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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.62 no.137 São Paulo dez. 2012

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Do pai da horda a Moisés: o ideal como articulador entre o sujeito e a cultura

 

From the horde's father to Moses: the ideal as the articulator between subject and culture

 

 

Helenice de Fátima Oliveira Rocha*

Universidade Guarulhos - Guarulhos - SP - Brasil

 

 


RESUMO

Com o intuito de demonstrar a articulação entre ideal, sujeito e cultura, empreendemos um trajeto pelos textos sociais e políticos de Freud. De Totem e tabu, escrito em 1913 a Moisés e o monoteísmo, publicado em 1939, recortamos destes trabalhos a posição do líder enquanto ideal para o sujeito e para a massa. O esforço de Freud em nos mostrar que o psiquismo é o palco vivo da cultura revela que o vínculo social, representado pela aliança entre os irmãos, só pode sustentar-se pela submissão ao líder, demonstrada através do processo de identificação como uma das exigências do ideal em sua função de emprestar alívio ao desamparo original.

Palavras-chave: Ideal; sujeito; cultura.


ABSTRACT

In order to demonstrate the link between the individual, ideal and culture, we followed a path through Freud's social and political texts. From Totem and taboo, written in 1913, to Moses and the monotheism, published in 1939, we select from these projects the position of the leader as the ideal for the subject and for the mass. Freud's effort in showing us that the psyche is culture's living stage reveals that the social link, represented by the tie among brothers can only be sustained by the submission to the leader, demonstrated through the process of identification as one of the ideal requirements in its function of lending relief to the original helplessness.

Key words: Ideal; subject; culture.


 

 

A tentativa de articulação entre o sujeito e a cultura a partir do ideal nos leva a iniciar o texto marcando que a teoria freudiana não é a única capaz de tentar explicar o fenômeno aqui abordado. Outros saberes, dentro do próprio campo psicanalítico e de outros campos têm, evidentemente, muito a dizer sobre esta questão. Além disso, é prudente lembrar que o psiquismo, tal como é concebido e estudado pela psicanálise desde Freud, é uma formação intermediária entre o corpo biológico e o campo social, de maneira que buscar compreendê-lo só é possível se levarmos isto em consideração. Outra maneira de dizer que o inconsciente, objeto de estudo por excelência das teses psicanalíticas, não existe no vazio. No entanto, empreender esta articulação só nos parece possível levando em conta os aspectos inconscientes bem como as forças psíquicas que constituem o campo da idealidade. Assim, buscaremos nos mover dentro das engrenagens da metapsicologia freudiana para buscar tal articulação.

Totem e tabu, texto de 1913, é o trabalho inaugural de Freud sobre o social. Trabalho descentralizador, pois fez com que as teses psicanalíticas até então construídas - sobretudo as orientadas para a investigação do inconsciente através das psiconeuroses ou dos sonhos tomassem uma direção rumo à exploração da cultura. No primeiro capítulo dessa obra, Freud retoma a questão do incesto, já enunciada anteriormente como experiência estruturante do indivíduo e das neuroses. Esse tema é explorado aqui para abarcá-lo também dentro da constituição do social. Ao demonstrar neste texto que o desejo de incesto está presente em todas as sociedades e que é ele o fundador da lei da exogamia, Freud o coloca como centro organizador da cultura. Inovadora a partir dessas constatações de Freud é a ideia que ele lança da necessidade de haver uma força repressora, uma interdição, ditada e mantida por uma instância capaz de manter essa lei e que funcionaria como um obstáculo para a descarga pulsional imediata.

Para contar-nos a história, Freud partiu da descrição da horda primeva de Darwin para construir o mito fundador da cultura. Conforme podemos ler neste texto, a horda era governada por um macho despótico e todo-poderoso que possuía todas as fêmeas e expulsava os filhos na medida em que cresciam. Assim continua Freud (1913/1987, p. 170):

Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal ... O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião.

