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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.63 no.139 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Psicologia jurídica em situações de abuso sexual: possibilidades e desafios1

 

Forensic psychology in sexual abuse situations: possibilities and challenges

 

 

Cátula PelisoliI,*; Débora Dalbosco Dell'aglioII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Faculdade Cenecista de Osório - FACOS - RS - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - RS - Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho investigou as percepções de psicólogas judiciárias sobre seu papel em situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Foram entrevistadas cinco profissionais de comarcas de diferentes municípios do Estado do Rio Grande do Sul com experiência na área. O conteúdo das entrevistas foi analisado, utilizando o software webQDA, com quatro categorias geradas a posteriori: (1) potencialidades da Psicologia; (2) dificuldades; (3) requisitos para a tarefa; e (4) tomada de decisão. Os dados demonstram que o trabalho das psicólogas judiciárias faz a intermediação entre as necessidades do judiciário e da população envolvida em situações de violência, contribuindo tanto na comprovação do fato como na proteção dos envolvidos. Para isso, as profissionais utilizam habilidades pessoais, diferentes fontes de informação, recursos teóricos e técnicos. Conclui-se destacando as possibilidades do fazer psicológico no contexto da Justiça e a importância e a necessidade de maior integração entre as áreas da Psicologia e do Direito.

Palavras chave: Abuso sexual; Psicologia jurídica; tomada de decisão; depoimento especial.


ABSTRACT

This study investigated the perceptions of forensic psychologists about their role in sexual abuse situations against children and adolescents. Five professionals with experience in this area working in different cities of Rio Grande do Sul were interviewed. The content of the interviews was analyzed with software webQDA, generating four categories: (1) the potential of Psychology; (2) difficulties; (3) requirements for the task; and (4) decision making. Data showed that the work of the psychologists reconciles the needs of the justice system with those of the population involved in violence situations, contributing to prove the fact and to protect those involved. Professionals use personal abilities, different sources of information, theoretical and technical resources for accomplishing this task. Conclusions highlight the possibilities of the psychological practice in the Justice Sistem and also the relevance and necessity of integrating Psychology and Law areas.

Key words: Sexual abuse; Forensic Psychology; decision making; special deposition.


 

 

INTRODUÇÃO

O reconhecimento do abuso sexual como um fenômeno complexo, que envolve e afeta o indivíduo, a família e a sociedade, implica na necessidade de reflexões e intervenções interdisciplinares (Neves, Castro, Hayeck & Cury, 2010). Somente por meio de um conjunto articulado de ações de enfrentamento é que a proteção integral de crianças e adolescentes, conforme promulgada na década de 90 no Estatuto da Criança e do Adolescente, será efetivamente garantida (Brasil, 1990; Brasil, 2002). As ações estabelecidas pelo Governo Federal que procuram enfrentar o problema envolvem a pesquisa científica, atendimento especializado, prevenção e o fortalecimento do sistema de defesa, de responsabilização e do protagonismo infanto-juvenil (Brasil, 2002). A Psicologia pode ter seu papel em todas essas ações, seja nas práticas de pesquisa, na avaliação ou na intervenção propriamente dita. Especificamente no contexto jurídico, uma das atuações possíveis dos psicólogos é no sentido de assessorar os magistrados ao fornecerem informações que subsidiam suas decisões (Costa, Penso, Legnani & Sudbrack, 2009).

No contexto jurídico, e em qualquer outro, é fundamental que o psicólogo possa reconhecer com clareza o seu papel, sua atribuição e as contribuições que pode conferir ao caso que lhe foi encaminhado (Brito, 2012). No entanto, este campo de trabalho nem sempre está claro, mesmo para profissionais da área, especialmente em função das diferentes atividades que pode executar um psicólogo atuando na interface Psicologia e Direito (Brigham, 1999). Lago e Bandeira (2009) afirmam que falta aos psicólogos formação para a atuação na área jurídica, uma vez que os currículos dos cursos de Psicologia no Brasil não oferecem de forma regular essa disciplina, fazendo com que muitos bus-quem formação complementar após a finalização da graduação, por sentirem necessidade de maior conhecimento sobre a área.

