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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.62 no.136 São Paulo jun. 2012

 

IN MEMORIAM

 

César Ades (08/01/1943-14/03/2012)

 

César Ades (08/01/1943-14/03/2012)

 

 

Emma Otta

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - SP - Brasil

 

 

Esta homenagem, publicada agora no Boletim de Psicologia, foi apresentada na Cerimônia de lançamento do Prêmio Monográfico César Ades "Desafios para o Futuro da Psicologia", como parte das atividades de comemoração dos 50 anos de regulamentação da profissão no Brasil, realizada no dia 27 de junho de 2012, na sede do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 6ª Região.

Esta é a melhor homenagem que se poderia fazer ao César. Ele estava comprometido com o debate dos Desafios para o Futuro da Psicologia. O seu relatório de gestão como Diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA), entre 2008 e 2011, é primoroso e mostra a importância que ele dava à aproximação de pesquisadores e à discussão de perspectivas e ideias pertinentes para a Universidade e para o país. Ele estava engajado na causa do conhecimento e da Universidade, mas também em questões sociais. Lembro que ele criou no IEA Grupos de Pesquisa sobre Temas Atuais da Educação, Psicologia Socioambiental e Diálogos Interculturais, sob coordenação de psicólogos. Os temas "As Políticas Públicas e o Futuro da Psicologia"; "Contribuições da Psicologia na Construção do Conhecimento no Século XXI"; "A Psicologia Latino-Americana: Desafios e Possibilidades" certamente seriam considerados por ele como centrais para o debate dos "Desafios para o Futuro da Psicologia".

César foi meu orientador de mestrado (1975-1979) e de doutorado (1980-1984) no Instituto de Psicologia da USP. Trabalhamos juntos ministrando anualmente a disciplina "Motivação e Emoção" no curso de graduação, durante mais de 30 anos, e, mais recentemente a partir de 2009, ministrando também a disciplina "Motivação em Sala de Aula", que surgiu como uma disciplina aplicada à Licenciatura em Psicologia, a partir da experiência adquirida na disciplina básica. Quando ele faleceu, eu era Diretora do IPUSP (2008-2012) e estava concluindo a gestão. César havia concluído a sua gestão como Diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP e estávamos fazendo planos de atividades conjuntas. Estávamos ambos entusiasmados com os Laboratórios Didáticos recém-inaugurados em 2011, para a realização da parte prática das disciplinas das áreas básicas. César tinha razões para se orgulhar desse projeto, que foi elaborado durante a sua gestão como Diretor do IPUSP (2000-2004) e implementado na gestão da Profa. Maria Helena Souza Patto (2004-2008). A obra foi finalizada na minha gestão e coube-me, então, a inauguração.

Fizemos muitos projetos e, finalmente, com apoio da Reitoria da USP e de agências de fomento (FAPESP, CNPq e CAPES) conseguimos equipar o Laboratório Didático da Área de Etologia e podemos oferecer aos nossos alunos softwares de apoio para a observação do comportamento e modernos equipamentos para registro e análise de comportamento. César estava planejando pesquisas sobre expressão de emoções. Tínhamos uma reunião marcada, que infelizmente não se realizou, para conversar sobre práticas de pesquisa que poderiam ser interessantes para os alunos.

César foi velado no dia 15/03/2012 no mesmo salão da Biblioteca do IPUSP onde anualmente, no final de novembro, os alunos da disciplina "Motivação e Emoção" apresentavam, em forma de pôster, os resultados das pesquisas que faziam durante o semestre. Este Mini-Congresso, que César organizava com muito entusiasmo, costumava atrair alunos de outras turmas e usuários da Biblioteca. Difícil esquecer o dia 15/03/2012, mas mantenho vivas na minha lembrança as imagens de momentos felizes dos muitos Mini-Congressos realizados no mesmo local.

 

 

Num e-mail que me mandou em 18/02/2011 ele comentou:

"Nosso curso tem tido um papel de excepcional relevância, na parte prática, para o aluno de Psicologia. Num texto publicado no primeiro número de Psicologia: Ciência e Profissão ressaltei que o treino de pesquisa era um treino de compreensão (Ades, 1981). Os projetos que os alunos têm efetuado, ao longo dos muitos anos da disciplina constituem um motivo de contentamento. Através deles, e sempre foi esta a ideia, visava-se dar ao aluno o senso da pesquisa em psicologia, desmistificar estereótipos relativos à experimentação, mostrar que é possível ser (até certo ponto) rigoroso em assuntos interessantes."

A história de desenvolvimento da Etologia brasileira no Instituto de Psicologia da USP se funde com a história de César Ades. Quando César estava fazendo sua graduação em Psicologia na USP - ingressou no curso em 1961 e formou-se em 1965 - as aulas eram dadas num Palacete da Alameda Glete. Além de conviver no Palacete, César passava muito tempo no porão. Lá estava instalado o primeiro Laboratório de Psicologia Animal do Prof. Walter Hugo de Andrade Cunha. O Prof. César teve a oportunidade de estudar com o fundador da Etologia no Brasil. Terminada a graduação, fez o seu doutorado sob orientação de Walter Hugo a respeito da teia e da caça da aranha Argiope argentata.

