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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.60 no.132 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Reflexões sobre a relação mãe-filho e doenças psicossomáticas: Um estudo teórico-clínico sobre psoríase infantil

 

Reflections on mother-child relationship and psychosomatic illnesses: A theoretical and clinical study on child psoriasis

 

 

Carolina Grespan Pereira Souza *; Maíra Bonafé Sei I; Sergio Luiz Saboya Arruda

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva refletir sobre a relação inicial mãe-filho e os aspectos psicológicos das doenças psicossomáticas, em especial a psoríase (doença crônica de pele). Trata-se de um estudo teórico-clínico qualitativo,realizado a partir de análise qualitativa dos conteúdos do material clínico advindo da psicoterapia de duas crianças com psoríase atendidas em um ambulatório de um hospital público. A compreensão do material relatado pauta-se em autores de orientação psicodinâmica, que procuram compreender os significados da pele para o psiquismo humano, como órgão que estabelece o limite concreto e psíquico do eu e não-eu. A literatura sinaliza que dificuldades na relação mãe-filho podem se manifestar via afecções neste órgão. Por meio desta investigação, considera-se que a psicoterapia lúdica pode auxiliar as crianças a compreenderem e a lidarem com a agressividade e com angústias e sofrimentos associados à psoríase.

Palavras-Chave: Psicoterapia, Criança, Psoríase, Psicossomática, Relação mãe-filho.


ABSTRACT

This article aims to reflect on the initial mother-child relationship and the psychological aspects of psychosomatic diseases, particularly psoriasis (chronic skin disease). It is a theoretical and clinical qualitative study, based on qualitative analysis of the contents of clinical material obtained in psychotherapy of two children with psoriasis treated in a public hospital. The comprehension of the material reported is based in psychodynamic orientation authors, who seek to understand the meanings of the skin to the human psyche as an organ, that sets the concrete and psychic limit of Me and Not-me. The literature indicates which difficulties in the mother-child relationship might be manifested through disorders in this organ. It is considered through this research that the play therapy helped the children to understand and deal with aggression, with anguish and suffering associated with psoriasis.

Keywords: Psychotherapy, Child, Psoriasis, Psychosomatic, Mother-child relationship.


 

 

INTRODUÇÃO

PSORÍASE E ASPECTOS PSICOLÓGICOS DAS DOENÇAS DE PELE

A pele tem papel primordial no contato do sujeito com o ambiente e com o outro (Montagu,1988; Winnicott, 1990; Volich, 2000). A pele é, portanto, fundamental no limite físico e na interfaceentre o eu e o outro, entre os mundos interno e externo (Bitelman, 2003).

Tanto a epiderme quanto o sistema nervoso central possuem sua origem embrionária noectoderma, isto é, no mesmo folheto embrionário (Azambuja, 2000; Souza et al., 2005). Pode-se, então,supor que aquilo que acontece em um sistema pode reverberar no outro sistema, assim, aspectosemocionais podem influenciar as patologias na pele (Ishida, Trope e Kahtalian, 1985). De acordo comalguns autores, "a pele forma, portanto, um canal de comunicação pré-verbal, no qual os sentimentos sãoexpressos e podem ser experimentados e observados" (Ishida, Trope e Kahtalian, 1985, p. 311).

Assim, é possível afirmar que a relação psique-pele envolve elementos psíquicos subjetivos,tais como emoções, sentimentos, fantasias e agressividade. De acordo com a intensidade desseselementos, a enfermidade cutânea torna-se a expressão objetiva de sentimentos. Montagu (1988, p.30) descreve a pele como um "espelho do funcionamento do organismo: sua cor, textura, umidade, securae cada um de seus demais aspectos refletem nosso estado de ser, psicológico e também fisiológico".

Hoffmann et al. (2005) destacam que a pele é um fator a mais a ressaltar o vínculo entredistúrbios emocionais e as doenças da pele. Winnicott (1990) afirma que a pele serve de limite entreeu e não-eu, entendendo-a como uma barreira que protege e que marca um lugar e um meio detrocas. Dependendo das circunstâncias, a pele pode ter a função dessa membrana limitante, comopode ser o local de manifestação de conflitos e emoções a partir de sintomas psicossomáticos.

Anzieu (1989) pontua que a pele é o envelope do corpo, ao mesmo tempo em que é o envelopedo psíquico. A criança desenvolve seu eu-psíquico pelas experiências do próprio corpo com a mãe.

Percebe-se, assim, a importância da pele e do contato inicial com o outro (mãe) para a construçãodo psiquismo do sujeito. A pele é considerada como espelho das emoções e, por meio dela, existe apossibilidade de tentar encontrar conexões possíveis das relações de objeto iniciais do bebê comsua mãe (Jorge et al., 2004).

Entre os múltiplos fatores que provocam o aparecimento das doenças de pele, o aspectoemocional é citado como um elemento importante que pode influenciar o surgimento e o agravamentoda lesão. Dentre estas enfermidades dermatológicas, destaca-se a psoríase, uma doença crônica depele, cuja etiologia é desconhecida e sua manifestação emerge da interação entre base genética,fatores ambientais e psicológicos (Silva e Müller, 2007).