Desde o século XVIII, autores discutem a necessidade e a relevância de conhecimentos sobre a Psicologia para a Justiça, especialmente no sentido de fornecer um parecer técnico (pericial) que fundamente as decisões judiciais (Costa, Penso et al., 2009). Casos de alegação de insanidade do réu em crimes ocorridos a partir de 1800 desencadearam a percepção de que a Psicologia poderia ter uma função relevante junto à Justiça (Brigham, 1999). Em seu início, portanto, o Direito se valeu da Psicologia para buscar descrições sobre o comportamento humano. Posteriormente, esta interface foi tendo maior abrangência e a elaboração de laudos nas Varas Cíveis, Criminais, Justiça do Trabalho, da Família e da Criança e do Adolescente passou a ser a tarefa tradicional dos psicólogos judiciários. O foco em avaliações foi e continua sendo a principal atuação profissional em Psicologia Jurídica (Adams, 2002) e os psicólogos têm estado cada vez mais envolvidos em processos de tomada de decisão em relação aos casos (Otto & Heilbrun, 2002).

No Poder Judiciário, os psicólogos podem ter atuações diferentes, contribuindo para a tomada de decisão sobre os casos. Duas atuações são destacadas na literatura com relação às situações de violência sexual contra crianças e adolescentes: a avaliação psicológica propriamente dita e o auxílio à tomada de depoimento de crianças vítimas. Na primeira, duas perspectivas diferentes são observadas na literatura brasileira sobre o tema: uma que nomeia a avaliação no contexto jurídico como "perícia" (Dal Pizzol, 2009), assim como os próprios operadores do Direito e a legislação brasileira (Brasil, 1973), e outra perspectiva que nomeia essa avaliação como "estudo psicossocial" (Costa, Legnani et al., 2009; Ribeiro, Costa, Penso, Almeida & Nogueira, 2010; Costa, Legnani e Zuim., 2009). Por sua vez, o auxílio do psicólogo à tomada de depoimento foi denominado inicialmente "Depoimento Sem Dano" e atualmente tem sido chamado "Depoimento Especial" (Daltoé César, 2007; Conselho Nacional de Justiça, 2010). Juridicamente, fala-se que a avaliação psicológica seria uma prova pericial, que pode se valer de diferentes instrumentos, enquanto o depoimento especial seria uma prova testemunhal, em que a própria vítima testemunha em audiência (Dal Pizzol, 2009).

No que se refere à avaliação psicológica no contexto judiciário, pode-se perceber que a perícia psicológica tem sido bastante requisitada pelos operadores jurídicos (Gava, Pelisoli & Dell'Aglio, 2013). Ela é considerada um meio de prova e objetiva obter dados sobre a ocorrência de um fato, dar materialidade a um crime e/ou comprovar a existência de um fato delituoso, utilizando para isso meios técnicos (Taborda, 2004). Em se tratando de uma perícia psíquica ou psicológica, o instrumental técnico é aquele específico dessa área de conhecimento (Gava et al., 2013). Por meio de técnicas e instrumentos da Psicologia, a perícia psíquica buscará contribuir para a comprovação ou não de um fato de interesse da Justiça, com objetivo investigativo e diagnóstico, e servirá como prova para subsidiar decisões. Nesse sentido, ela não se presta a intervir na realidade, porém o profissional tem liberdade para indicar intervenções necessárias em seu laudo (Dal Pizzol, 2009). A avaliação do dano psíquico e da credibilidade do relato da vítima tem sido debatida por autores que estudam a perícia psicológica e as maneiras de qualificar esse trabalho (Gava et al., 2013).

A avaliação psicológica nesse contexto também pode ter, como anteriormente citado, a denominação de "estudo psicossocial". Essa perspectiva entende que a "perícia" propriamente dita seria limitadora do papel do psicólogo, uma vez que não incluiria uma "escuta do outro" (Costa, Legnani et al., 2009). Por sua vez, o "estudo psicossocial" a incluiria. Além disso, esse estudo é considerado compreensivo, com foco na perspectiva social, sem enfatizar a psicopatologia. Para as autoras, este trabalho possibilita mais do que a avaliação da situação, mas também uma intervenção na medida em que pode propiciar a ressignificação dos direitos dos envolvidos e a busca de suas emancipações (Costa, Legnani et al., 2009). O papel da Psicologia na Justiça, de acordo com essa perspectiva, não precisa ser limitado à realização de perícias, mas deve ser também um espaço de escuta e um trabalho integrado com aqueles que atendem o caso após a avaliação forense (Ribeiro, et al., 2010). O momento do estudo psicossocial também é uma oportunidade para que a família encontre o sentido de seus conflitos e para que a Justiça possa contribuir na ressignificação dos afetos e emoções desses personagens a partir da construção de um espaço conversacional (Costa, Legnani et al., 2009). A equipe interdisciplinar que realiza o estudo psicossocial pode encaminhar os envolvidos para o atendimento a partir da percepção dessa necessidade (Costa, Almeida, et al., 2009).

