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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.61 no.135 São Paulo jul. 2011

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O desenho como instrumento diagnóstico: reflexões a partir da psicanálise

 

The drawing as a psychodiagnosis instrument: reflections from psychoanalysis view

 

 

Audrey Setton Lopes de Souza*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - SP - Brasil. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importância dos elementos expressivos do desenho para a elaboração do raciocínio clinico do profissional na interpretação das técnicas projetivas gráficas. O desenho, assim como o sonho, se vale de elementos pictóricos para favorecer a manifestação do inconsciente, apresentando-se como elementos aparentemente insignificantes, e assim facilitadores no desarme da censura e engates para manifestação dos desejos e conflitos inconscientes. Refletindo sobre esta articulação propomos uma aproximação do desenho em seu processo de formação, no qual a folha em branco deve ser ocupada utilizando-se o lápis como instrumento de expressão Os elementos expressivos revelam-se excelentes dados para tal tipo de abordagem. Propomos considerar o desenho como uma forma possível de diálogo com as crianças, introduzindo a ideia de que a produção gráfica da criança, a exemplo da produção onírica, é antes de tudo resultado de um trabalho psíquico e de que qualquer busca de sentido só será alcançada, se esta puder ser inserida em um diálogo e uma certa postura de escuta.

Palavras-chave: Psicodiagnóstico; produção gráfica; produção onírica; desenho e linguagem.


ABSTRACT

The purpose of this paper is to consider the importance of the drawing expressive elements for the construction of the professional clinical reflections, in order to understand the graphic projective tests. The drawing, same as a dream, has recourse to the pictorial elements, in order to benefit the unconscious manifestation, using apparently insignificant elements, that facilitates control desarmation and a link for the manifestation of the unconscious desires and conflicts. Deliberating about this articulation we suggest an approximation of the drawing in its formation process, in which, the white paper must be filled, using the pencil as an expression instrument. The expressive elements are an excellent datum for this kind of approach. We suggest considering the drawing as a possible way to dialogue with children, introducing the idea o that the child's graphic production, as like the dream production, is primarily a result of psychological work and that any search for meaning will only be achieved if it could be inserted into a dialogue and a certain posture of listening.

Key words: Psychodiagnostic; graphic and oniric production; drawing and language.


 

 

INTRODUÇÃO

A psicanálise exerceu forte influência no desenvolvimento e construção dos métodos projetivos e na compreensão do processo psicodiagnóstico, no entanto o ensino na área das técnicas projetivas centra-se muitas vezes na aprendizagem das pautas de interpretação dos instrumentos, correndo o risco de favorecer modelos atomísticos de interpretação, perdendo de vista o objetivo de alcançar as operações mentais operadas pelo sujeito e que permitiriam ao psicólogo alcançar o modo de funcionamento psíquico do paciente, objetivo principal de um processo psicodiagnóstico pautado na psicanálise.

Pesquisas sobre técnicas projetivas com estudos de validação e de padronização são importantes para comprovar cientificamente as qualidades psicométricas dos instrumentos, identificando características próprias de várias patologias ou grupos clínicos, no entanto o uso clínico destes instrumentos exige uma compreensão mais ampla que aquela alcançada pelas pesquisas de traços ou categorias, exigindo do clínico considerar a produção projetiva como um todo e na singularidade de cada sujeito.

Acreditamos que o conhecimento clínico e teórico da psicanálise poderia contribuir para o ensino de técnicas de avaliação da personalidade a partir de desenhos. No entanto análise das produções projetivas gráficas, valiosa ferramenta dentro do processo psicodiagnóstico, quando feita apenas baseada nos manuais de interpretação dos testes, sem utilizar o raciocínio clínico do psicólogo que integra as informações obtidas e tendo como pano de fundo um conhecimento teórico sobre o desenvolvimento e a personalidade, corre o risco de resultar em interpretações estereotipadas, perdendo seu caráter de rica possibilidade de comunicação, que pode contribuir para mapear as várias dimensões presentes na construção da subjetividade do paciente, permitindo um melhor encaminhamento aos profissionais que trabalham no campo da infância.

Pretendo expor neste trabalho o vértice encontrado para integrar estes aspectos e manter a confiança de que, como psicanalista, é possível contribuir para a formação de psicólogos que utilizam o desenho no processo psicodiagnóstico da criança. Esta proposta pretende contribuir para retirar a análise de desenhos do limbo no qual se encontram todas as técnicas de avaliação psicológica, tratadas em algumas áreas acadêmicas como um conjunto de instrumentos que retiram o sujeito de sua condição de indivíduo.