No porão da Glete o espaço físico era apertado, mas rico em ideias. Os alunos, diretamente supervisionados, aprendiam a fazer pesquisa na prática, aprendiam a importância da investigação e da prova e eram contaminados pelo prazer da descoberta. Parecia inconcebível para os pioneiros que exposições livrescas sobre metodologia científica pudessem ser substitutos adequados para a prática de laboratório. Havia um espaço de estreita convivência e de debate de ideias entre os alunos e entre os alunos e os professores. César estava no terceiro ano do curso de graduação e lembra que:

Sentados à mesa de seminário, em reuniões à parte que marcávamos à noite, Walter, Arno Engelmann e eu discutíamos o modelo teórico de Miller, Galanter e Pribam, tal como exposto no livro Plans and the Structure of Behavior, em prenúncio do cognitivismo. Fernando Leite Ribeiro, Katsumaza Hoshino, Alcides Gadotti e eu lá planejamos um experimento sobre mapas cognitivos em ratos, de inspiração tolmaniana, só muito mais tarde realizado. Em duas salinhas, instalei um biotério improvisado e o meu primeiro laboratório, no qual fui investigando com curiosidade a natureza do comportamento exploratório. O espaço era pouco, mas extraordinária a densidade de ideias, não nos abandonava um instante o senso de conquista intelectual. (Ades, 2004, p. 236)

Os Laboratórios do Porão do Palacete da Alameda Glete mudaram, inicialmente para novas instalações da Cadeira de Psicologia, na Rua Cristiano Viana (entre 1967 e 1969), e depois para o barracão B10 da Cidade Universitária com a saída da FFCL da rua Maria Antônia, após os incidentes estudantis de 1968. Só em 2011 foram integrados ao conjunto de prédios da Psicologia. Alunos do Prof. Walter Hugo difundiram a Etologia no Brasil. César adquiriu renome internacional e teve importante papel na divulgação da Etologia no Brasil. Foi membro do International Council of Ethologists, tendo coordenado a XXVIII International Ethological Conference em 2003, da International Society of Comparative Psychology, presidiu a Sociedade Brasileira de Etologia (SBEt), da qual foi fundador, de 1994 a 1996 e de 1996 a 1998. Foi editor, desde 1999, da Revista de Etologia.

Em 2009, ao encerrar o seu discurso de posse para a cadeira no 19 da Academia Paulista de Psicologia intitulado "Explorando o comportamento animal", o Prof. César Ades resumiu o seu legado:

Ressalto, darwinianamente, a importância de uma epistemologia que situe os assuntos psicológicos num contexto mais amplo, que é o da biologia e do pensamento evolucionário. Não há receita para esta integração, ela surge quando especialistas de áreas diversas percebem que sua compreensão será mais abrangente e criativa se for de convergência. Destes esforços parciais é que depende uma construção mais ampla e uma reanálise dos esquemas teóricos, uma epistemologia colocada em dia. Esta é minha mensagem (Ades, 2010, p.87)

O Programa do VII Congresso Nacional da Psicologia (CNP) realizado em 2010, sobre o tema "Psicologia e compromisso com a promoção de direitos: um projeto ético-político para a profissão" nos aponta os desafios da Psicologia para o Século XXI. César Ades deu a sua contribuição para esse projeto, como professor-pesquisador, despertando o prazer investigativo nos seus alunos. Aprendi com ele que, capacitando alunos para a investigação, formamos profissionais capacitados para colocar em prática a dúvida sistemática, desconfiando de certezas preconcebidas e capazes de superar divisões teóricas desnecessárias.

Os nossos estudantes são naturalmente curiosos, gostam de desafios e são socialmente engajados (Gomes, 2012). Saberão transformar o prazer investigativo em ferramenta de atuação profissional, o que lhes garantirá um papel destacado na profissão e sucesso nas suas metas pessoais. Será condição também para o sucesso da psicologia no século XXI. Alunos como Hélder Gusso e Gabriela Andrade da Silva, cujo depoimento reproduzo parcialmente a seguir, tiveram o privilégio de ter convivido com o Professor-Pesquisador César Ades. São jovens psicólogos como eles que saberão enfrentar os desafios da psicologia do séc. XXI.

Há pessoas que nos deixam marcas. Entre elas, há ainda as que deixam marcas profundas que levamos para toda a vida. Ainda lembro muito bem do momento em que entrei em contato com o professor Cesar Ades. Eu ainda era um calouro de Psicologia, quando fui apresentado à Etologia e ao estudo dos comportamentos típicos de cada espécie. Posso afirmar que a Etologia foi a primeira coisa que me despertou a paixão pelo estudo do comportamento. Era fascinante observar as características de cada espécie, como o processo de seleção natural deu forma as espécies que hoje conhecemos e o quanto isso podia nos ajudar a compreender nosso próprio comportamento como bicho-homem.