Dessa forma, em relação a essas duas diferentes perspectivas, temos que ambas utilizam meios técnicos da Psicologia e produzem prova sobre determinado fato. Entretanto, a denominação "perícia" apresenta um foco investigativo e com um diagnóstico de necessidade de intervenção, quando for o caso. Por outro lado, o "estudo psicossocial" enfatiza a intervenção e a tarefa de escuta, para além do objetivo diagnóstico. Ainda que compreendidas tecnicamente como diferentes por profissionais da Psicologia, são vistas da mesma forma pelos profissionais do Direito, que as percebem como provas periciais.

Por sua vez, a prova testemunhal no contexto da violência sexual contra crianças e adolescentes tem se dado principalmente a partir do Depoimento Especial - DE. Primeiramente denominado Depoimento Sem Dano, o DE, segundo Daltoé César, (2007), é um método de tomada de depoimentos, que visa proteger a vítima, colocando-a em um contexto protegido, onde será entrevistada por profissional capacitado. Os objetivos do DE são: (a) a redução do dano à criança e ao adolescente vítima; (b) a garantia dos direitos, proteção e prevenção; e (c) melhoria da produção da prova produzida. Essa experiência foi iniciada no Brasil na Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre - Rio Grande do Sul, em 2003, e atualmente é uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (Conselho Nacional de Justiça, 2010). O psicólogo tem sido um dos principais profissionais a entrevistarem crianças no DE. Por sua capacitação em entrevista e por seu conhecimento em temas como o desenvolvimento humano e a própria violência, os psicólogos são percebidos como profissionais que podem contribuir para a Justiça, por meio deste procedimento.

Coimbra (2004) afirma que a intervenção da equipe interdisciplinar na cena jurídica não deve ser limitada à produção de prova. Essa é apenas uma forma de atuação do psicólogo jurídico, mas não é a única. Sua atuação pode incluir orientações e acompanhamentos, colaborações para políticas preventivas, entre outros (França, 2004). Na Classificação Brasileira de Ocupações - CBO, a profissão de psicólogo jurídico inclui avaliação de comportamentos, orientação e acompanhamento de indivíduos, grupos e instituições, atividades de educação (aulas, supervisão), pesquisa, coordenação de equipes e realização de tarefas administrativas (Rovinski, 2009). Atualmente, o estabelecimento de organizações relacionadas à Psicologia Jurídica, a publicação de artigos, livros e guidelines específicos, bem como o desenvolvimento de instrumentos e a oferta de cursos e programas de aperfeiçoamento demonstram o crescimento da área e o interesse que tem despertado (Otto & Heilbrun, 2002).

Segundo Costa, Penso et al. (2009), é preciso criar metodologias inovadoras para se trabalhar na Justiça e para isso o psicólogo deve conseguir desvencilhar-se da perspectiva clínica, ao mesmo tempo em que realiza avaliação psicológica. A violência sofrida deve ser reparada e às vítimas devem ter garantidos os seus direitos e devem ter acesso a possibilidades de reestruturação de seu sofrimento e sua subjetividade (Costa, Penso, Almeida e Ribeiro, 2008). Além disso, é necessário que exista comunicação entre aqueles profissionais que atuam em setores psicossociais com a avaliação dos casos com aqueles que irão atender e acompanhar as famílias e vítimas após a avaliação (Ribeiro et al., 2010). Há ainda a necessidade de empenho no que diz respeito à prevenção da violência e de medidas de apoio a famílias, uma vez que os acompanhamentos das famílias e dos abusadores ainda não são contemplados pelo sistema. A partir disso, ficam evidentes as demandas que o Direito tem oferecido à Psicologia (Brito, 2012) e, consequentemente, as necessidades do sistema de Justiça para responder a essas demandas de forma ética e responsável. Considerando as diferentes perspectivas sobre o papel da Psicologia na Justiça e as várias necessidades apontadas pelos autores, o objetivo deste trabalho foi investigar as percepções de psicólogas judiciárias sobre seu papel em casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, sobre que habilidades são necessárias para o trabalho e que elementos influenciam suas decisões sobre os casos.