Trata-se de lutar contra uma desconfiança gerada pela vulgarização, por vezes, demasiado simplista, dos modos de investigação psicológica, que correm o risco de catalogar a criança e ao mesmo tempo defender a utilização de desenhos como forma de aproximação e conhecimento do sujeito.

A perspectiva que propomos como reflexão é considerar o desenho, não como um "teste", mas como uma forma possível de diálogo com as crianças, introduzindo a ideia de que a produção gráfica da criança, a exemplo da produção onírica, é antes de tudo resultado de um trabalho psíquico e de que qualquer busca de sentido só será alcançada, se este puder ser inserido em um diálogo e uma certa postura de escuta. Este vértice encontra eco em autores como Sigal (2000) e Mannoni (1981).

Os testes são para mim apenas um meio e não um fim. Utilizo-os num diálogo, durante o qual procuro apurar um sentido, um sentido, sem dúvida, em função de certo esquema familiar. E é, pois, ao discurso do sujeito que vou prender-me sobretudo (Mannoni, 1981, p. 84)

Diagnosticar é, neste sentido, interpretar, construir hipóteses que nos permitam dar conta do trabalho simbólico junto aos conflitos que se estruturam no caminho de construção da subjetividade, assim como abordar as formações imaginárias que se apresentam como armadilhas do desejo para a sua satisfação (Sigal, 2000, p. 30).

A área da investigação psicodiagnóstica está repleta de testes de personalidade que utilizam o desenho como veículo de comunicação e que, na maior parte das vezes, são acompanhados de pautas de interpretação dos conteúdos simbólicos associados às diferentes partes dos desenhos (casa, árvore, pessoa ou família), tendendo a levar a uma postura de que é possível decifrar um desenho. Ilusão e tentação da busca de um sentido imediato prescindindo do diálogo.

Diatkine (2007) alerta que os sentidos atribuídos às produções da criança provêm do fato de que os afetos, em busca de representações ou ligações, se articulem a elementos da trama do discurso do paciente, que podem ser percebidos como indícios que mobilizam o psicanalista a construir um objeto de conhecimento. É a partir de sua elaboração interpretativa que este indício pode ser transformado em signo e como tal um elemento de comunicação emitido para que a criança o receba.

A criança, por sua vez, não emite, intencionalmente, nenhuma mensagem codificada e o psicanalista não tem que lhe mostrar alusivamente que sabe decifrar enigmas... É no transcurso que a criança descobre o que tem para dizer e que por isso pode entrar no universo do discurso (Diatkine, 2007, p. 35)

A produção de imagens é uma forma de comunicação de afetos que, a partir daquele que a produz, estimula aquele que as observa a entrar em contato com elas, como uma espécie de linguagem. Como apreciador de uma arte, podemos simplesmente nos deixar levar por esta linguagem, mas como psicanalistas, temos muitas vezes a função de acolher este código de linguagem e comunicação e tentar encontrar um sentido. Assim como nos sonhos, temos imagens que se apresentam, às vezes condensadas, distorcidas, aparentemente desconexas, mas que podem, a partir de um determinado modelo de escuta, adquirir um sentido.

O sonho, o desenho ou o jogo apresentam-se ao psicanalista como uma espécie de linguagem cifrada, a ser decifrada por uma certa postura de observação; o grande enigma está em como desenvolver os processos de decifração.

Há sempre o perigo de trabalhar com códigos unívocos, onde cada símbolo corresponde a um outro, a ele relacionado diretamente, o que resulta em interpretações estereotipadas e empobrecidas da mente humana, não alcançando uma visão dinâmica do funcionamento da personalidade, além de desconsiderar o aspecto transferencial de um diálogo do qual ambos participam e no qual os personagens da dupla interagem modificando os personagens do desenho.

Tentaremos percorrer o caminho que a psicanálise nos oferece para pensar. Comecemos com Freud: apesar de incluir no relato do caso Hans o conhecido desenho das girafas (Freud 1909/1980) ele não trabalhou com desenhos, mas com as imagens dos sonhos. Além disso, ele também produziu um belíssimo texto no qual a partir de algumas obras e textos de Leonardo da Vinci (Freud, 1910/1980) tentou formular hipóteses sobre a personalidade do artista. Freud é pródigo em exemplos de análise, de mitos, produções artísticas, etc., representando conflitos típicos de todos nós.

