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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.59 no.131 São Paulo dez. 2009

 

RESENHA

 

Uma Psicopatologia Psicanalítica

 

A Psychoanalytic Psychopathology

 

 

Roberto Yutaka Sagawa *

UNESP - Departamento de Psicologia Clínica - Assis - SP

 

 

Trinca, W. (2007). O ser interior na psicanálise: Fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor, 378 p.

 

 

Trata-se de uma obra ímpar na produção psicanalítica brasileira, assim como no conjunto de obras de Walter Trinca. É raro que uma obra de autor psicanalista brasileiro consiga imprimir uma originalidade de elaboração do saber psicanalítico. Embora Walter Trinca já tenha realizado, antes, uma criação original e seja famoso na área de psicodiagnóstico por ter criado, nos anos 70, um novo procedimento de avaliação psicológica, o de Desenho-Estória.

O título da obra não dá conta do seu conteúdo total, embora seja bastante exato, na medida em que corresponde à intenção do autor que aposta na invenção de um novo conceito psicanalítico: o ser interior. No entanto, ao leitor mais exigente, o título da obra deixa de contemplar o que há de novidade de saber psicanalítico elaborado por Walter Trinca.

Acontece que, ao contrário da maioria dos psicanalistas/escritores, Walter Trinca não se reduziu a ser um reprodutor de saber das escolas psicanalíticas. É bastante óbvio que a filiação de Walter Trinca é Klein/Bion/iana, mas, no seu caso, não se trata de um discípulo doutrinário-dogmático, mas sim de um produtor criativo do saber psicanalítico. Não se contenta em seguir os parâmetros da escola psicanalítica pronta e está aceitando o risco necessário ou inevitável de elaborar algum saber próprio a partir da sua filiação psicanalítica como uma obra em aberto.

Uma das formas mais evidentes de constatar, nesta obra, que se trata de elaborar novos conceitos psicanalíticos é a presença de um leque entrecruzado e sobreposto de conceitos de lavra própria: o ser interior, constelação do inimigo interno, buraco negro, dimensão de possibilidades infinitas, sistema mental determinante, distanciamento de contato, etc. Alguns conceitos ficam na fronteira do saber apropriado/inventado como é o caso evidente de self e de sensorialidade, ambos característicos de sua filiação Klein/Bion/iana. Neste caso, Walter Trinca simplesmente conservou a natureza conceitual de origem kleiniana (self) ou bioniana (sensorialidade), mas fez de cada um deles um uso conceitual muito próprio em sua nova rede de conceitos psicanalíticos. Existe um gráfico na página 102 que traduz o “DNA” desta rede conceitual inventado por Walter Trinca. Nenhum dos conceitos pode ser tomado de forma isolada, mas um remete, sempre, ao outro e vice-versa, resultando em um conjunto que não se fez somente na e pela soma das partes. Neste sentido, a obra de Walter Trinca não trata de forma prioritária de um novo conceito psicanalítico, o de ser interior, mas trata de uma rede de novos conceitos psicanalíticos.

Mais ainda, a introdução do ser interior, nos três primeiros capítulos, é uma espécie de estágio preparatório dos dois principais capítulos da obra que tratam da “formulação de um modelo” que, no final das contas, é uma proposta de Psicopatologia Psicanalítica. Walter Trinca criou novos conceitos psicanalíticos e, a partir deles, elaborou uma escala genética das doenças mentais, que se manifestaram ao longo de sua prática de clínica psicanalítica. A novidade de elaboração do saber psicopatológico é que para Walter Trinca esta rede conceitual não se reduz a dar conta dos sintomas, mas busca explicitar como e por que se formaram as diferentes manifestações psicopatológicas. Com este objetivo teórico-metodológico, a formulação de um modelo próprio consiste em avaliar clinicamente o distanciamento de contato do self com o ser interior, considerando-se os quatro fatores constituintes do sistema mental determinante: a sensorialidade, a constelação do inimigo interno, a fragilidade (angústia de dissipação) do self e a estruturação inconsciente. O sistema mental determinante é um novo conceito que está na base da formação do distúrbio psicopatológico e que se formula de forma genética e dinâmica. É interessante destacar que a criação conceitual de sistema mental determinante se justifica pelo fato de este “desmontar” a doença mental manifesta em seus fatores constituintes de formação psicopatológica. Dessa forma, o distúrbio manifesto se explicita em seu processo de constituição descrito como sistema mental determinante. Conforme variam as formas, relações ou tipos dos quatro fatores do sistema mental determinante, estruturam-se as diferentes manifestações psicopatológicas que, assim, formam um quadro genético-dinâmico-estrutural de Psicopatologia psicanalítica e não mais uma mera classificação de sintomas da Psiquiatria clínica.

Uma vez que a rede conceitual foi criada e passou a adquirir vida própria na e para a construção de uma Psicopatologia, então a criação de uma “escala das perturbações psíquicas” se torna uma conseqüência operativa desta Psicopatologia. Apesar de Walter Trinca defender “a unificação das perturbações psíquicas” ou, se preferir, a necessidade de estabelecer um “campo unitário” ou um “processo global único” baseado no “contínuo de contato” do self com o ser interior, diversas escalas passam a ser construídas de acordo com a ênfase de diferentes variáveis ou contextos do sistema mental determinante.

É paradoxal constatar que, no meio psicanalítico brasileiro, esta seja, talvez, a primeira formulação de uma Psicopatologia Psicanalítica que não seja de filiação dogmática-doutrinária e, também, não seja um simples transporte da Psiquiatria classificatória para a Psicanálise. Neste sentido, o leitor atento leva um susto ao se dar conta de que está diante de uma tarefa monumental de abarcar as novas manifestações psicopatológicas da clínica psicanalítica, a partir da segunda metade do século 20.

Na Psicanálise latino-americana, tenho notícia apenas de duas tentativas de construir uma Psicopatologia psicanalítica. A primeira delas foi a proposta por Pichón-Rivière baseada na ECRO (Esquema conceitual e referencial operativo) que não passou da etapa de proposta experimental e nunca se desenvolveu de forma a abranger e tornar-se uma Psicopatologia. A segunda tentativa foi aquela realizada por David Liberman que foi um êxito total e que acabou se tornando até hoje a única Psicopatologia psicanalítica construída por um psicanalista latino-americano.

Walter Trinca vem a ser o autor da segunda Psicopatologia psicanalítica no nosso meio e esta empreitada vem romper o estranho bloqueio que teima em continuar a existir entre a Psicopatologia e a Psicanálise.

 

 

Recebido em 15/12/09
Aceito em 20/12/09

 

 

* Endereço para correspondência: Avenida Dom Antonio, 2100. Assis – SP. E-mail: rysagawa@assis.unesp.br..

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