Jorge et al. (2004, p. 23) pontuam que "a psoríase é caracterizada como uma doençadermatológica descamativa e pruriginosa, que pode manifestar-se de diversas maneiras e graus". Aforma de apresentação mais comum é em placas, com o aparecimento de lesões descamativase de cor avermelhada.

Silva e Silva (2007) destacam a importância do diagnóstico da psoríase, já que ela pode serconfundida com outros distúrbios de pele. Contudo, posteriormente o padrão de descamação torna-se facilmente reconhecido por um especialista na área e o diagnóstico pode ser confirmado por umabiópsia. Existem dois extremos de maior prevalência: antes dos 30 anos e após os 50 anos, sendoque em 15% dos pacientes a doença surge antes dos 10 anos (Arruda, Campbell e Takahashi, 2001).

McDougall (1996) entende que as manifestações psicossomáticas podem ser compreendidascomo uma dificuldade de simbolização e verbalização dos sentimentos e, dessa forma, a doençaseria uma forma não verbal do paciente expressar suas emoções. Nesse sentido, Hoffmann et al.(2005, p. 58) ressaltam que "a pele pode ser uma via dessa comunicação. A pele representa assim, umcaminho para pedir ajuda, demonstrando a necessidade de ser olhada além dela mesma".

A manifestação do sintoma na pele, nesses casos, tem uma simbologia, visto sua função deproteção, já que a pele separa o meio interno do externo. Neste sentido, identifica-se uma ligaçãoentre as dificuldades nas relações mãe-filho e o surgimento das psicodermatoses (Souza et al., 2005).

 

A RELAÇÃO MÃE-FILHO E PSICOSSOMÁTICA

Os primeiros modelos de vinculação com o mundo externo são impressos no corpo e nopsiquismo da criança, a partir da relação inicial da mãe com o bebê. Dificuldades nesta díade poderãoter diferentes caminhos de manifestação e um deles seria via doença de pele. Dessa forma, o sentidoda doença de pele pode estar atrelado ao fato de não haver um limite claro entre eu e não-eu, tantono que se refere ao excesso de estímulos quanto à falta dos mesmos (Jorge et al., 2004).

No início da vida do bebê, a importância da mãe é vital. Além de proteger o bebê decomplicações que ele não pode entender ainda, a mãe tem a função de apresentar o mundo à criança.É sobre esse alicerce que se constrói a subjetividade da criança (Winnicott, 1945/2000b).

Para que haja um desenvolvimento saudável do psique-soma inicial, é necessário um meioambiente adequado, que é aquele que se adapta ativamente às necessidades do bebê. A partirdisso, emerge a mãe devotada comum, com sua habilidade de fazer uma adaptação ativa àsnecessidades do bebê, produzidas por sua devoção, tornada possível por seu narcisismo,imaginação e recordações, que lhe permitem saber, pela identificação, quais são as necessidadesdo bebê (Winnicott, 1949/2000a).

Dessa maneira, a mãe permite ao bebê a experiência de sentir sua psique habitando seucorpo. Ou seja, torna-se possível uma integração psique-soma e a criança passa a apreciar asfunções desse corpo e passa a aceitar a pele como uma membrana que limita o eu do não-eu, emcircunstâncias favoráveis. Nos sintomas das doenças psicossomáticas, há uma insistência nainteração da psique com o soma, sendo isso conservado como defesa contra a ameaça de perdada união psicossomática ou contra alguma forma de despersonalização (Winnicott, 1962/1983).Neste sentido, pode-se entender as doenças psicossomáticas como um possível produto final deuma maternagem precária ou inconstante.

Se a inter-relação psique-soma não se realiza satisfatoriamente, ou é muito precária, o corpotem o registro mental, mas não há uma integração do self. Ocorre assim um distanciamento entrepsique e corpo, persistindo uma dissociação na organização do ego do paciente (Pedrozo, 1995).

Gressler e Miranda (2001, p. 320) também pontuam que "os sintomas que surgem no corpoapontam não para uma doença clínica, mas para uma dissociação intrapsíquica". Desse modo, ao adoecer,o indivíduo restabelece o vínculo mente-corpo, em uma tentativa de retomar a consciência do corpo.Nas palavras de Pedrozo (1995, p. 92), "o distúrbio psicossomático constitui então, uma defesa poderosacontra a desintegração de também uma tentativa de cura".

De acordo com Winnicott (1964/1994b), a enfermidade psicossomática sugere uma cisão napersonalidade do indivíduo, com dificuldade na vinculação entre psique e soma ou uma divergênciaorganizada na mente, em defesa contra o ambiente precário. O fato de a pessoa estar doente demonstrauma tendência a não perder inteiramente a vinculação psicossomática.

McDougall (1996) menciona que o paciente que somatiza não se caracteriza pela incapacidadede vivenciar ou de exprimir as emoções, mas pela incapacidade de suportar a contenção do excessoda experiência afetiva: "um corpo sofredor é um corpo vivo" (p. 171). Mesmo aquelas enfermidades queameaçam a vida biológica podem indicar, paradoxalmente, uma batalha pela sobrevivência psíquica.O psiquismo desesperado desses pacientes só se revela de maneira arcaica, não-simbólica, peladisfunção somática.