Sobre os artistas e suas produções, Freud (1908/1980) aponta que a criatividade tem como uma de suas fontes o brincar infantil. O poeta criativo faz o mesmo que a criança ao brincar, cria um mundo de fantasia que é levado muito a sério e no qual investe muita emoção, sem confundir realidade com fantasia e nisto resulta o prazer destas experiências. São atividades levadas a sério, mas nas quais se desfruta de uma liberdade para vivenciar as fantasias, um dos fatores que tornam tão fascinantes tanto os escritores criativos quanto crianças ao brincar. Ler um livro, ver um filme ou observar uma brincadeira ou desenho infantil satisfaz nosso anseio por vivenciar esta experiência de exploração do mundo dos sentimentos e nos mostra como é possível brincar com as fantasias, sem perder o contato com a realidade ou enlouquecer, muito pelo contrário, elas permitem crescer e enriquecer-se com tais experiências.

É sempre instigante acompanhar uma criança que se permite desenhar com liberdade, pois nos leva com ela para um passeio no universo das fantasias infantis.

Todos nós mantemos dentro de nós um caminho para a exploração deste universo: o caminho dos sonhos, a via régia para o inconsciente (Freud, 1900/1980). Ele afirma que, todo sonho é uma realização disfarçada de um desejo sexual infantil reprimido; uma formação do inconsciente que se utiliza predominantemente de imagens para expressar-se, uma linguagem mais próxima do inconsciente em seu modo mais primário de funcionamento, possível de surgir à mente durante o sono pela regressão funcional ocasionada pelo estado de adormecimento. Esta condição, segundo Anzieu (1981) está presente, em parte, também nas técnicas projetivas pela forma como são configurados os materiais projetivos e pelo tipo de atividade proposta.

Mas evitando uma perspectiva reducionista sobre as contribuições freudianas devemos destacar que, em seus estudos, Freud destacou a importância do trabalho de formação dos sonhos, no qual estão agindo concomitantemente, tanto a realização dos desejos quanto a sua proibição, chamando a atenção para a produção onírica como um modo de expressão de desejos, que só aparece predominantemente por imagens e enquanto dormimos ou alucinamos. Outra forma de expressão deste mesmo sonho se revela quando acordamos (elaboração secundária), além de outras possibilidades como esquecer o sonho, quando este, apesar de possível de ser sonhado, torna-se inacessível para a vida desperta ou ainda, os pesadelos que interrompem o sono, etc. O estudo do processo de sonhar permitiu a Freud elaborar a sua primeira formulação sobre a constituição do aparelho psíquico (Freud, 1900/1980). Este grande preâmbulo pretende colocar em realce que, para além da mera decifração dos conteúdos dos sonhos, é primordial ao psicanalista estar atento à compreensão do processo de formação deste sonho e, assim, poder ter acesso ao sonhador e não ao inconsciente. Esta é a perspectiva sob a qual sugerimos considerar o uso de desenhos no processo psicodiagnóstico. Tomar o desenho final como resultado de um trabalho psíquico, que se inicia com as instruções do teste que mobilizam as angústias do sujeito e que o resultado final do desenho refletirá a forma como este sujeito lidou com estes conteúdos, de acordo com suas capacidades egóicas.

A um analista engajado e consciente de nada serve um manual de interpretação dos sonhos, pois se é verdade que o sonho utiliza certo simbolismo para expressar os desejos inconscientes, é também verdade que só a análise do sonhador permitirá compreender, porque ele precisou sonhar este sonho, deste jeito. Assim deve-se considerar que além do conteúdo simbólico do sonho, a forma imagética na qual ele se apresenta, temos a forma como ele é lembrado e, nunca é demais ressaltar, temos as associações despertadas por cada um dos elementos deste sonho e o mesmo vale para as produções gráficas.

É intuito deste trabalho, alertar para o cuidado que devemos ter quando nos aproximamos de uma técnica projetiva gráfica e dos manuais de interpretação. Os manuais são úteis para orientar o psicólogo a respeito dos principais aspectos simbólicos associados aos elementos destas produções gráficas.