 

MÉTODO

Delineamento

Este é um estudo transversal qualitativo, fundamentado na metodologia de estudo de caso coletivo (Stake, 1994). Este trabalho faz parte de um estudo maior que busca verificar as possibilidades e limites da Psicologia atuando dentro do Poder Judiciário, incluindo a questão do Depoimento Especial, que será abordada diretamente em outro artigo, mas apenas citada em pontos específicos deste. Para esse artigo, foram analisadas as percepções de psicólogas jurídicas acerca das contribuições da Psicologia para a Justiça nos casos de abuso sexual.

Participantes

Foram entrevistadas cinco psicólogas jurídicas concursadas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, vinculadas à área da Infância e Juventude de cinco municípios do Estado do Rio Grande do Sul. Todas as participantes apresentavam experiência de mais de 15 anos de trabalho em casos de abuso sexual, além de cursos de pós-graduação em áreas de interface com estas práticas. Os municípios foram selecionados em razão de serem os únicos cinco em todo o Estado, no ano de 2012, que contavam com psicólogos concursados em seu quadro funcional no Poder Judiciário atuando em salas de Depoimento Especial - DE. Para a obtenção dessa informação inicial sobre a quantidade de salas e de psicólogos atuantes, contatou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. A partir de uma planilha em que constavam os municípios e respectivos profissionais que atuavam no DE (psicólogos e assistentes sociais), iniciaram-se os contatos e convites para a participação no estudo.

Instrumento

Um roteiro de entrevista semiestruturada, elaborado para este estudo (Anexo 1), foi utilizado para a obtenção dos dados. A entrevista investiga o papel da Psicologia em situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes, as habilidades necessárias para este trabalho e elementos que influenciam as decisões sobre os casos.

Procedimento e considerações éticas

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob o protocolo de número 20698. Os contatos com os Foros de cada município foram realizados por meio de e-mails ou ligações telefônicas direcionadas diretamente a cada uma das psicólogas jurídicas. Todas as participantes aceitaram prontamente a participação na pesquisa, tendo assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Conselho Nacional de Saúde, 1996). A duração das entrevistas foi de 40 minutos, em média. Os dados foram armazenados em arquivos digitais e transcritos pela equipe de pesquisa para a análise qualitativa. Foi utilizado o webQDA, software destinado à análise de dados qualitativos, que possui mecanismos de armazenamento, pesquisa e recuperação de dados (Souza, Costa e Moreira, 2011). O webQDA permite a visualização e discussão do projeto de pesquisa e da categorização por pesquisador e orientador através do acesso simultâneo, possibilitando uma análise interativa e uma construção colaborativa do conhecimento e, especialmente, a validação dos processos de categorização (Souza et al., 2011). As categorias foram levantadas a posteriori, por meio de uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto. As categorias foram geradas a partir dos princípios de exclusão mútua (cada elemento não deve existir em mais de uma divisão), homogeneidade (deve haver apenas um princípio de organização), pertinência (adequação ao material de análise), objetividade, fidelidade (ambas dizem respeito às diferentes partes do material serem codificadas da mesma maneira) e produtividade (deve fornecer resultados favoráveis) (Bardin, 1977). No sentido de garantir o anonimato dos participantes, os municípios e os participantes não serão identificados, uma vez que estes profissionais exercem funções específicas e únicas nestas localidades.

 

RESULTADOS

O conteúdo das entrevistas produziu quatro categorias de análise: (1) Potencialidades; (2) Dificuldades; (3) Necessidades; e (4) Tomada de decisão.

Potencialidades

Nesta categoria, foram agrupadas as concepções acerca das potencialidades do trabalho do psicólogo, ou seja, fatores que tornam a prática profissional qualificada e eficiente no contexto jurídico. De acordo com as opiniões das participantes, as potencialidades do trabalho da Psicologia em casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes situam-se na esfera do conhecimento teórico/ técnico, auxílio ao judiciário e proteção à vítima e familiares.

