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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.59 n.130 São Paulo jun. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Caracterização da clientela infantil numa clínica-escola de psicologia1

 

Characterization of the children population in a psychology clinic school

 

 

Tatiane Regina dos Santos Cunha *; Silvia Pereira da Cruz Benetti

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) São Leopoldo - RS

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo foi caracterizar a população infantil que buscou atendimento psicológico em uma clínica-escola da Região Metropolitana de Porto Alegre, RS. Para tal, foram descritas as características de 499 crianças inscritas no período de 1999 a 2006, incluindo variáveis como: sexo, idade, motivo de procura, locais de encaminhamento, tipo de atendimento e abandonos. Verificou-se que o público infantil representou 51,8 % em relação à população total que procurou atendimento psicológico na instituição. A maioria das crianças estava na faixa etária entre 6 e 9 anos, (56,4%), sendo a maior parte meninos (67,3%). O local que mais encaminhava para atendimento eram as escolas (63,5%). Quase metade das crianças (43,5%) apresentava motivos relacionados a problemas afetivos e de relacionamento, sendo que 64% das crianças que iniciaram atendimento abandonaram o tratamento.

Palavras-Chave: Caracterização da clientela, Clínica-escola de Psicologia, Psicoterapia infantil.


ABSTRACT

The objective of this study was to characterize the child population referred to psychological assistance in a university clinic in the Metropolitan Region of Porto Alegre, RS. The features of 499 children enrolled during the years of 1999 to 2006 were described, including variables such as gender, age, reason for referral, source of referral, type of assistance, and interruptions. It was verified that the children population occupied a total of 51.8% related to search for psychological assistance. The majority of the children were between 6 to 9 years of age (56.4%), mainly boys (67.3%). The places that referred most of the cases were schools (63.5 %). Almost half of the children (43.5%) were referred to treatment with affective and relational problems and 64% of the cases dropped out of treatment.

Keywords: Clientele characterization, Psychology university-clinic, Child psychotherapy.


 

 

Estudar os centros de formação e os serviços de saúde mental encarregados da prestação de atendimento psicológico e da formação de profissionais possibilita tanto a identificação das características do ensino prestado durante o treinamento dos alunos, como da efetividade do próprio atendimento oferecido à comunidade. A partir disto, na área da Psicologia, observa-se um crescente interesse no desenvolvimento de pesquisas voltadas para a caracterização dos serviços e das demandas das clínicas-escola, as quais têm proporcionado uma contribuição importante para o aprimoramento destes locais. Principalmente, os trabalhos realizados têm indicado a necessidade de conhecer a clientela atendida, avaliar as intervenções oferecidas, propor novas estratégias e produzir informações sobre as condições de saúde mental das populações (Louzada, 2003; Romaro e Capitão, 2003; Peres, Santos e Coelho, 2004).

Basicamente, é essencial investigar o quanto as práticas psicoterápicas funcionam, avaliando dados que permeiam o processo terapêutico, entre eles as características da clientela, a fim de verificar as reais necessidades do público que busca atendimento psicológico (Salinas e Santos, 2002). E, a partir daí, desenvolver programas de treinamento em psicoterapia voltados para estas demandas. Desta forma, os estudos para caracterização da clientela em clínicas-escola são relevantes, pois permitem a detecção de subsídios para melhoria nos serviços prestados, principalmente considerando as características peculiares que possuem os atendimentos psicológicos nestes locais (Graminha e Martins, 1993).

Vários estudos apontam para a necessidade de serem repensadas as práticas oferecidas à clientela das clínicas-escola de Psicologia para que estas sejam adequadas às reais necessidades da população, indo ao encontro das demandas sociais, políticas e culturais presentes em nossa atualidade (Peres, Santos e Coelho, 2004; Silvares e Melo, 2000; Boarini e Borges, 1998; Boarini, 1996; Silvares, 1993). Além disto, o maior conhecimento sobre as características e demandas da clientela se justifica não somente com objetivo de planejar e subsidiar a avaliação do atendimento clínico oferecido nos serviços, como também para a prevenção de uma situação importante identificada nos trabalhos que é o abandono terapêutico.