Foi nesse período que tive contato com alguns artigos do prof. Cesar Ades que abriram as possibilidades de compreender o estudo do comportamento em uma perspectiva das ciências naturais, com muito rigor e com muito amor. Seus textos, sempre muito claros e bem escritos, também sempre foram recheados de pitadas de bom humor ("Freud, as enguias e a ruptura epistemológica" ou "notas sobre criatividade em pesquisa" são ótimos exemplos disso!) (Gusso, 2012).

"Um dia César me chamou junto com um grupo de alunos de graduação para uma reunião na Diretoria. Pensei: o que será que ele quer? Serviram café, eu não gostava, mas aceitei - e gostei, até hoje tomo. E o que ele queria? Queria dizer que gostou dos nossos trabalhos em sua disciplina e que seria bom que fossemos ao Congresso Norte-Nordeste. Esse foi meu primeiro café, meu primeiro congresso, meu ingresso no mundo da pesquisa, de onde não saí mais. Vieram outros cafés na cantina do IP, onde ele vivia sorrindo e falando de árvores, dos pássaros, das lindíssimas teias de aranha que estavam por lá... Com certeza, esse homem marcou minha vida!" (Depoimento de Gabriela Andrade da Silva, em Carvalho, 2012, p.231).

Concluo lembrando que César me ensinou que seriedade profissional e bom humor podem andar juntos. Sabemos que na psicologia emoções e estados de ânimo negativos como raiva, ansiedade e tristeza foram muito mais estudados do que emoções e estados de ânimo positivos, como alegria, gratidão e serenidade. Estamos aprendendo que o estudo e o cultivo de emoções positivas não é um empreendimento frívolo e que merecem mais atenção da nossa parte (Fredrickson, 2003). Emoções positivas resultam numa ampliação de estados cognitivos, em oposição a uma "visão afunilada", em que estados de ansiedade estreitam o foco de atenção. O Professor-Pesquisador César Ades estava comprometido com a ampliação dos estados cognitivos dos estudantes, ajudando-os a encontrar sentido positivo nas circunstâncias presentes, encontrando aspectos positivos na adversidade, conferindo-lhes significado e apontando formas construtivas de solução de problemas. É só assim que poderemos enfrentar coletivamente e com força os desafios do século XXI. Emoções negativas são adaptativas para enfrentar ameaças a curto-prazo, enquanto as emoções positivas ampliam a atenção e encorajam a flexibilidade cognitiva, que potencialmente irá garantir nosso sucesso a longo prazo enquanto grupo. O Prof. César nos contagiava com seu sorriso e, sem que nos déssemos conta, nos ajudava a ver a floresta e a escapar de "visões afuniladas" (Johnson, Waugh e Fredrickson, 2010).

Cabe a nós dar continuidade ao seu legado. Parabéns ao CFP pela criação doPrêmio Monográfico César Ades "Desafios para o Futuro da Psicologia".

 

REFERÊNCIAS

Ades, C. (1981). Treino em pesquisa, treino em compreensão. Psicologia Ciência e Profissão, 1, 107-140.         [ Links ]

Ades, C. (2004). Memória partilhada. Psicologia USP, 15, (3), 233-244.         [ Links ]

Ades, C. (2010). Explorando o comportamento animal. In: Pérez-Ramos, A. M. Q. (Org.), O legado da Psicologia para o desenvolvimento humano - 2a fase: Resgate da vida e obra de acadêmicos titulares, através de depoimentos e DVDs. Acesso em 20/06/2012. Disponível em: http://citrus.uspnet.usp.br/cmip/sites/default/files/Depoimentos_livro_0.pdf        [ Links ]

Carvalho, A.M.A. (2012). César Ades (08/01/1943 - 14/03/2012): Entre teias, bichos, crianças e gente grande, a paixão pela ciência. Memorandum, 22, 226-241.         [ Links ]

Gomes W.B. (2012). Introdução ao estudo de história da psicologia. Anotações de aula. Acesso em 20/06/2012. Disponível em: http://www6.ufrgs.br/museupsi/Texto%201.htm        [ Links ]

Gusso, H. (2012). Obrigado Cesar Ades. Acesso em 20/06/2012. Disponível em: http://sasico.com.br/psico/?p=1471        [ Links ]

Fredrickson, B.L. (2003). The value of positive emotions. American Scientist, 91, 330-335.         [ Links ]

Johnson, K.J., Waugh, C.E. & Fredrickson, B.L. (2010). Smile to see the forest: Facially expressed positive emotions broaden cognition. Cognition and Emotion, 24, 299-321.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 27/06/12
Aceito em: 27/06/12