Desse rico parágrafo, muitas aberturas são possíveis. Em primeiro lugar, Freud nos alerta para a necessidade de se pensar no nascimento da cultura a partir de um ato fundador, ou seja, a partir de um acontecimento real. Em seguida, remete-nos à ideia do nascimento, dentro da cultura, de uma reunião de irmãos identificados entre si pela impotência e pelo ódio ao pai tirano. Além disso, está contida nesse trecho a confirmação da ambivalência frente ao pai primevo: pelo ódio o mataram, mas pelo amor o devoraram e o incorporaram. A questão da identificação com o pai fez-se possível pela introjeção dele como ideal. Para ampliar essa questão, citamos Enriquez (1990, p. 31) a respeito da união dos irmãos:

O desejo deles é de conjurar sua impotência e de escapar à fascinação à qual se submetem, bem como à admiração e ao temor frente ao onipotente. Ao fazerem isso, eles se identificam uns com os outros, exprimem sua solidariedade e reconhecem o vínculo libidinal que os une no ódio comum contra o pai ..., se é o ódio que transforma os seres submissos em irmãos, é seu assassinato que transforma o chefe da horda em pai.

Mas o revés desse ato memorável foi a culpa e o remorso que acometeram os irmãos a partir de então, O pai agora morto, era mais forte do que enquanto vivo. Foi, portanto, na esteira da culpa, que os irmãos fizeram do pai um mito, na medida em que ele se transformou em totem. Mas não havia só o desejo de minimizar a culpa através da mitificação. Segundo Freud (1913/1987, p.173), o desejo abarcava além da reconciliação com o pai, a busca de sua proteção.

Podiam tentar, na relação com esse pai substituto, apaziguar o causticante sentimento de culpa, provocar uma espécie de reconciliação com o pai. O sistema totêmico foi, por assim dizer, um pacto com o pai, no qual este lhes prometia tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai - proteção, cuidado e indulgência - enquanto que, por seu lado, comprometiam-se a respeitar-lhe a vida, isto é, não repetir o ato que causara a destruição do pai real.

Apreendemos também dessa obra freudiana que o vínculo social só pode se sustentar pela aliança formada entre os irmãos. O contrato selado entre eles, que impede o incesto e o parricídio, faz desses dois crimes os desejos centrais do complexo de Édipo. E mais, transformados nos dois tabus do totemismo, a renúncia a eles marcará definitivamente a possibilidade de civilização. Sobre a possibilidade da civilização a partir desse mito, Enriquez (1990, p. 31-32) assim se expressa:

Não existe jamais o pai real. O pai é sempre um pai morto, e o pai morto é sempre um pai mítico. A partir do momento em que a função paterna é reconhecida, os filhos são oprimidos. Eles estão numa posição de dependência, presos entre o desejo e a identificação. Sem a referência paterna, nenhuma cultura é concebível ... a mola da civilização é sempre de essência conflituosa.

Em Totem e tabu (1913/1987), desenha-se a origem do humano a partir do estudo do incesto e do parricídio, mas em todo o texto, o que vemos pulsando incessantemente e animando esses desejos, bem como incitando suas renúncias, é a dimensão pulsional.

No livro Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1987), Freud estabelece ao longo de todo o texto, uma relação entre o sistema totêmico, considerado como fundamento do social e por ele estudado em 1913, e a Psicologia de massa. Se nesse estudo ele prioriza os laços libidinais como sustentação das massas a partir do desamparo original, nem por isso deixa de mencionar o sentimento de hostilidade que a ambivalência dos laços sociais abriga. Assim, esse trabalho aproxima mais do que nunca a Psicologia individual e a Psicologia social, tentando demonstrar a constituição do sujeito a partir das relações com as diferentes massas das quais ele faz parte. Freud utiliza, para tanto, o conceito de identificação como o processo privilegiado para demonstrar como tais relações ocorrem.