Em clínicas-escola de Psicologia nos deparamos com um alto índice de abandono de psicoterapia (Lhullier, 2002). Para Peres (1998), estes altos índices podem estar associados a uma linguagem tecnicista que pode impedir o entendimento entre os psicólogos e o tipo de cliente atendido. Assim, qualquer tipo de afastamento dos profissionais das reais necessidades da clientela pode fazer com que as clínicas-escola corram o risco de não atenderem adequadamente ou até oferecerem ao aluno/ estagiário uma visão restrita sobre o papel do psicólogo (Peres, 1997, 1998; Pinheiro, 2003). É preciso ampliar a escuta psicológica, principalmente em locais que funcionam diretamente com estagiários graduandos em Psicologia, voltando-se primeiramente para as realidades dos usuários destes locais. Portanto, estudar, questionar e conhecer sua clientela é uma forma de introduzir neste espaço investigações voltadas para a clínica psicológica (Levandowski, 1998).

Em geral, os estudos sobre a caracterização de clínicas-escola (Carvalho e Telles, 2001; Levandowski, 1998; Silvares e Barbosa 1994; Lhullier, 2002) apontam que crianças e adolescentes apresentam os maiores índices em relação à procura e ao atendimento psicológico. Num levantamento sobre a faixa etária dos pacientes atendidos em uma Clínica Psicológica, foi identificado um índice de 42% referente à faixa etária de 4-14 anos, evidenciando a busca elevada por parte da faixa etária infantil (Romaro e Capitão, 2003; Térzis e Carvalho, 1988). Silvares e Melo (2000), descrevendo os resultados dos principais estudos de caracterização da população infanto-juvenil nas clínicas-escola apontam que o perfil associado a este público é o de crianças do sexo masculino, entre 6-10 anos de idade, provenientes de família de baixa-renda, encaminhadas pela escola com queixas de dificuldades de aprendizagem. Em termos do atendimento prestado, observa-se a grande desistência de casos em função de diferentes fatores, tais como listas de espera, dificuldades econômicas, de acesso, falta de informação, dentre outros (Lulhier, 2002; Romaro e Capitão, 2003). Existe, portanto, um volume significativo de busca e atendimento psicológico voltado para crianças e, ainda assim, verificam-se carências de estudos dirigidos aos problemas infantis (Godman, 2003; Melo e Perfeito, 2006).

Considerando estes aspectos, o presente trabalho tem o objetivo de caracterizar a clientela infantil de uma Clínica-Escola localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre, através de um estudo longitudinal, realizando um levantamento das características da população infantil, crianças de 2 a 12 anos de idade, atendidas no período de 1999 a 2006. Com este trabalho, pretende-se identificar as características desta faixa etária de forma a oferecer dados e informações que possibilitem uma melhor compreensão das demandas e dos processos de atendimento psicológico voltados para crianças em clínicas-escola de Psicologia.

 

MÉTODO

Delineamento

Para o levantamento das características dos casos atendidos na clínica-escola, optou-se por um delineamento quantitativo, descritivo epidemiológico. Os dados institucionais e sociodemográficos foram extraídos dos prontuários de pacientes com idade entre 2 a 12 anos, existentes em uma clínica-escola de Psicologia, localizada na Região Metropolitana de Porto Alegre. A clínica localiza-se em uma cidade com aproximadamente 270 mil habitantes, com carência de serviços de saúde mental para a população em geral. Este local atende em média 112 pacientes por ano e oferece quatro vagas para estágio por semestre para alunos de graduação em Psicologia Clínica, com modalidades de atendimento diferenciadas, tais como Psicoterapia de Orientação Analítica, Psicoterapia Cognitiva Comportamental e Psicoterapia Sistêmica. O serviço não é gratuito, pois é cobrada uma taxa de baixo valor e única para todos os atendidos. Em caso de necessidade, os pacientes podem ser isentados quanto ao pagamento. O atendimento segue a ordem de uma lista de espera, da renda familiar e casos mais urgentes podem ser priorizados.

Amostra

Durante o período de 1999 a 2006 foram atendidos 899 pacientes de diferentes faixas etárias na clínica-escola. Foram incluídas todas as crianças com idades entre 2 a 12 anos, inscritas para atendimentos psicológicos no período de 1999 a 2006, cuja idade na época de inscrição para atendimento fosse inferior a 13 anos de idade. Considerando estes critérios, a amostra final foi constituída por 499 crianças.

