem a essa diferenciação:

"Pessoas já foram e voltaram, como se diz né, que a pessoa assim, um dia no Globo Repórter, pessoa que tiveram no outro lado da vida lá e voltaram e até deram entrevista, depoimentos e contaram e coisa assim" (EI3M).

Assim, morte encefálica, ainda que intelectualmente seja vista como morte, é a parada cardio-respiratória que vai ser a referência final na identificação da morte. o grupo pesquisado sabe que o quadro de morte encefálica é irreversível, mas junto a esse conhecimento continua a esperança de que a pessoa possa voltar dessa zona ambígua, limítrofe entre a vida e a morte. A irreversibilidade que se atribui à morte encefálica corresponde à impossibilidade de recuperação do paciente, enquanto que o coma é identificado como a existência de possibilidades de melhora. Entretanto, deve-se observar que essa irreversibilidade se refere ao estado do paciente e não à sua morte, a qual vai acontecer quando advenha a parada cardio-respiratória.

3.2 A morte como morte clínica (parada cardio-respiratória)

Aparece como consenso no grupo estudado que a morte clínica é a forma que tem de representar a morte. Essa, sim, seria uma morte sem possibilidades de retorno; a morte definitiva, aquela que não tem como ser modificada. Ainda que se queira, por vezes, acreditar que o ente querido vai voltar, sabe-se da impossibilidade desse fato.

"Eu acho que a pessoa tava viva ainda, o coração continuava batendo igual, eu penso assim"
(Grupo 3, F7).
"Eu pra mim é a hora que o coração pára, né; vai a pressão, vai em conta, vai a zero eee o coração" (Ei7F).
"Para uma pessoa tá morta, tem que tá sem aparelho sem nada; não pode tá batendo nada; por enquanto que o aparelho tá tocando ali alguma coisa" (EI11M).

Mesmo os entrevistados que demonstram conhecer o conceito de morte encefálica, consideram que a morte é identificada principalmente pela parada cardíaca, em alguns casos, acompanhada também pela parada respiratória.

3.3 A morte inexistente

A identificação da morte com a morte clínica não significa que seja aceita a perda, quando se trata de um familiar próximo. Existe, sim, o reconhecimento da morte; mas também existe o desejo de que isso não tenha acontecido. Sabe-se que o ser querido morreu; mesmo assim se deseja acreditar que ele possa voltar à vida. A utilização desse mecanismo denominado de renegação (Laplanche e Pontalis, 2001) é favorecida com a apresentação de sinais que facilitem a manutenção da crença. Esse é o caso da morte encefálica, pois nela existem (ainda que por meio de aparelhos e medicamentação) a permanência dos batimentos cardíacos, respiração, temperatura corporal, etc. "É aquela esperança assim que ele vá retorná" (Ei6M).

Outros entrevistados complementam:

"Mas se a gente, o parente enquanto está ali, que está respirando, tem aquela esperança, né, que a pessoa saia daquela situação, embora não saia, né, mas esperança do familiar sempre tem né" (Grupo 5, F1).
"É, porque, enquanto há um sinal de vida, há uma esperança, né" (Grupo 5, F2).

4. A desconfiança da equipe médica e do processo de doação

Os entrevistados consideram a equipe médica como pertencente a um grupo social que os oprime. isso gera desconfiança frente à equipe. Essa avaliação negativa se estende ao atendimento de saúde como um todo. os entrevistados referem um desinteresse que se reflete numa ineficiência do serviço, quando a ele recorrem.

"Eles (os médicos) ... encaminham pra fazê um exame, pra fazê um, qualquer exame que for encaminhado, qualquer tipo de exame, é uma demora, uma demora que facilita a pessoa morrê ... e não" (Ei9F).

Coincidentemente com os resultados de outros trabalhos (Rodrigues e Sato, 2002) evidenciou-se que essa desconfiança na eficácia do sistema de saúde, por vezes, estende-se ao procedimento de captação de órgãos. O sistema, em alguns casos, é visto como corrupto, favorecendo àqueles que possuem mais recursos econômicos e dando ao possível doador a sensação de estar sendo usado. O que seria inicialmente um ato de generosidade - doar sem nenhum interesse pessoal para alguém que está precisando - é visto como sendo deturpado ao transformar o seu ato de generosidade num processo comercial e, assim, o familiar que doou fica transformado num "inocente útil".

"E outra coisa que a gente vê também muito, ... desanima um poco, é que tem muita malandragem nisso aí, muita gente furando fila, parente de, de pessoas importantes, político e gente do dinheiro, que não sei até que ponto não existe de passá na frente... de um mais pobre assim, né" (EI18M).

Acredita-se que ao fator de desconfiança somam-se tanto o sentimento de que, por sua condição econômica, esteja indefeso frente à classe médica, quanto à identificação da morte com a parada cardiorrespiratória e da morte encefálica como um estado indefinido entre a vida e a morte. Disso se teria como resultado o receio de antecipação da morte com o objetivo de obter os órgãos do doente caso ele seja doador.

"Não, mas eu, eu vô sê bem sincera quanto, quanto a essa doação de órgãos. É, é legal, eu acho, só que tem um, tem um detalhe: eu acho que no pobre é meio, é meio duvidoso porque se ele baixá ao hospital e no caso não for exatamente de morrê, de repente, de repente pode abreviarem a morte do meliante pra pegá o órgão dele" (Grupo 5, F1).