Ao discorrerem sobre o mecanismo de formação de sintomas em psicossomática, Campos eRodrigues (2005) lembram que a somatização é a própria expressão das emoções. Ou seja, é a respostafisiológica às emoções no corpo, emoções que, dependendo da intensidade e da repetição dessasrespostas corporais, podem produzir os mais distintos sintomas. "Os sintomas corporais ‘falam’ sobreos conteúdos das representações reprimidas, deformadas pelos mecanismos defensivos do ego" (Campos eRodrigues, 2005, p. 303).

Machado Júnior (2007) salienta a importância da doença no contexto da totalidade psíquica.A integração das duas dimensões (orgânica e psíquica) no contexto do símbolo é o que possibilitasua reintegração na consciência, em outras palavras, "o trabalho de elaboração simbólica pode tambémproporcionar um alívio ao corpo" (p.93).

Ainda em relação ao sintoma psicossomático, pensa-se que este "se faz decodificável ecompreensível em sua manifestação e estabilização, se for observado no contexto em que aparece" (Ferreira etal., 2006, p. 620). Neste sentido, a observação do grupo familiar e das dinâmicas estabelecidas nafamília é necessária, especialmente no caso de crianças.

De acordo com Engel (1967), as doenças psicossomáticas dizem respeito a dificuldades doorganismo em se ajustar a mudanças do ambiente interno e/ou externo das pessoas. No que dizrespeito às doenças de pele, Bitelmam (2003) lembra que "muitos profissionais de saúde reconhecem quemanifestações da pele representam uma exteriorização de problemas internos não-resolvidos, de ordem físicaou emocional" (p. 355).

Pedrozo (1995) acrescenta que certas doenças crônicas de pele, como a psoríase, apontampara uma dissociação, em que a pele, percebida como membrana limitadora e continente do self, está irritada ou ferida, marcada pela perda dos limites corporais e pela ameaça de despersonalização. Emgeral, essas situações são graves, já que a dissociação que dá origem, também, mantém o distúrbioclínico e alude a um tipo de funcionamento mental característico de estágios primitivos de maturação.

Retoma-se a importância da ligação estabelecida com a mãe, que ajuda no fortalecimento doego da criança, com posterior diferenciação entre o eu e o não-eu, concretamente representada pelaepiderme. As doenças neste órgão usualmente têm uma ligação com elementos emocionais e, segundoWinnicott (1969/1994a, p. 91):

a irritação ou desconforto crônicos da pele dão ênfase à membrana limitadora do corpo (e,portanto, da personalidade), e que por trás disto acha-se a ameaça de despersonalização e de uma perda de fronteiras corporais, bem como da impensável ansiedade quase física que pertence ao processo inverso do que é chamado integração.Dessa forma, a doença de pele pode ser vista como uma agressão ao meio, por estar evidente,visível. Ao mesmo tempo em que causa rechaço, age como um pedido de cuidado e de aproximação. É uma contradição bastante marcante, que poderá propor mudanças, ressaltando-se a importância da psicoterapia no tratamento das questões emocionais referentes ao adoecimento de pele.

A psoríase configura-se como uma patologia da pele que "envolve fatores genéticos, imunológicosquímicos e emocionais ... o tratamento médico associado à psicoterapia mostrou-se mais eficaz para a reduçãodas placas psoriásicas" (Bitelman, 2003, p. 355). Ressalta-se, então, a importância de que o pacientepossa ter um espaço de expressão de emoções para a melhora do quadro dermatológico, já que adificuldade em manifestar emoções é uma das principais dificuldades apresentadas pelos pacientescom psoríase com componentes emocionais (Jorge et al., 2004).

Pensa-se que a psicoterapia pode auxiliar a pessoa com psoríase a compreender ospsicodinamismos associados às situações conflituosas e à relação mãe-filho. Pela vinculação com oterapeuta, o paciente pode experimentar uma relação de apoio na qual não seria abandonado,experienciando a possibilidade de estabelecer outras relações saudáveis (Souza et al., 2005).

Por meio de um estudo teórico-clínico, objetiva-se apresentar e discutir dois casos clínicos decrianças com psoríase atendidas em psicoterapia lúdica, enfocando-se aspectos da relação mãe-filho. O atendimento foi realizado em um ambulatório de um hospital público com prática pautadano referencial winnicottiano.

 

MÉTODO

Trata-se de uma investigação qualitativa empreendida pelo estudo de caso de duas criançasatendidas em um ambulatório público de psicoterapia. O material clínico analisado é proveniente doatendimento das crianças: hora de jogo diagnóstica, testes psicológicos, sessões de psicoterapialúdica; e das entrevistas com os pais ou responsáveis acerca da história de vida do paciente. A pesquisa pautou-se no método clínico-qualitativo (Turato, 2000; 2003), que propõe que o pesquisador emprestaconceitos "da psicanálise, para se marcar o desenho da pesquisa, a definição dos pressupostos e objetivos, aconstrução e aplicação dos instrumentos em campo e, finalmente, a interpretação dos resultados do trabalho"(Turato, 2000, p. 107). As ansiedades e angústias do pesquisador configuram-se como a força motrizpara a investigação, além da identificação e acolhimento deste em relação ao indivíduo pesquisado(Turato, 2000).