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Inicialmente, a coordenação da clínica-escola foi contatada a fim de ser solicitada autorização para a realização da pesquisa. Posteriormente, foram feitos encontros para discussão e planejamento do trabalho de coleta nos prontuários mantidos pela clínica referentes a todos os atendimentos realizados. Todos os pacientes atendidos na clínica-escola passam primeiro por uma triagem e, após a avaliação inicial, são encaminhados para psicoterapia individual ou de grupo. Esta triagem é realizada por estagiários do curso de Psicologia supervisionados pelos profissionais psicólogos/professores do local. Os casos avaliados na clínica têm seus dados registrados em prontuários específicos onde são registradas as informações sobre o andamento do atendimento. Os protocolos contêm informações de caráter sócio-demográfico e da evolução do caso, desde informações sobre o encaminhamento, a avaliação psicológica e o tratamento propriamente dito. Os dados são registrados pelos próprios estagiários, orientados para tal fim, sendo esta uma das tarefas básicas do estágio.

Para a coleta das informações sobre os atendimentos das 499 crianças que compunham a amostra, foram consultados os prontuários dos pacientes em relação aos aspectos sóciodemográficos, tais como: sexo, idade, escolaridade, características familiares, etc.; aspectos de procura de atendimento, motivo de procura, fonte de encaminhamento, número de pacientes inscritos, em lista de espera, atendidos, que receberam alta, que foram reencaminhados, que abandonaram seus tratamentos e pacientes que desistiram da vaga para atendimento; aspectos do tratamento, abordagens teóricas, tipos de atendimento e número de sessões realizadas.

Critérios de classificação

Em relação aos aspectos de procura de atendimento foi utilizada uma adaptação do roteiro de Campezatto (2006) para a classificação dos motivos de procura e queixas trazidas pelos responsáveis, classificados da seguinte forma: 1) Dificuldades em processos cognitivos; 2) Dificuldades no comportamento afetivo; 3) Dificuldades de relacionamento interpessoal; 4) Dificuldades na vida diária; 5) Dificuldades na esfera sexual; 6) Sintomas físicos; 7) Distúrbios orgânicos; 8) Distúrbios de alimentação ou sono; 9) Dependência química; 10) Distúrbios psiquiátricos.

Após o levantamento de todos os prontuários e identificação de todas as queixas foi feita uma segunda classificação das categorias. Isto foi realizado com objetivo de agrupar os motivos de procura de atendimento em categorias que facilitassem a análise dos dados, pela baixa freqüência de algumas das queixas, tais como dificuldades na esfera sexual e sintomas psiquiátricos, por exemplo: 1) Motivos relacionados à escola: nesta categoria foram incluídos todos os motivos relacionados a problemas de aprendizagem, dificuldades cognitivas e sofrimentos no ambiente escolar. 2) Motivos relacionados a problemas afetivos e de comportamento: como transtornos de conduta e emocionais e também de dificuldades de relacionamento interpessoal. 3) Problemas somáticos: tais como as situações associadas a manifestações de sintomas somáticos, distúrbios na alimentação, sono e fala. 4) Outros: dificuldades familiares; dificuldades relacionadas à sexualidade; distúrbios psiquiátricos.

Em relação ao encaminhamento para atendimento psicológico foram consideradas as seguintes situações: 1) escolas; 2) serviços médicos e comunitários; 3) pediatra; 4) familiares; 5) Judiciário. Os dados foram analisados através de estatística descritiva, utilizando-se o programa SPSS for Windows, versão 15.

Procedimentos Éticos

A Clínica-Escola de Psicologia pesquisada possui a prática de colher autorização para futuros estudos em um termo de consentimento livre e esclarecido de todos pacientes já no ato da inscrição para atendimento psicológico. Neste sentido, não houve necessidade de contato com os participantes para a obtenção da mesma.

 

RESULTADOS

Características gerais e sócio-demográficas

A partir da análise dos 899 pacientes atendidos no período de 1999 a 2006 verificou-se que o público infantil correspondia a um total de 51,8 % da procura de atendimentos psicológicos dentre todas as faixas etárias. O total de crianças inscritas para atendimento psicológico foi de 499 casos, sendo que destes, 212 (42,5%) receberam atendimento. Entre as demais 287 crianças (57,5%), 105 (36,5 %) que estavam em lista de espera desistiram quando chamadas, 182 (63,5%) não tinham perfil (renda superior ao exigido, não foram localizadas ou foram re-encaminhadas). O tempo de permanência em lista de espera foi de 13 meses em média, até ser possível o encaminhamento para atendimento.