Restringindo-nos à noção de ideal do eu apresentada nesse texto, vemos que Freud, ao tratar do processo de identificação, situa o ideal como elemento de suma importância para a compreensão dos laços entre os indivíduos de um grupo. Já no início do capítulo dedicado à identificação, Freud (1921/1987, p. 133) assim se expressa: "A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa". E um pouco mais adiante: "Podemos apenas ver que a identificação esforça-se por moldar o próprio ego de uma pessoa segundo o aspecto daquele que foi tomado como modelo" (p. 134). Com essas afirmações, Freud articula o processo de identificação com o complexo de Édipo, ressaltando seu caráter amoroso e hostil, em outras palavras, seu caráter oral de incorporação. Ao comentar o referido texto, Enriquez (1990, p. 66) adverte para o que está além dessa articulação:

Se o complexo de Édipo não é somente o complexo estrutural do indivíduo, mas também da humanidade, se a Psicologia individual é um ramo da Psicologia social, as formações coletivas só são compreendidas se associadas ao mecanismo da identificação e, em particular, a certas formas de identificação primitivas.

No que diz respeito ao laço emocional entre os indivíduos e em sua consequente submissão ao líder, Freud (1921/1987, p. 136) comenta:

Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder.

Seguindo a pista do processo de identificação como a primeira forma de laço emocional com outro sujeito, Freud usa a experiência da fascinação amorosa e da hipnose como exemplos desse processo. Postula ele que o estado vivido pelo sujeito que ama, repousa sobre o mesmo aspecto, a saber, aquele que diz respeito ao ideal do eu: "Em muitas formas de escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo para algum inatingido ideal do ego de nós mesmos" (Freud, 1921/1987, p. 143).

E adiante, sobre a hipnose: "Existe a mesma sujeição humilde, que há para com o objeto amado. Há o mesmo debilitar da iniciativa própria do sujeito; ninguém pode duvidar que o hipnotizador colocou-se no lugar do ideal do ego" (Freud, 1921/1987, p. 144-145). Freud coloca em planos similares o fascínio amoroso e a hipnose, na medida em que em ambas as experiências, estão presentes a mesma posição de humildade e porque não dizer, de humilhação do sujeito hipnotizado e/ou enamorado. Essas ideias mostram-se fecundas, na medida em que aqui se pode estabelecer uma ligação desses aspectos com outros enunciados feitos pelo autor em 1913, em seu trabalho Totem e tabu. Ao afirmar que os grupos, constituídos a partir de um ideal coletivo através do laço com o líder, não diferem em essência da ideia apresentada sobre a horda primeva, Freud (1921/1987, p. 161) aproxima essas formações:

O líder do grupo ainda é o temido pai primevo; o grupo ainda deseja ser governado pela força irrestrita e possui uma paixão extrema pela autoridade ... O pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o ego no lugar do ideal do ego."

Retornando para melhor explorar o aspecto de submissão do sujeito ao hipnotizador, e a partir da semelhança constatada por Freud entre o hipnotizador e o pai da horda, ele acrescentará algo sobre o que será incitado no sujeito: "o que é assim despertado é a ideia de uma personalidade predominante e perigosa, para com quem só é possível ter uma atitude passivo-masoquista, a quem se tem de entregar a própria vontade" (Freud, 1921/1987, p. 161).

Sobre a ideia de passividade e masoquismo sublinhada aqui, Enriquez (1990, p. 70) comenta: "Passivo-masoquista, sem dúvida, neste contexto, faz alusão à prematuridade da criança, colocando-a em condição de dependência tal, que ela deve suportar, num primeiro tempo, as situações de vida impostas pelo seu meio." É também sobre essa dimensão do poder do outro frente ao desamparo da criança que pouco adiante, o mesmo autor acrescenta: "Segue-se, então, que o dominado pode encontrar seu prazer na submissão à qual é forçado, e amar o autor de seu tormento (ainda mais que este pode, quando achar necessário, fazer o jogo da dádiva de amor)" (Enriquez, 1990, p. 71).