5. Eu nunca pensei nisso

Encontramo-nos numa sociedade onde não existe espaço para a morte. Ela deve ser negada e excluída do nosso cotidiano. A morte é vista como algo possível de ser evitado. Fazer referência a ela é reconhecer a sua existência. Sabemos que ela existe, mas vivemos como se fôssemos imortais (Áries, 2003; Cassorla, 1991; Moreira e Lisboa, 2006). Assim, é comum as pessoas não pensarem na possibilidade de morte de um ser querido. Com isso, os possíveis desejos de doações daqueles que vierem a morrer permanecem ignorados. Desse modo, o tabu da morte se constitui numa barreira à possibilidade de falar sobre a doação, já que não se pode falar em doar órgãos de falecidos sem fazer menção a morrer.

Frente à temática se doaria os órgãos de um filho que viesse a falecer, a entrevistada comenta:

"Mas é que eles são tão novo ainda, não gosto nem de pensá em eles morrê. Deus o livre!... Sabe, eu nunca, que eu nunca pensei nisso? Nunca, nunca, nunca" (EI13F).

A morte como tema tabu faz com que as pessoas não queiram pensar sobre a possibilidade de morte tanto própria como de um ser querido. Falar com um familiar sobre ser favorável ou não à doação implica aceitar a possibilidade de sua morte.

"Pior que a gente não para pra pensar, né, porque isso aí, ó, é uma coisa assim, ... depois de morta mesmo eu já não, eu já não concordaria, né,... é claro que a gente sabe que é uma coisa que pode salvar uma vida, né, quantas pessoas precisam, ... não adianta e tu não pára, né, pra pensar" (Grupo 3, F5).

Em ambos os depoimentos, observa-se o desconforto gerado pela possibilidade de morte do filho, evidenciando a necessidade do entrevistado de afastar essa idéia do seu pensamento.

6. O desejo do falecido

A posição sobre doação daquele que faleceu é fundamental para aceitar ou não a doação. No entanto, na maioria das vezes, a opinião da pessoa que morreu é desconhecida pelo familiar. Quando é conhecida, a vontade de ser doador daquele que morreu passa a ser considerada o seu último desejo, adquirindo, assim, uma força que pode se contrapor àqueles fatores de resistência a doar. De fato, o desejo do falecido se torna um importante fator facilitador para a doação, pois mitiga o sentimento de culpa por, supostamente, não respeitar o corpo do falecido. Com efeito, se o falecido havia manifestado que gostaria de doar seus órgãos, negar-se a realizar essa vontade é sentido como um desrespeito muito maior que o da não preservação do corpo.

"Era o que ele tinha colocado nos documento dele, na identidade tudo, então eu ia concordá, a família iria concordá porque era a vontade dele" (EI4F).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a idéia de que a doação pode vir a salvar uma vida seja um ponto importante a ser fortalecido nas campanhas de doação de órgãos, contatou-se que esse valor já existe no grupo pesquisado; contudo, não é suficiente para modificar os fatores de resistência à doação.

Evidencia-se, neste trabalho, a dificuldade em aceitar a morte do familiar. Se existe inclusive no caso da parada cardio-respiratória, essa resistência se potencializa no diagnóstico de morte encefálica. De fato, a presença de sinais vitais, como batimentos cardíacos, pulso, temperatura corporal e respiração facilitam a manutenção da esperança na recuperação, mesmo sabendo que não existe mais essa possibilidade. Estes fatores, que podem ser denominados "externos" ao familiar, somam-se à dificuldade interna que se tem em aceitar a morte de seu ente querido, criando, assim, um campo propício para a renegação.

Observou-se, na análise, que o reconhecimento da importância e do valor do ato da doação, assim como o conhecimento intelectual do diagnóstico de morte encefálica, não são elementos suficientes para a pessoa aceitar doar os órgãos de um familiar caso venha a ser solicitada.

Embora fatores de resistência à doação, como "a esperança é a última que morre"; "a identificação da morte com a morte clínica" e "o respeito ao cadáver" sejam representações arraigadas nesse grupo social, supõe-se que o incentivo a falar sobre morte resultaria num aumento da aceitação à doação. Falar de morte faz com que deixe de ser um tema tabu e possibilita que seja conhecido o desejo da pessoa falecida - fator que mais se destacou como facilitador da doação. De fato, se o desejo do falecido é um fator neutralizador dos aspectos de resistência à doação, pode-se considerar que seja interessante fomentar essas discussões nos grupos existentes nos postos de saúde e incluir a temática da "educação para a morte" nas escolas.

Um melhor atendimento e, conseqüentemente, o aumento da confiança na equipe médica poderiam neutralizar o fator de resistência presente na categoria "desconfiança no processo", este, sim, conscientemente referido como um impedimento para a doação.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 29/04/2008
Revisto em 28/07/2008
Aceito em 30/07/2008

 

 

* Endereço para correspondência: Alberto Manuel Quintana: Rua Tiradentes 23, apto. 701, Santa Maria – RS; CEP: 97050-730. E-mail: albertoq@ccsh.ufsm.br.

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