A análise das faixas etárias indicou que a freqüência de procura de atendimento por crianças entre dois a cinco anos foi de 54 casos (10,6%), entre seis e nove anos de 281 casos (56,4%) e entre 10 e 12 anos 164 casos (32,9%). Especificamente, as idades de maior procura foram a de sete anos (18%), seguida de oito anos (15,2%). Estas duas idades constituíram 33% do grupo, refletindo dificuldades relacionadas ao início das atividades escolares. Em relação ao sexo das crianças, os resultados apontam que os meninos foram os que mais procuram atendimentos (67,3%) do que as meninas (32,7%). Entretanto, comparando-se a distribuição por sexo e faixa etária, observa-se que no grupo entre dois a cinco anos não houve diferença entre os meninos e as meninas em relação à procura de atendimento. Esta diferença aumenta nos dois outros grupos etários. Os meninos constituem 70,8% da procura na faixa etária entre seis e nove anos e 65,9% entre 10 e 12 anos.

 

 

A média de atendimentos psicoterápicos realizados foi de 17 sessões (DP= 20,0). A mediana da distribuição da freqüência de atendimentos foi 9, indicando que 50% dos casos foram atendidos entre uma a nove sessões de psicoterapia. Somente 42 casos foram classificados como tendo alta terapêutica, a grande maioria (68%) após 25 sessões terapêuticas. Somente um caso foi identificado como recebendo alta com um número inferior a nove sessões. Finalmente, entre as crianças atendidas verificou-se que 136 (64,15%) abandonaram o tratamento. Destas, 79 (58,5 %) eram meninos, não havendo diferenças entre os sexos em relação ao abandono terapêutico.

Características familiares

As características familiares das crianças encaminhadas para atendimento em termos de renda indicou que 30% das crianças se situavam no grupo de até um salário mínimo, 40% tinham renda de até dois salários e as restantes de até quatro salários-mínimos. Neste sentido, observa-se no grupo estudado uma maior diversificação de renda associada à procura de serviços em saúde mental, talvez apontando para uma tendência de procura pelas famílias com maior poder aquisitivo. Ainda em relação às características familiares, verificou-se que 53% das crianças provinham de famílias intactas. As demais crianças, 32% residiam com as mães e o restante com os pais ou familiares. Estes resultados são similares aos encontrados por Melo e Perfeito (2006) e apontam para as transformações nas configurações familiares que resultam no grande número de crianças que vivem em famílias reconstituídas ou outro arranjo familiar (Neto e Féres-Carneiro, 2005).

Fonte de encaminhamento e motivos de procura

Em relação aos locais de encaminhamento e motivo de procura foram identificadas as seguintes características. Quanto à fonte dos encaminhamentos, 63,5% das crianças foram enviadas por escolas, seguidos dos familiares (10,4%), serviços médicos comunitários (9,4%) e pediatras (9%). Na faixa etária entre dois a cinco anos, a maioria dos encaminhamentos foi feita por pediatras (26,7%) e familiares (25%), enquanto que a escola é responsável por 90% dos encaminhamentos nas idades entre 6 e 12 anos.

Os principais motivos de procura identificados foram relacionados a problemas afetivos e de comportamento (n= 217; 43,5%), dificuldades relacionadas à escola (n=160; 32,1%), outros (n = 65, 13,0%) (dificuldades familiares, dificuldades relacionadas à sexualidade, distúrbios psiquiátricos) e problemas somáticos e ansiedade (n=56; 11,2%). Entretanto, considerando-se as faixas etárias, na categoria problemas afetivos e de relacionamento as crianças entre dois a cinco anos foram as que mais apresentaram procura de atendimento psicológico em razão de situações associadas a sintomas emocionais e dificuldades interpessoais. Esta faixa etária também apresentou maior número de casos em relação a problemas somáticos. Já as dificuldades relacionadas à escola predominaram no grupo de crianças entre seis e nove anos. Em relação ao sexo das crianças, as meninas apresentaram maior número de queixas associadas a problemas somáticos (16%) em relação aos meninos (9%). Este aspecto se reveste de especial importância considerando a associação entre gênero, ansiedade e depressão identificada em relação às meninas, principalmente na adolescência (Bahls e Bahls, 2002).