Ao interpretar desenhos nos valemos dos significados dos símbolos derivados da psicanálise, dos folclores, dos estudos dos sonhos, dos mitos e das fantasias. Estes símbolos funcionam como engates a partir dos quais o inconsciente se vale para alcançar o caminho da consciência e, disfarçadamente, encontrar uma forma de expressão. Devemos também estar atentos aos mecanismos de deslocamento e condensação, além de uma vasta gama de tratamentos possíveis dados a estes símbolos para a formação de um desenho final.

O texto de Freud "Uma lembrança infantil de Leonardo da Vinci" (1910/1980) pode ser útil para discutir os "usos e abusos" das técnicas projetivas. Ele traz, por um lado, uma valiosa contribuição, revelando como a psicanálise pode, valendo-se das produções gráficas e verbais do artista, alcançar a compreensão da sua personalidade, mas também nos ajuda a ficar atentos para o perigo de nos apegarmos a determinados conteúdos simbólicos no processo de construções de nossas hipóteses. Neste texto, Freud mostra como as obras de Leonardo da Vinci retratam sua relação conflituosa com sua mãe, enigmática e sedutora como a Mona Lisa, destacando não só aspectos de conteúdo das obras de Leonardo, mas também a vagarosidade de sua produção, a insatisfação com o resultado final, as modificações feitas nas obras até chegar a sua conclusão, a repetição de um certo modelo de sorriso nas obras posteriores e a contigüidade entre esta obra e uma outra (Sant'Ana com a Madonna e o menino) como exaltação da maternidade. Mas a leitura deste texto também permite pensar sobre o que chamo de abusos, pois como mostra Strachey (editor inglês da obra freudiana) em nota introdutória ao texto, Freud teria se apegado a um conteúdo simbólico de um determinado pássaro, que erroneamente é confundido com um símbolo mitológico egípcio para formular a teoria da mãe fálica, mostrando o perigo de nos apegarmos a determinados elementos simbólicos no afã de corroborar nossas hipóteses.

Pesquisas são importantíssimas para identificar possibilidades simbólicas desencadeadas por estímulos como a casa, a árvore, a pessoa, o telhado, a chaminé, os olhos, a boca, o cabelo, o tronco, etc., usados como estímulos projetivos e na elaboração e validação das técnicas projetivas. Precisamos destas pesquisas para estimular nossas produções de hipóteses, mas há outra pesquisa a ser feita em cada produção individual que se nos apresenta: a verificação de como esta pessoa específica valeu-se destes símbolos possíveis para produzir este desenho para aquela pessoa que a está solicitando. Este trabalho deve ser feito para cada produção obtida pelo psicólogo que está observando.

É importante considerar toda produção gráfica como um trabalho do inconsciente, um trabalho de inscrição do desejo em composição com a censura da resistência que este desejo desperta e, a partir desta transação mútua, surge o desenho final. As produções gráficas ainda trazem a vantagem de permitir que o observador acompanhe o que se constrói diante dele e os movimentos da criança em relação aos resultados de suas produções e à presença do observador.

A interpretação deste processo dinâmico pode vir da resposta para algumas questões. Como é tratada a folha de papel? Que relações a pessoa estabelece com a folha como espaço e como a usa? Preocupa-se em ocupar a folha ou é uma pseudo-ocupação de todas as folhas e lápis que estão a sua frente, sem poder realmente desenhar. Trata-se de pura descarga de traços ou há uma elaboração no traçado? O contato com o psicólogo ao longo dos encontros afeta de que maneira sua produção? Há uma visível preocupação em não deixar espaços em branco, como se temessem o vazio, ou, ao contrário, restringem-se a um único espaço da folha? Em que parte da folha se colocam? Quais partes da folha não podem ocupar? Há alguma modificação ao longo do encontro conosco? Como muda seu desenho? Expande-se ou restringe-se? Torna-se mais colorido ou cada vez mais sombrio?

Comporta-se em relação a seu desenho na folha como se o espaço disponível fosse muito menor do que aquele que a folha parece oferecer, ocupando mínimas proporções da mesma, ou seu desenho parece transbordar o espaço efetivo da folha? Ele se dá conta disso ou desconsidera? Qual elemento do desenho é reduzido ou ampliado? Como trabalha este espaço? A folha parece dividida em duas partes distintas (cima/baixo ou direita/esquerda)?

O que há de invariante nestas características formais? É possível detectar variações destas características ao longo da produção gráfica do sujeito e como articulá-las ao tema do desenho ou ao traçado ou mesmo à relação com o psicólogo.