É feita uma análise qualitativa. Na discussão e na compreensão do material clínico, procura-serelacionar as comunicações da criança no setting terapêutico com os conceitos e idéias existentes naliteratura de orientação psicodinâmica sobre a relação mãe e filho e sobre as doenças psicossomáticas,com foco na psoríase.

Sujeitos

Participaram desta investigação duas crianças do sexo masculino, com 6 e 8 anos de idade noinício do atendimento, pacientes de um ambulatório de psicoterapia de um serviço público, comdiagnóstico de psoríase com componentes emocionais associados.

Procedimento

As crianças foram atendidas individualmente e semanalmente em psicoterapia lúdica psicodinâmica. A técnica psicoterapêutica empregada visa à compreensão das fantasias, angústias e defesas inconscientes. Para realização dos atendimentos, pautado no referencial winnicottiano, foi utilizada uma caixa que continha material gráfico e brinquedos, livremente utilizados pelo paciente, vistos como forma de comunicação privilegiada para a criança no contexto psicoterapêutico.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

VINHETAS CLÍNICAS DE DOIS CASOS DE PSORÍASE INFANTIL

O caso do Marcelo1

Marcelo tinha 8 anos de idade quando começou a psicoterapia. É o segundo filho de Edson eAlice, que possuíam mais uma filha de 10 anos. Nasceu na região Centro-oeste, antes de os pais semudarem para uma cidade próxima de Campinas. Os pais separaram-se antes do nascimento doMarcelo. No entanto, Edson via os filhos com bastante freqüência. O pai comentou que mantinha umrelacionamento amigável com Alice em função da doença do filho. Edson teve um filho, atualmentecom 2 anos de idade, fruto de novo relacionamento.

Quando Marcelo estava com 8 meses de vida, a mãe percebeu, pela primeira vez, umadescamação que começou na orelha e depois se alastrou para o corpo. Os pais levaram-no paraatendimento médico, mas o diagnóstico de psoríase só foi confirmado tardiamente, quando completouseis anos. Na época do atendimento psicoterápico, a criança possuía lesões principalmente no rosto,em volta dos olhos, no couro cabeludo, braços, pernas e barriga.

Marcelo foi descrito pelos pais como "muito nervoso" e muito ciumento, atirava objetos,batia portas, gritava e ficava muito irritado quando não tinha toda atenção dos pais para ele. Alicecomentou que sua gravidez foi conturbada e que ficou muito "nervosa". Acredita que foi ela quem "passou esse nervoso" para o filho. Sente-se culpada pela doença da criança. Disse que sempre quisproteger o filho e que chorava muito, ao vê-lo "descascando o corpo inteiro".

A mãe também relatou que Marcelo deixava de fazer algumas atividades na escola e de vestiralgumas roupas em função da doença. Só usava calça e roupas com manga comprida e gorro, mesmonos dias quentes. Na escola, outras crianças apelidaram-no de "descascadinho", fato que foi contornadocom a ajuda da professora.

Apesar da disposição para ajudarem o filho, Alice e Edson somente compareceram às entrevistasiniciais. Era a avó paterna quem trazia Marcelo todas as semanas para o atendimento. Foi indicadoque os pais fizessem orientação de pais com outra terapeuta, mas ambos não se mostraraminteressados, justificando dificuldades para se ausentarem do trabalho.

A mãe só acompanhava Marcelo nos retornos médicos com a dermatologista. Durante todo o período de atendimento psicoterápico a mãe só compareceu nas entrevistas iniciais. O fato de não o trazer para a psicoterapia pode ser entendido como uma dificuldade da mãe para lidar com as questões emocionais do filho, sendo-lhe possível apenas cuidar das lesões físicas.

Até o início da psicoterapia, Marcelo não dormia sozinho em seu quarto. Só conseguia dormir na cama da mãe ou da avó paterna, indicando relações de dependência com ambas.

A criança representava sua família em seus desenhos. Geralmente, estavam todos juntos,divertindo-se: o pai, a mãe, a irmã, Marcelo e o irmão mais novo, fruto do outro relacionamento dopai. Nesse período, ele desenhou tanto que resolveu juntá-los em um "livro de desenhos", intituladocom o nome dele e da terapeuta. Pode-se dizer que esse livro funcionou como um álbum de registrosdas sessões, simbolizando o vínculo forte e positivo construído entre o par.

Ainda no início do atendimento, Marcelo mostrava a necessidade de deixar algumas marcasna sala, esquecendo objetos fora da caixa para que outras crianças do ambulatório vissem suasproduções. Além disso, a cada sessão, "pequenos pedaços" de sua pele, provenientes das descamações,ficavam espalhados pela sala. Pode-se entender esse movimento como uma maneira encontrada dese afastar e de se aproximar da terapeuta, chamando a atenção para ser cuidado.

De maneira oposta, muitas vezes, Marcelo pedia insistentemente para levar suas produçõespara casa. Esse movimento foi entendido como uma forma de levar esse cuidado que recebia naterapia para este outro espaço. Quando ficou combinado que o que fosse produzido em sessãoficaria guardado na caixa lúdica, a criança decidiu trazer brinquedos de casa. O primeiro que eletrouxe foi um jogo chamado ‘Combate’, que sinalizava o tema central de seu processo terapêutico.