A esse respeito, Roudinesco e Plon (1998) ressaltam que a instalação de um mesmo objeto de amor no lugar de seu ideal do eu, constitui o eixo vertical entre os indivíduos e que a identificação recíproca entre eles, constitui o eixo horizontal:

Desconfiando da explicação através do fenômeno da sugestão, Freud evidencia, para esclarecer a transformação psíquica do indivíduo na massa, três mecanismos. A transformação, diz ele, é produto de uma limitação do narcisismo aceita por todos os membros da massa. Essa limitação resulta da instalação do líder na posição de ideal do eu de cada um dos membros da massa. O vínculo amoroso que se estabelece entre os membros desta age como uma compensação, em troca do ataque narcísico feito (p. 614).

Aqui, onde vemos limitação do narcisismo, podemos ler renúncia pulsional. Na sua esteira, vem a construção do ideal através da figura do líder e o prêmio da satisfação libidinal alcançada age como um alento para a ferida narcísica incontornável. Abrindo mão de seu ideal em prol do ideal da massa, o sujeito vive a experiência narcísica de realizar seu ideal através do objeto idealizado (o líder). A massa é, em suma, o resultado dos laços identificatórios entre os indivíduos e deixa nestes, a marca de sua força.

Em outro trabalho, publicado em 1927, O futuro de uma ilusão, Freud propõe um estudo minucioso sobre a natureza da civilização a partir das ideias religiosas ou, como salienta no texto, a partir de suas ilusões. Dois aspectos presentes na civilização são observados:

Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível (Freud, 1927/1987, p.16).

Essas condições, absolutamente dependentes entre si, regem a constituição dos vínculos sociais, pois se encontram em seu bojo, os regulamentos e as ordens que protegem a civilização de seus inimigos, os indivíduos. Pois se a civilização é aquilo que se ergue acima dos instintos antissociais, ela é fruto da renúncia do desejo destrutivo.

No entanto, Freud (1927/1987, p. 17-18) indaga nessa altura do texto: "A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação." Salienta o autor a respeito dos ideais na cultura, que estes funcionam como um norte para os indivíduos, e mais, que estes ideais se perpetuam de geração em geração. No entanto, a despeito de qualquer consolação que o indivíduo receba, seu autor nos adverte da permanência de um mal-estar que resiste. "Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar." (Freud, 1927/1987, p. 27). É a partir do desamparo, que vemos situada, neste texto, a origem das religiões:

O desamparo do homem, porém permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os temores da natureza, re-conciliar os homens com a crueldade do destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs (Freud, 1927/1987, p. 29).

Vislumbramos aqui também uma possibilidade de atrelar a essas considerações freudianas, a dimensão dos ideais. Pois se o amor pelo pai onipotente visa restituir a ilusão de uma proteção infinita, esse amor não é outra coisa senão o amor por um ideal, capaz de proteger o sujeito de seu desamparo original, capaz de compensá-lo com proteção e zelo pela sua renúncia de ser ele mesmo onipotente, ou seja, o eu ideal. Segundo Enriquez (1990, p.87):

Trata-se sempre de repor sua própria vida nas mãos de uma (ou várias) imagem investida da capacidade de onipotência (deus, ancestral, chefe guerreiro, profeta, taumaturgo), com o objetivo de assegurar, como resposta, sua benevolência, sua proteção e seu amor, ou seja, a certeza da salvação.

Poderíamos acrescentar que neste texto, Freud insinua a possibilidade de pensar uma civilização transformada, sem ilusões, uma civilização repousando sobre a reflexão científica como salvação. Ele chega a propor a ideia de que a religião, essa neurose obsessiva universal, daria lugar, no desenvolvimento da humanidade, a algo mais evoluído e portanto, libertador.

Em seu trabalho de 1930, O mal-estar na civilização, Freud demonstrará que as pulsões e os fantasmas, são na melhor das hipóteses, domesticáveis, pois, o antagonismo incontornável entre, de um lado, a vida pulsional com sua exigência de satisfação, e, de outro, a civilização com sua restrição à satisfação, é o responsável pela infelicidade humana.