Como estão as cores, gradações de intensidade cromática? Com que partes do desenho ele parece insatisfeito, como lida com esta insatisfação (apaga, retoca, reforça) e qual é o resultado final deste trabalho de acertar este desenho?

Queremos salientar que não se trata de excluir toda referência aos conteúdos temáticos, mas integrá-los aos aspectos expressivos. Há um ambiente-folha no qual o paciente vai através de seu lápis se colocar (Van Kolck, 1984) e a forma como o sujeito a utiliza poderá revelar a forma como se coloca no mundo. Estas questões visam investigar como é feita esta abordagem ao ambiente, usando o instrumento (lápis) do qual dispõe. Hammer (1991) coloca que estes aspectos expressivos traduzem as atitudes básicas do indivíduo em relação a si mesmo e ao ambiente assim como a forma como lida com seus impulsos.

Vários autores como Hammer (1991) e Rodulfo (1992) falam de uma escritura que se revela por detrás de nossos traços no papel ou traços corporais. O que nos fornece esta escritura no desenho são estes aspectos estruturais do desenho: tamanho; pressão e qualidade da linha; posição na folha; precisão e grau de completude do desenho; detalhamento; simetria; proporções; perspectiva; sombreamentos; reforços; correções e retoques.

Grassano de Piccolo (1974) e Grassano (1977) apresentam trabalhos na área diagnóstica, e tentam demonstrar como os principais mecanismos de defesa podem aparecer nas produções gráficas. Grande parte das características levantadas pela autora se referem a aspectos como: organização guestáltica do desenho (organização, coerência, harmonia), perspectiva (como forma de expressão do tempo), preenchimento dos espaços na folha, limites dos desenhos, tipo de traçado, distância, proximidade ou separação entre os personagens, tamanho, reforçamentos, detalhamentos ou retoques; mostrando a riqueza do trabalho com estes elementos expressivos do desenho. A autora também apresenta algumas características do conteúdo dos desenhos, mas este é um excelente exemplo de um raciocínio clínico sobre as características estruturais dos desenhos como reveladoras de um modo de se organizar frente aos impulsos.

Além disso, deve-se considerar, frente a uma criança, que está em um processo de desenvolvimento e de construção de sua estrutura de personalidade, que o uso do desenho como linguagem e expressão também passa por um processo de constituição. Do momento inicial no qual apropria-se do instrumento lápis, que lhe permite o prazer da inscrição de um traço ou uma marca à possibilidade de usar sua escrita como comunicação, de um lado uma descarga motora de prazer do gesto e de outro a possibilidade de inscrição permanente (Mèredieu, 1974; Teixeira, 1991).

A posterior conquista do desenho de círculo que além da façanha motora, também remete a conteúdos simbólicos ligados a este elemento. É possível encontrar na literatura científica (Dolto, 1984; Rodulfo, 1992), referências que destacam o elemento gráfico circular, como representativo do corpo materno e das primeiras concepções sobre o próprio corpo e sua interioridade, além da noção de continente e contido, o que aponta para a importância de tal representação no processo de individuação da criança. Porém é importante ressaltar a necessidade de articular tais elementos às associações verbais obtidas.

Procuramos neste trabalho destacar a importância dos elementos expressivos na análise das produções gráficas do sujeito e o cuidado na utilização dos aspectos simbólicos do desenho para a elaboração do raciocínio clínico do profissional. A fundamentação psicanalítica permite pensar a produção gráfica como resultado de um trabalho psíquico que, tal como o sonho, pode dar acesso a aspectos importantes da personalidade do sujeito. Considerar os desenhos como um todo, como destaca Silva (2008b), muito mais do que como mera somatória de sinais ou características, contribui para valorizar a utilização das técnicas projetivas gráficas dentro do processo psicodiagnóstico.

Tal perspectiva não exclui a importância das pesquisas que fundamentem cientificamente as pautas gerais de interpretação mas, como destacam Saur e Pasian (2008), Silva (2008a) e Trinca (1999), a utilização clínica destes instrumentos exige uma atenção ao preparo do clínico que as utiliza para permitir uma melhor significação e integração dos dados obtidos.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido em 15/03/11
Revisto em 08/08/11
Aceito em 30/11/11

 

 

* Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo; Avenida Professor Mello de Morais, 1721, Bloco A, sala 204. São Paulo - SP. Telefone: (11) 3091-4185; Fax: (11) 3813-8895; E-mail: asetton@uol.com.br.