No decorrer das sessões, ficou evidente sua preferência por brincadeiras com bola. Marcelo utilizavao espaço da sala de atendimento para jogar principalmente futebol e basquete, com a cesta de lixo. Ele erauma criança bastante competitiva. Nos jogos de futebol, encenava muitos ‘dribles’, jogadas de ‘letra’ e faziamuitos gols. Marcelo corria, jogava-se e rolava no chão, pulava, demonstrando que era um "ótimo jogador"e, muitas vezes, exibia-se para a terapeuta com a diferença no número que gols que ele fazia a mais.

Marcelo ficava bastante excitado com as brincadeiras com bola, conseguindo expressar suaagressividade dessa maneira. Por volta do sexto mês de atendimento, também passou a brincar comjogo de boliche. Inventou outras maneiras de jogar, atirando a bola nos pinos espalhados pela sala etambém no rosto da terapeuta. Optou-se então por retirar essa bola da caixa, lembrando do contratoacertado com a criança de que nem ele, nem a terapeuta poderiam se machucar naquele espaço.

Mesmo com a retirada da bola da caixa lúdica, ele começou a construir aviões, armas ecanhões de guerra, e a sala de atendimento transformou-se, a partir do brincar, num "campo debatalha". Marcelo propôs a brincadeira de guerra, na qual aconteceram muitas lutas e destruições.Os brinquedos viraram bombas e a criança inventava escudos e proteções com as cadeiras ou amesa. Eram sessões com muito barulho, bagunça e até mesmo alguns brinquedos foram quebradosquando eram lançados. Nos combates, a criança expunha sua potência e virilidade, ficando bastanteexcitado nesses momentos.

Dessa maneira Marcelo se deparava com sua agressividade e destrutividade, aspectos que, aomesmo tempo em que o excitavam, deixavam-no angustiado, quando percebia os brinquedosquebrados. Brincadeiras de conteúdos agressivos remetiam à agressividade contra o próprio corpo,podendo-se entender o sintoma (as descamações da pele) como uma defesa contra fantasias agressivase destrutivas. É possível compreender a psoríase como uma expressão de agressividade edestrutividade contra si mesmo, bem como às figuras de afeto, a mãe, transferencialmenterepresentada pela terapeuta. Vale ressaltar que a terapeuta sobreviveu aos ataques da criança eesteve atenta para os momentos de reparação, os quais foram importantes ao longo do processopsicoterápico, para a busca de uma integração psicossomática.

Em uma das sessões, antes de entrar na sala de atendimento, Marcelo desentendeu-se com aavó paterna. Quando entrou na sala, sem dizer nada, pegou uma folha de papel e tinta vermelha.Desenhou um vulcão em erupção que pode ser compreendido como uma necessidade de extravasarsua raiva e sua agressividade por meio do mesmo. Em outros desenhos, Marcelo mantinha essepadrão agressivo, pintando monstros com mãos pontiagudas e figuras humanas prontas para o ataque.Ressalta-se o sentido do espaço lúdico potencial para desenvolver a criatividade da criança, bemcomo a colocação e nomeação de aspectos internos, sentimentos e fantasias.

Nos outros jogos como, por exemplo, dominó, pega varetas e jogo do mico, Marcelo nãotolerava o fracasso e modificava as regras a seu favor. Mostrava que era ‘o bom’ e que ‘ganhavatodas’, confirmando sua onipotência. O jogo do mico era um dos brinquedos preferidos. Ele competiabastante e queria sempre encontrar o maior número de pares.

Mais uma peculiaridade do processo terapêutico de Marcelo era sua caixa lúdica, que era bembagunçada. Quase sempre ele precisava sentar-se em cima dela para fechá-la e trancá-la.Simbolicamente seus conteúdos não cabiam na caixa, estavam transbordando e ele encontrou naterapeuta a figura de alguém que continha suas angústias e ansiedades, em um lugar onde ele podiaexpressar seus sentimentos mais agressivos e hostis.

O espaço terapêutico também foi utilizado por Marcelo para refletir sobre seus sintomas esua doença. Em uma sessão em que lhe foi pedido para contar sobre o que tinha, disse: "Tenho uma alergia do sistema nervoso. Quando eu fico nervoso as manchas aumentam e eu bato na minha irmã e na minha prima". Marcelo carregava esse estigma de ‘nervosinho’ e ‘doentinho’ em sua família e na escola. Ressalta-se que a mãe o acompanhava nas consultas dermatológicas, mas se recusava a acompanhá-lo ao processo psicoterapêutico.

Pode-se inferir que Marcelo buscava um olhar de atenção que faltou de sua mãe, no que dizrespeito às questões emocionais, já que sua doença de pele era visível, com evidente necessidade decuidados. Ele pôde gradualmente aproximar-se da terapeuta e de outras pessoas do seu convívio àmedida que as lesões dermatológicas começaram a cicatrizar, o que acontecia à medida que suaagressividade podia ser contida e entendida como forma de expressão de seus anseios.