Embora a ideia por ele enunciada muitos anos antes - que o eu não era senhor em sua própria casa - tenha desestabilizado qualquer ilusão de domínio sobre o si mesmo, esse estudo vem se constituir como a tese irrefutável de que, além da precariedade de qualquer domínio, no centro da civilização, no coração mesmo da cultura, está a arena onde se encontram a pulsão de morte e a pulsão de vida. Desse encontro (ou confronto) vê-se, seguindo a tese freudiana, a emergência da civilização e seu funcionamento e, no entanto e paradoxalmente, a ameaça de sua destruição.

O confronto entre a morte e a civilização é o que faz com que esta se encontre, permanentemente, ameaçada, pois, a prevalência do registro econômico da pulsão de morte, dará à atualização desta, o caráter de crueldade que pode se voltar contra a própria civilização.

Nesse trabalho, Freud nos adverte que a frustração de uma satisfação gera o desejo de agredir/ destruir o objeto que a impediu, de maneira que a não satisfação de um impulso erótico, por si só, não explicaria a agressividade, seria necessário algo mais, sendo este algo representado pela pulsão de morte que teria como alvo o objeto interditor da satisfação (Freud, 1930/1987). Assim, a exigência civilizatória em cuja máscara Freud reconhece a pulsão de morte, engendra o próprio mal-estar.

Nos capítulos iniciais desse texto, Freud invoca a tese do princípio do prazer para justificar a aspiração humana à felicidade. No entanto, é muito pouco o material que ele expõe sobre a busca e o encontro da felicidade. Freud se volta com todo o interesse para o estado de infelicidade, tentando desvendá-lo para além do princípio do prazer.

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens (Freud, 1930/1987, p. 95).

É no capítulo V que Freud explicita o movimento da pulsão de morte no social. Ao refletir sobre o mandamento da sociedade civilizada - de amar o próximo como a si mesmo - ele interpela o leitor com uma explicação desse mandamento a partir da ideia de que a civilização impõe severas condições às satisfações sexuais, e mais, que ela também deve manter a vigilância absoluta dos impulsos destruidores do homem. A esse respeito, diz Freud (1930/1987, p. 134):

A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia].

Um dos métodos utilizados na civilização para manter o contrato social entre os homens e consequentemente manter a civilização, é o impedimento da expressão da agressividade entre os membros de uma mesma comunidade, agressividade esta que será prontamente manifestada contra outros grupos. Esse projeto só pode funcionar (e funciona), na medida em que os processos identificatórios se estabelecem entre os indivíduos, já que estes gravitam em torno de um mesmo ideal. Assim, os ideais promovem uma espécie de compensação às restrições impostas pela civilização, pois além de acenar para uma promessa de realização futura, eles pacificam as tendências destrutivas existentes nas relações entre os homens.

Freud observa inclusive que, se a necessidade de inimigos remonta a um tempo primevo - lembremos aqui do mito enunciado em Totem e tabu (1913/1987) - os ideais em torno dos quais uma comunidade existe, permitem que outros sujeitos passem a funcionar como objeto de ódio e, portanto, passíveis de destruição. Além disso, os homens não necessitam apenas de inimigos, eles necessitam de líderes. Também aqui não nos esqueçamos de Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1987), pois é o líder que desempenha o papel de referência a um ideal e que, promovendo a identificação entre os indivíduos, mantém o laço social.

Enunciada não sem gerar controvérsias, a ideia da existência de uma pulsão que visa o retorno do ser vivo ao estado inorgânico, ou dito de outra maneira, que o objetivo de toda vida é a morte (Freud, 1920/1987), a tese da existência da pulsão de morte será retomada neste texto, para explicitar o maior impedimento que toda civilização enfrenta. Ao falar da pulsão de morte desvinculada de qualquer intenção sexual e aparecendo no social na forma da mais pura destrutividade, assim se expressa Freud (1930/1987, p. 144): "não podemos deixar de reconhecer que a satisfação do instinto se faz acompanhar por um grau extraordinariamente alto de função narcísica, devido ao fato de presentear o eu com a realização de antigos desejos de onipotência deste último".