O motivo de procura associado à média de permanência em atendimento apresentou as seguintes características. As crianças que procuraram atendimento com queixas referentes ao ambiente escolar (problemas cognitivos, conflito escola, sofrimento no ambiente escolar) permaneceram mais tempo em atendimento, em média 29,6 sessões (DP= 25,1). As demais categorias apresentaram médias similares, por exemplo, os casos de dificuldades afetivas e de relacionamentos tiveram uma média de 14 sessões (DP= 7,9), a categoria “outros” (dificuldades familiares, dificuldades relacionadas à sexualidade, distúrbios na alimentação, sono e fala) uma média de 12 sessões (DP=16,1) e, por último, o grupo relacionado às dificuldades somáticas média de 10 sessões (DP= 12,5).

Abordagens teóricas

O atendimento na abordagem Psicanalítica (31,3%) foi o mais freqüente, indicando que esta abordagem teórica parece ainda ser a mais procurada pelos estagiários. A média de sessões psicoterápicas foi similar entre as abordagens teóricas, o tempo de atendimento na abordagem Psicanalítica apresentou uma média de 17,7 de sessões, a abordagem Cognitiva Comportamental de 20,8 sessões e a Fenomenológica Existencial de 19,9 sessões. Em relação à modalidade terapêutica, verificou-se que a maior parte dos atendimentos foi na modalidade individual (79,1%), seguido da modalidade grupal.

 

DISCUSSÃO

As questões levantadas no início deste trabalho apontavam para a necessidade de investigações sobre as intervenções psicoterápicas nos serviços de saúde mental e clínicas-escola de Psicologia com objetivo de identificar as necessidades dos indivíduos e, a partir disto, desenvolver práticas clínicas em diferentes níveis de intervenção. Em termos de identificação das características e do perfil da clientela, os resultados encontrados na presente pesquisa não diferiram das características verificadas em trabalhos anteriores, indicando que os problemas associados à saúde psicológica ainda se constituem em situações de demandas crônicas, assistidas principalmente por intervenções psicoterápicas que não atendem ao grande número dos encaminhamentos. Além disto, os resultados demonstraram o que várias pesquisas têm mencionado, que a população infantil é a clientela que mais procura, mais recebe e ainda é a que mais abandona os atendimentos psicológicos.

Dois aspectos, entretanto, chamam a atenção no presente trabalho. O primeiro refere-se ao grande número de crianças inscritas e o número efetivo de atendimentos realizados que consistiu em menos de 50% dos casos do grupo inicial que procurou atendimento. Além disto, das crianças que receberam atendimento, grande parte abandonou o tratamento no período inicial, indicando que o grande número de desistências se deve à dificuldade e à pouca efetividade no acolhimento das demandas. O outro aspecto diz respeito às características da clientela que consistiu de crianças do sexo masculino, principalmente na idade escolar.

Prebianchi e Cury (2005) apontam que as situações de pouca disponibilidade técnica de atendimento e de fragmentação dos serviços, aliadas aos encaminhamentos isolados, sem que tenham sido esgotadas ações anteriores são freqüentes entre os casos encaminhados para atendimento. Entretanto, independente destes aspectos, o atendimento em saúde mental na infância e adolescência e principalmente o estabelecimento de ações preventivas dirigidas a estes grupos são precários considerando a realidade brasileira. Portanto, é evidente a necessidade de desenvolver abordagens terapêuticas focalizando serviços comunitários em saúde mental (Rohde, Eizirik e Ketzer, 1999).

Em relação às características da clientela, já no ano início da década (Silvares e Melo, 2000), sintetizando os resultados de trabalhos da década anterior, apontavam a grande demanda de atendimento nos serviços de saúde pela clientela infantil e descreviam as características desta clientela nas clínicas-escolas: uma criança do sexo masculino, entre 6-10 anos de idade com problemas escolares e provenientes de famílias de baixa renda. A investigação pioneira de Ancona-Lopez (1984) há quase três décadas atrás já havia identificado a clientela infantil masculina como a mais freqüente nos encaminhamentos às clínicas-escola devido a problemas escolares.

Alguns estudos relatam que há poucas crianças que realmente possuem problemas cognitivos, embora as escolas encaminhem com o rótulo de problemas de aprendizagem ou fracasso escolar (Shoen-Ferreira, Silva, Farias e Mattos, 2002; Santos e Alonso, 2004; Melo e Perfeito, 2006). Sassi e Maggi (2007), quando questionaram professores e diretores sobre os motivos dos encaminhamentos dos alunos para o atendimento psicológico, identificaram preocupações destes profissionais referentes a questões emocionais das crianças associadas a famílias desestruturadas, o que, para eles, justificam os sintomas das crianças na escola. Segundo as autoras, ainda que a escola seja o local de encaminhamento predominante nas séries iniciais do ensino fundamental, a predominância dos motivos escolares é, na maioria das vezes, incoerente com o problema real latente (problemas emocionais).