O caso do Juliano

Juliano tinha seis anos de idade, quando foi encaminhado pela Psiquiatria para o serviço de psicoterapia. É neto de oriental pelo lado paterno, nasceu no norte do Paraná, em cidade onde moravam os avós maternos. De acordo com o relato da mãe, Mariana, ele foi uma criança planejada. Contudo, Rodrigo, o pai, discordou desta informação e contou que se afastou da companheira e pouco acompanhou a gravidez.

A gestação foi perpassada por intensa ansiedade da mãe, considerada por Rodrigo como semjustificativa, visto a situação estável e o apoio familiar com o qual contavam. Além disto, nesteperíodo Mariana teve também pedras nos rins. Em relação aos aspectos emocionais, a mãe dissereconhecer que era muito imatura e que havia desviado toda sua atenção para Juliano após onascimento dele. Apenas posteriormente retomou a atenção para o marido.

Percebeu-se que havia indicação para encaminhamento da mãe para psicoterapia individual epara orientação de pais, tendo em vista aspectos relativos à sua história de vida e à ligação com ofilho. Ao longo do atendimento de Juliano, Mariana foi chamada a iniciar tanto um processo deorientação de pais, focado na psicoterapia de seu filho, mas com precoce abandono, quanto àpsicoterapia individual, sem chegar a comparecer na entrevista inicial e sem justificar sua ausência.

Na visão da mãe, a amamentação de Juliano aconteceu sem problemas, mas no olhar de Rodrigoesta acontecia sem horários delimitados, de forma inconstante. A fala do pai apontava para umavisão de que os espaços de mãe e criança não estavam delimitados. O aleitamento foi interrompidoquando os dentes começaram a nascer e machucar a mãe. A sintomatologia da psoríase fez-se presente no mesmo momento em que o leite em pó foi inserido na alimentação de Juliano, aproximadamente aos catorze meses de idade, fato que dificultou a descoberta da doença, por se pensar tratar de alergia ao alimento. A família consultou diversos médicos até o diagnóstico correto. A patologia se manifestava de forma tão intensa que implicou na necessidade de internação de Juliano por várias semanas, dada a gravidade das lesões de pele.

Aos quatro anos de idade, Juliano começou a freqüentar a escola e seus pais prepararam professores e colegas para a sua chegada. Porém, quando teve que se mudar para outra escola,passou a ser apelidado pelos colegas de forma depreciativa na escola. Apresentava bom rendimento, mas não gostava de freqüentar a escola, algo que resultou em posterior mudança do local de estudo.

Durante o período de avaliação, Juliano recusou-se a fazer a bateria gráfica proposta, compostade desenhos de árvore, casa e pessoa e optou por realizar uma grande boca com dentes serrilhados.Em seguida, desenhou uma árvore e duas pessoas com armas, posteriormente apagadas, devido àfantasia de que sua mãe não aprovaria a representação destes objetos belicosos.

Elementos que se relacionavam a uma expressão de agressividade fizeram-se presentes naavaliação que precede o início da psicoterapia e também ao longo do atendimento psicológico.Neste sentido, travou embates entre carrinhos de sua caixa, pediu que fossem desenhadas armas,tentou transformar o inofensivo apontador em um perigoso estilete, além de agredir verbalmentesua terapeuta. No que se refere ao estabelecimento do vínculo com a terapeuta, mostrou resistênciaspor meio da recusa em entrar na sala de atendimento, em brincar na psicoterapia lúdica e se relacionarcom a terapeuta por meio da linguagem verbal ou lúdica.

Quanto às vivências externas à psicoterapia, ocorridas durante o período em que era atendido,Juliano presenciou, quando estava na casa da avó, um assalto, fato trazido nas sessões. Sofreu umabuso sexual, perpetrado por um colega do condomínio onde morava, e, segundo relato de Mariana,o pai questionou a impotência de Juliano em defender-se desta violência.

No que concerne à recusa em entrar na sala, compreendia-se esta como decorrente tanto dasresistências da criança em trabalhar conteúdos internos carregados de sofrimento, quanto da mãe,responsável por levá-lo às sessões. A partir do segundo ano da psicoterapia, a mesma passou a faltarnos atendimentos agendados, verbalizando que não mais queria comparecer ao hospital por estarcansada do contato com tanta doença. O pai intercedeu de forma a não permitir a interrupção dapsicoterapia do filho, por compreender que o abandono desta poderia caracterizar-se como umexemplo de não enfrentamento de situações desafiadoras que se apresentam ao longo da vida.

Percebia-se a dificuldade de Juliano em lidar com o fracasso. Em jogos competitivos, como‘pega varetas’ e dominó, alterava as regras para poder vencer a terapeuta. Propunha que ele e eladesenhassem nas sessões, mas quando via o desenho da psicóloga, dizia que o dela havia ficadomelhor que o seu e os trocava. Tinha uma grande crítica com suas produções, o que resultava noconstante uso da borracha.

Observou-se, também, que a mãe costumava invadir o setting terapêutico, por meio decomportamentos como deixar pertences da criança na sala de atendimento, como agasalhos, desenhos,brinquedos, ou ao rondar a sala antes do horário estabelecido para início do atendimento. Alémdisto, a genitora permitia que o filho mexesse na porta da sala de consulta, quando a terapeuta aindaatendia o paciente do horário anterior.