Se no texto Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1987) Freud destaca a importância dos ideais, podemos vislumbrar em O mal-estar na civilização (1930/1987), a importância dada à instância superegoica, pois é o superego, mobilizador do sentimento de culpa que ajuda a manter a civilização:

O superego cultural desenvolveu seus ideais e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das relações dos seres humanos uns com os outros estão abrangidos sob o título da ética ... A ética deve, portanto ser considerada como uma tentativa terapêutica - como um esforço para alcançar, através de uma ordem do superego, algo até agora não conseguido por meio de quaisquer outras atividades culturais (p. 167).

Aqui, o superego cultural governado pelo elemento primevo do ideal (amarás ao próximo, ou seja, não matarás o próximo) e apoiado na ameaça constante da perda de amor, ordena, aguarda e, se necessário, pune. Lembrando que a agressividade do superego deriva originalmente da agressividade do eu para com o objeto, ou seja, para com o objeto que lhe impõe severas restrições às satisfações pulsionais, o eu incorpora essa autoridade que daí por diante, pode legislar desde dentro.

Em um de seus últimos trabalhos, Moisés e o monoteísmo, publicado em 1939, Freud buscou rever as questões ligadas ao anti-semitismo a partir do próprio judaísmo. A despeito de todas as questões implicadas nessa empreitada freudiana, recortaremos aqui apenas os aspectos relacionados diretamente aos ideais, na tentativa de ligá-los aos textos que o precederam nesse trabalho, pois parece haver um fio articulador entre os textos Moisés e Totem e tabu (1913/1987), Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1987) e O mal-estar na civilização (1930/1987). Trata-se precisamente de repensar o pai da horda primitiva, a figura do líder e a renúncia pulsional, temas abordados de maneira central nos textos freudianos anteriores.

Em relação ao pai da horda, veremos uma inversão, na medida em que, se o pai da horda representava a própria recusa do amor, Moisés, ao contrário,

é aquele que escolhe, que elege, que ama, que fornece as leis, que introduz os escravos no mundo da cultura ... ele é ao mesmo tempo o verdadeiro pai: aquele que fornece aos outros o sistema simbólico que os permite existir e continuar sua obra (Enriquez, 1990, p. 123).

Como o pai da horda, o destino do "grande homem" é o de ser morto. Assim, diz Freud (1939 [1934-38]/1987, p.109): "O destino trouxera o grande feito e o malfeito dos dias primevos, a morte do pai, para mais perto do povo judeu, fazendo-o repeti-lo na pessoa de Moisés, uma destacada figura paterna". O grande homem personificado em Moisés realiza a tarefa de ser tomado como chefe, como ideal do eu, e de mobilizar as manifestações de amor em toda a multidão.

Nem por um só momento nos achamos às escuras quanto a saber porque um grande homem se torna um dia importante. Sabemos que na massa humana existe uma poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante quem nos curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados (Freud, 1939 [193438]/1987, p. 131).

A sedução e o fascínio exercidos pelo líder, como foi descrito em Psicologia de grupo e a análise do ego (1921/1987), são retomados neste trabalho freudiano para demonstrar que o desejo de seduzir, a fascinação exercida e seu resultado imediato, que é o desejo de submeter-se, estão presentes também na tese apresentada sobre Moisés.

A ideia já enunciada em O futuro de uma ilusão (1927/1987) da necessidade e do anseio pelo pai e pelos deuses, é aqui retomada na figura de Moisés pelo ideal que ele encarna, ou como assinala Freud (1939 [1934-38]/1987, p.131): "Trata-se de um anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante ... quem, senão o pai, pode ter sido 'o homem grande' na infância?". Em relação à renúncia pulsional, neste texto Freud tenta explicar porque o povo judeu renunciou, mais que qualquer outro, à satisfação das pulsões. A pista a seguir é aquela que conduz à história do assassinato de Moisés. Se o povo judeu foi escolhido por Moisés, este foi morto pelo povo eleito que o instituiu como pai. Os filhos por outro lado, escolheram ser filhos deste pai. A escolha só é possível se o intelecto prevalece sobre os sentidos:

a ordem social matriarcal foi sucedida pela patriarcal... Mas esse afastamento da mãe para o pai aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre a sensualidade - isto é, para um avanço em civilização, já que a maternidade é provada pela evidência dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese, baseada numa inferência e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira, por um processo de pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou ser um passo momentoso (Freud, 1939 [1934-38]/1987, p. 136).