Conhecimento teórico/técnico

As pesquisas produzidas no campo da Psicologia foram indicadas pelas participantes como importantes fontes de apoio para suas práticas em situações de abuso sexual dentro do Poder Judiciário:

"Uma fundamentação teórica, né, eu acho que isso sempre ajuda bastante, porque tu não estás tirando da tua cabeça, eles estão vendo que tem uma argumentação teórica, existe a bibliografia para isso, os estudos mostram né, então acho que isso é uma coisa que ajuda muito".

A produção bibliográfica (livros e artigos) contribui para a fundamentação dos achados de cada caso e possibilita que as avaliações não pareçam subjetivas ou pessoais, mas inseridas em um corpo de conhecimentos que está continuamente se atualizando:

"Acho que existem mais estudos a respeito, né, acho que aumentaram bastante, né, os estudos, as pesquisas ... as pessoas escreveram suas experiências. Eu acho que isso só vem contribuindo para que quem está na prática possa utilizar esse material, e tentar conduzir de uma forma diferente."

Foram destacados os estudos sobre memória e sobre protocolos de entrevista, citados como sendo recursos valiosos, que trouxeram benefícios diretos para suas práticas enquanto psicólogas judiciárias.

Auxílio ao judiciário

As participantes entendem que, a partir de seu trabalho na avaliação psicológica e no Depoimento Especial, podem fornecer subsídios importantes para o juiz, embasando uma tomada de decisão. Como mais uma prova dentro de um conjunto, tanto a avaliação (perícia ou estudo psicossocial) como o depoimento da vítima (colhido no Depoimento Especial) contribuem para dar elementos de convicção para o juiz:

"O meu trabalho é auxiliar nesse sentido, de dar elementos de convicção para ele e se há indicativos ou não há indicativos de isso ter ou não ocorrido".

Para as participantes, seu trabalho é valorizado pelos operadores judiciários e estes, na maioria dos casos, acabam decidindo na mesma direção da avaliação presente no laudo psicológico, que sintetiza os elementos da avaliação realizada (na perícia ou estudo psicossocial). É importante considerar que nenhuma das psicólogas compreende que a tomada de decisão judicial nestes casos seja colocada sob sua responsabilidade. As participantes entendem que este papel é do juiz, mas que o subsídio em termos de avaliação psicológica é necessário e relevante.

"No meu entendimento é algo bastante respeitado e que eles levam muito em consideração o que está sendo descrito ali no laudo psicológico ... eu acho que é de muita ajuda para o magistrado ... o operador do direito para chegar ao entendimento, se de fato ocorreu ou não aquela situação, eu acho que é bastante valorizado o nosso papel enquanto psicólogo".

Proteção e acolhimento

A possibilidade de proteção tanto à criança quanto à família também foi um aspecto compreendido como potencialidade da Psicologia dentro do Poder Judiciário. Proteger a criança por meio do DE, realizar um acolhimento e verificar a necessidade de encaminhamento para serviços da rede de saúde foram aspectos mencionados pelas participantes que privilegiam a questão protetiva. A união entre uma necessidade do Direito e um papel de proteção é destacada na afirmação dessa participante:

"Eu acho que o trabalho da Psicologia é que, com todo conhecimento e com toda a técnica, tu consegues ter uma intervenção com a criança na qual tu consegues obter esses dados de uma forma que não seja abusiva, que não cause mais dano ainda para a criança".

Dificuldades

Nesta categoria estão descritas as dificuldades percebidas pelas participantes, na sua atuação em situações de abuso sexual, destacaram-se a impossibilidade de elaborar conclusões em alguns casos e a dificuldade para desenvolver pesquisas.