Havia uma demanda de Juliano de levar consigo, ao final das sessões, materiais dacaixa lúdica e com isto, compreendia-se que ele necessitava carregar objetos querepresentavam a ligação terapêutica. Essa solicitação era trabalhada na terapia, contudo,quando o pedido era recusado, ele mostrava grande insatisfação e raiva. Dada a compreensãode que os desenhos produzidos pela dupla paciente-terapeuta adquiriam um significadoimportante ao simbolizar a relação e as vivências da sessão, permitiu-se que alguns delesfossem levados para a casa pela criança.

A partir de um referencial winnicottiano, entende-se que a psicoterapia representou um espaçode holding, com acolhimento para a dor e compartilhamento de angústias. Era possível para Julianodemonstrar a agressividade nas sessões sem a perda da relação com a terapeuta, diferentemente dosoutros contextos, como a escola, onde a manifestação da agressividade poderia acarretar, por exemplo,na perda de amizades.

Pensa-se que a relação estabelecida entre paciente e terapeuta com aproximação e rechaço,amor e ódio, também representava transferencialmente a relação entre a criança e sua mãe. A doençade pele, órgão de contato e que delimita o interno e o externo, pode despertar no outro a aproximação,por identificação com o sofrimento experienciado pela criança, e o rechaço, dado o aspecto visual dadescamação da pele gerado pela psoríase.

No caso de Juliano, havia uma intensa ligação dele com a mãe, sinalizada não apenas pelorelato paterno, como também identificado pela própria Mariana, que reconheceu ter-se afastado docompanheiro e de sua vida conjugal após o nascimento do filho. A relação mãe-bebê parecia nãopoder ser sustentada diante de manifestações de agressividade, tendo em vista a interrupção daamamentação ao nascerem os dentes de Juliano.

Houve uma culpabilização de Mariana, por parte de Rodrigo, diante do desenvolvimento dapsoríase em Juliano. O pai dizia que a ansiedade da mãe durante a gestação e os casos de psoríase nafamília de sua esposa poderiam se configurar como os responsáveis pelo desencadeamento da doençano filho. Mariana apresentou dificuldades em se implicar com a enfermidade de Juliano, assumindoum papel de ordem emocional na melhora do quadro, demandas dos processos de orientação depais e da própria psicoterapia individual. Aceitá-las seria aceitar sua parte da patologia do filho econsiderar que esta é intensamente influenciada por questões emocionais. Seu discurso girava emtorno da questão médica e apontava as melhoras do filho como decorrentes da medicação, daalimentação, do clima, mas não em decorrência de um equilíbrio psíquico.

Neste sentido, ao se reconhecer que problemas emocionais da mãe podem influenciar nadoença de pele dos filhos, pensa-se que, para uma melhora efetiva dos quadros emocional edermatológico, era necessário não apenas o atendimento psicoterápico da criança, mas também oacolhimento da família e, em especial, da mãe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura de orientação psicanalítica acerca dos aspectos emocionais relacionados às afecçõespsicossomáticas, às doenças de pele e à psoríase, em geral, sinaliza para a importância das relaçõesiniciais entre criança e mãe. Na saúde, Winnicott ressalta a importância dos cuidados iniciais da mãecom seu bebê, bem como da pele no estabelecimento do vínculo entre o corpo e a psique:

Universalmente, a pele é de importância óbvia no processo de localização da psique no e dentrodo corpo. O manuseio da pele no cuidado do bebê é um fator importante no estímulo a umavida saudável dentro do corpo, da mesma forma como os modos de segurar a criança auxiliamo processo de integração (1988/1990, p.143).

Sobre o desenvolvimento das doenças de pele, Jorge et al. (2004) propõem a hipótese de quesua gênese esteja relacionada com disfunções na barreira de proteção do eu. Defendem que pessoascom dermatoses "parecem apresentar uma falha que lhes traz a necessidade de estar em permanenteregeneração; um estado de cicatrização, possivelmente das faltas impingidas num momento muito inicial dodesenvolvimento" (Jorge et al., 2004, p. 25).

No caso específico da psoríase, há uma produção acelerada de células da epiderme, que formamuma nova camada de pele. Ao se pensar no aspecto simbólico deste fato, considera-se que as lesõescaracterísticas da doença podem representar quer um distanciamento defensivo contra conteúdosemocionais, quer uma proteção contra possíveis invasões do meio externo. Em outras palavras,sinaliza, ao mesmo tempo, tanto um pedido de aproximação e cuidado, quanto uma necessidade deseparação e distanciamento.

Dessa forma, o reforço do órgão que representa a separação não-eu e eu pode hipoteticamenteestar associado a dificuldades no processo de desenvolvimento emocional que implica na separaçãoeu x não-eu. No caso da mãe de Juliano, questões de foro pessoal fizeram com que ela fosseencaminhada para psicoterapia e para orientação de pais, atendimentos aos quais não aderiu. Amesma receava trabalhar essas questões pessoais e trazia uma demanda para se focar a terapiaapenas na criança. Além disso, a mãe passou a mostrar dificuldades em aceitar a ajuda que o processopsicoterápico propiciava ao filho, com demonstrações veladas e inconscientes de ciúmes da terapeuta.Isto produzia na criança sentimentos ambivalentes em relação à terapia, ao espaço terapêutico, àpsicoterapeuta com movimentos de aproximação e de distanciamento, como não querer comparecerao ambulatório em determinados momentos.