Conforme mostra Freud neste trabalho, aquilo que se ganha frente à renúncia pulsional, ou seja, o avanço em intelectualidade impede a volta à sensualidade, ao bezerro de ouro, à adoração das imagens, em outras palavras, a um lugar comum. À renúncia, sucede-se um ganho: ser o povo eleito. Dessa maneira, o pai garante aos filhos a proteção e o amor sempre ansiados e a confiança na lei da qual ele é representante, garante a adesão necessária dos filhos a uma religião ou a uma ideologia.

Neste texto, Freud conclui a história de Totem e tabu. Se o primeiro assassinato cria a civilização, é preciso que ele seja finalizado por um outro (ou vários) "de acordo com a lei" (só existe pai, quando morto), possibilitando o acesso à lei paterna. Deste modo, ainda que exista a repetição de um mesmo ato, não existe a repetição do idêntico, pois cada crime faz renascer um novo grupo (Enriquez, 1990, p. 132).

Após esse percurso, pensamos ser impossível encarar uma dicotomia entre ideais do indivíduo e ideais de uma cultura, pois, se aquilo que mantém o laço social, é o mesmo que mantém a unidade do sujeito, a saber, a dinâmica entre o eu ideal, os ideais e o superego, ela subsiste ruidosamente ou silenciosamente nos indivíduos e da mesma maneira na cultura. Arriscaríamos inclusive, dizer que tanto mais silencia no sujeito, mais ruído faz na cultura, sendo o contrário igualmente verdadeiro.

Se a renúncia pulsional se faz dentro de casa, ela explode na rua. Se a distância entre o eu e o ideal se insinua além do suportável, o superego virá, implacavelmente, desde o mais íntimo do sujeito ou encarnado em algum aspecto cultural, cobrar a dívida do sujeito com o risco da perda de amor. O psiquismo é o palco vivo da cultura e, para que o desejo sobreviva, é necessário encontrar o caminho dessas satisfações pulsionais de maneira que a civilização seja mantida, ainda que seja sob o rumor da pulsão de morte.

A violência que se busca combater no exterior se constitui em uma miragem necessária, em cuja servidão voluntária todo sujeito se engaja de bom grado, desde que o inimigo seja mantido fora. Al Qaeda, Hizbollah e o anti-semitismo, por exemplo, fiam-se nesse preceito. Sob esse preceito também se elegeram como a encarnação do mal os leprosos na Idade Média e os loucos que se constituíram como os inquilinos nos leprosários vazios. Nestes exemplos que revelam a força massacrante dos ideais, o que vemos é a manifestação do pulsional, que faz o homem se agarrar ao seu objeto idealizado. São incontáveis as manifestações do ódio humano e de seu poder. O poder dos ideais, porém, não lhe fica atrás.

Para finalizar, citamos Lacan (1964/1988) que tão bem enunciou essa dimensão mortífera do amor, ou precisamente, a dimensão mortífera dos ideais:

a oferenda, a deuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo a que poucos sujeitos podem deixar de sucumbir, numa captura monstruosa. A ignorância, a indiferença, para quem quer que seja capaz de dirigir para esse fenômeno, um olhar corajoso - e, ainda uma vez, há certamente poucos que não sucumbiriam à fascinação do sacrifício em si mesmo - o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro que eu chamo aqui o Deus obscuro (p. 259).

 

REFERÊNCIAS

Enriquez, E. (1990). Da horda ao estado: Psicanálise do vínculo social. (T. C. Carreteiro & J. Nasciutti, trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

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Recebido em 15/12/11
Revisto em 30/07/12
Aceito em 02/08/12

 

 

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