Outro aspecto também destacado na introdução deste trabalho foi a importância da formação acadêmica desenvolvida nas instituições. O atendimento psicológico é desenvolvido por terapeutas-estagiários, ainda em formação, sendo as clínicas-escola responsáveis pela qualidade do treinamento acadêmico, através de supervisões e acompanhamento do trabalho oferecido ao usuário pelos alunos (Lhullier, 2002; Melo e Perfeito, 2006). Desta forma, tanto sob o aspecto do atendimento oferecido como do treinamento aos alunos em formação, os resultados identificados nesta pesquisa apontam para a necessidade de reflexão sobre diferentes questões relativas aos serviços em saúde mental em geral.

Primeiramente, a alta demanda de serviços nas faixas etárias da infância e adolescência é um alerta para questões sócio-culturais e econômicas vinculadas fundamentalmente à capacidade provedora de cuidado pelas famílias, escolas e comunidades. Como resultado, o segundo aspecto a ser destacado é que o treinamento dos alunos deve corresponder a estas demandas fundadas em análises contextuais das condições de saúde mental. No presente trabalho, além do grande número de crianças e adolescentes encaminhados para atendimento, observa-se igualmente o grande número de abandonos e interrupções. A questão do abandono terapêutico é um ponto fundamental para a compreensão dos processos envolvidos no atendimento psicoterápico de forma que durante o treinamento recebido o aluno possa já identificar as situações de maior risco e intervir de forma adequada.

Destaca-se, também, que apesar da grande demanda, as intervenções terapêuticas predominantes foram na modalidade individual. Neste sentido, o desenvolvimento de intervenções grupais, respeitando critérios terapêuticos, pode ser uma alternativa importante e com maior resolutividade, levando em conta o tempo de permanência em lista de espera que resulta na desistência do atendimento (Santos e Alonzo, 2005; Silvares e Melo, 2000). Para tal, a implantação de estudos voltados para a avaliação do processo de atendimento, desde as sessões iniciais de acolhimento até o encaminhamento final são ações vitais para o conhecimento dos atendimentos prestados e fornecimento de informações que subsidiem as intervenções e o melhor preparo dos alunos em seu treinamento. o desenvolvimento destes trabalhos necessita a adoção de critérios diagnósticos para avaliação dos casos, registro adequado e acompanhamento dos atendimentos a fim de ser possível o estudo das demandas e características clínicas das populações (Campezatto e Nunes, 2007).

 

CONCLUSÕES

Em síntese, os resultados encontrados neste estudo contribuem para a compreensão e identificação das demandas emocionais de crianças e adolescentes encaminhados para atendimento numa clínica-escola de Psicologia durante o período de 1999 a 2006. Neste sentido verificou-se o grande número de crianças e adolescentes que procuram atendimento psicológico, principalmente na idade escolar, observando-se igualmente o grande número de abandonos e interrupções. Portanto, estudos sobre as características de clientelas infantis são de suma importância, pois podem apontar formas para a melhoria dos atendimentos psicológicos oferecidos e propiciar elementos que fundamentem ações preventivas e futuras pesquisas voltadas para a prática clínica, principalmente frente à carência de estudos voltados a faixa etária infantil. Destaca-se a necessidade de que os estagiários em atendimento clínico psicológico recebam em seus treinamentos preparo quanto às técnicas de atendimento psicoterápico infantil, incluindo intervenções dirigidas à escola, às famílias e à comunidade. As peculiaridades existentes no processo de atendimento psicológico de crianças devem ser levadas em consideração no momento de atendimento, incluindo os responsáveis, ouvindo suas expectativas, acolhendo-os e colocando-os a par das etapas do processo, o que pode aumentar a aderência aos tratamentos psicológicos infantis.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 10/07/2008
Revisto em 03/11/08
Aceito em 08/11/2008

 

 

1 Parte da Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica no Programa de Pós-Graduação do Curso de Psicologia da Universidadedo Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS de Tatiane Regina dos Santos Cunha.
* Endereço para correspondência: Silvia P. C. Benetti - Rua Riveira, 150/301. Porto Alegre, RS. CEP: 90670-160. E-mail: sbenetti@unisinos.br.

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