No caso de Marcelo, a mãe negava-se a acompanhar o processo psicoterapêutico do filho, oque representava uma falta de atenção e uma dificuldade em lidar com questões emocionais eagressivas da criança.

Ao se refletir acerca dos atendimentos descritos, pode-se hipotetizar que o encaminhamentoda mãe para a psicoterapia ou orientação de pais pode contribuir para o desenvolvimento da criança,visto que dificuldades na relação mãe-filho são percebidas nesses casos. Contudo, determinadasvezes esta indicação não é possível, nem é acatada pelos familiares, situação que limita os alcancesdo atendimento oferecido, aspecto a ser considerado pelo psicoterapeuta de crianças com estaenfermidade e com dinâmicas pai-mãe-filho similares.

Quanto ao funcionamento psíquico de indivíduos afetados por doenças psicossomáticas, MelloFilho (1995, p. 215) ressalta que "freqüentemente crianças com as mais variadas patologias somáticas sentem-se culpadas e responsáveis por suas doenças, através da atuação de poderosos sentimentos de culpa inconscientesou mesmo por vezes conscientes". Pode-se compreender, então, o movimento de aproximação e de recusado atendimento por parte da própria criança. Em determinados períodos, ela brinca e se expressa,aderindo ao tratamento. Em outros momentos de resistência, mantém-se afastada do setting, já que apsicoterapia propõe o contato com o sofrimento, com a própria agressividade e destrutividade, com asculpas, com aspectos habitualmente negados ou não aceitos. A literatura acerca das doenças de pele ea experiência clínica descrita neste artigo apontam para o processo de separação mãe e filho e para dificuldades vivenciadas por crianças com este tipo de patologia. Pode-se entender as enfermidadescutâneas como uma maneira agressiva de afastar emocionalmente os cuidadores, ao mesmo tempo emque funciona como pedido de aproximação e cuidado para as lesões físicas. A agressividade se faziapresente de forma simbólica em desenhos e brincadeiras e, por vezes, concreta, com ações que poderiamresultar em machucados nas sessões. No caso de Juliano, percebia-se um movimento ora de esconder,de sua mãe, esta agressividade, quando apagava a arma desenhada, ora de mostrá-la, quando levavadesenhos deste objeto para a genitora, algo que apontava para uma problemática na relação materna.

Em ambos os casos, observaram-se dificuldades no diagnóstico médico das doenças de pele.O mesmo demorou a ser feito, as crianças receberam diversos diagnósticos anteriores ao da psoríase.Isto chama atenção, já que se trata de um padrão descamativo facilmente reconhecido pelo médico,que pode ser confirmado por uma biópsia. Apesar da espera por um diagnóstico correto, observou-se que o aparecimento da doença foi precoce, com menos de um ano de idade, nas duas crianças, tendo em vista que a psoríase ocorre, mais freqüentemente, em picos antes dos 30 anos e após os 50anos, sendo que em 15% dos pacientes a doença surge antes dos 10 anos de idade. Outro ponto comum nos dois casos descritos foi o movimento dos pais se culparem pela doença de pele dos filhos, com clara associação desta patologia a elementos de ordem emocional. Em Marcelo, a própria mãe sentia-se responsável pela patologia, quando lembrou o momento conturbado de sua gravidez,incluindo a separação do pai. No caso de Juliano, foi o genitor que responsabilizou a mãe pela enfermidade do menino, ao ressaltar o ‘nervosismo’ da esposa, bem como ao sugerir uma possível causa hereditária, já que havia antecedentes de psoríase na família materna.

A recusa de outras crianças em se relacionarem com os pacientes configurou-se como um item em comum nos atendimentos relatados. Este fato precisa ser considerado na psicoterapia e nas orientações de pais, pois marca um obstáculo na socialização e na auto-imagem já diminuída em crianças com doenças de pele.

Por fim, apesar das dificuldades que permeiam o atendimento de pacientes com psoríase, considera-se que a psicoterapia dessas crianças foi essencial para permitir que as mesmas pudessem compreender e lidar melhor com angústias e sofrimentos associados aos problemas de pele. No processo terapêutico, deve-se assinalar a postura de acolhimento da terapeuta, propiciando que as crianças pudessem trazer brincadeiras e jogos com conteúdos agressivos e destrutivos, sobrevivendo aos ataques dirigidos contra o vínculo estabelecido.

 

 

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Recebido em 26/11/08
Revisto em 26/06/09
Aceito em 30/06/2009

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Dr. Nelson Noronha Gustavo Filho, 150, apto 101C, Vila Brandina. Campinas - SP,CEP: 13092-526. Telefone: (19) 3294-4041. E-mail: carolgpsouza@yahoo.com.br; mairabonafe@hotmail.com; saboya@unicamp.br.
1 Nomes fictícios.

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