Impossibilidade de concluir

Relatam as participantes que, em seu trabalho, tendem a apresentar os resultados de avaliações psicológicas em casos de abuso sexual em termos de ausência ou presença de indicadores. Esses indicadores seriam sinais e sintomas que podem (ou não) estar associados à ocorrência do fato, mostrando, portanto, a possibilidade de a criança/adolescente ter sido (ou não) de fato vítima de abuso sexual. Entretanto, em muitos casos, a apresentação dos indicadores não determina uma direção clara aos operadores quanto à verdade factual sobre a ocorrência ou não do abuso. Essa dificuldade está associada ao que uma das entrevistadas relata como o "estereótipo da bola de cristal". Segundo o relato, os operadores agem e questionam o psicólogo como se este tivesse uma bola de cristal e que saberia, portanto, responder a todos os questionamentos: "tudo o que não se resolveu com outros técnicos, se procura resolver com a Psicologia". Segundo ela, os psicólogos devem estar atentos para não reforçarem a ideia de que podem responder a tudo, mostrando claramente as possibilidades e limites da Psicologia aos operadores com quem trabalham:

‘'Tenho várias possibilidades, mas bola de cristal não''. Então às vezes, alguma situação fica sim inconclusiva, não é? Há indicativos ... sempre há indicativos ... mas daqui a pouco pode ser que esses mesmos indicativos sirvam para uma outra situação, né".

Dificuldade para desenvolver pesquisas

Com muita carga de trabalho, as psicólogas relatam a dificuldade de desenvolver estudos científicos dentro do contexto judiciário: "a gente não tem, às vezes, tempo de poder pensar e poder fazer algum trabalho teórico em cima". Suas agendas de trabalho estão completamente ocupadas com avaliações, não somente de casos de abuso sexual, mas dos inúmeros casos encaminhados pelos operadores da Justiça. As participantes ressaltam a importância da presença das universidades neste contexto, contribuindo com estudantes de pós-graduação e projetos de pesquisa, que envolvam os temas da Psicologia Judiciária. A riqueza da atuação em Psicologia Judiciária seria um excelente campo de estudos e as psicólogas judiciárias poderiam reunir pesquisa e prática, contribuindo para o desenvolvimento e para a disseminação do conhecimento dessa área. No entanto, para que isso fosse alcançado seria necessário um número maior de profissionais na área, tendo em vista a grande demanda relatada pelas participantes.

 

NECESSIDADES DO TRABALHO COM ABUSO SEXUAL INFANTIL

Partindo do fato de que a Justiça necessita de informações para melhor julgar os casos, as psicólogas judiciárias entendem que, obter dados minimizando prejuízos para a vítima, é uma possibilidade da categoria. Para executar esta tarefa, as participantes relataram que trabalhar na Justiça requer, além de recursos técnicos (instrumentos e conhecimento), habilidades pessoais, uma vez que os casos são geralmente caracterizados por intenso sofrimento humano. Elas relatam necessitar, ainda, de condições de trabalho caracterizadas por autonomia e isenção.

Habilidades técnicas

As possibilidades técnicas da Psicologia foram compreendidas como forças da área no trabalho com estes casos. Destaca-se, aqui, o conhecimento formal, que é objetivo dos cursos de graduação ou pós-graduação, envolvendo teorias e técnicas de avaliação e intervenção. As participantes citaram diferentes recursos, como técnicas lúdicas (dramatização e hora do jogo) e gráficas (House-Tree-Person), observação de comportamento (da criança e da família), análise da dinâmica familiar, visitas domiciliares e entrevista, com destaque para os protocolos de entrevista cognitiva.

As participantes relataram que, para trabalhar com situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes, precisam se apropriar deste aparato técnico e científico que possa lhes garantir mais segurança e propriedade em casos tão complexos. As psicólogas indicaram a importância da constante atualização e aperfeiçoamento do profissional, com busca de referencial teórico, uso de todos os recursos disponíveis e, especialmente, a busca da interdisciplinaridade. Além dos conhecimentos sobre desenvolvimento humano, Psicologia jurídica, Psicologia Clínica, dinâmica familiar, dinâmica do abuso, os psicólogos que trabalham nesta área precisam contextualizar a situação, pensar na possibilidade de que o abuso possa não ter ocorrido e buscar questionar e problematizar o caso.

Habilidades pessoais

As participantes citaram a importância de aspectos que não são formalmente aprendidos, mas fazem parte do perfil do psicólogo, tais como habilidades e competências que são desenvolvidas ao longo da formação: preparo para ouvir, acolher, aconchegar e manejar afetivamente a criança/adolescente. A capacidade de estabelecer uma relação de confiança e respeito entre o profissional e a criança também foi abordado. As participantes relatam que é necessário estabelecer um bom vínculo com a vítima e com a família para que as possibilidades protetivas possam ocorrer: "não adianta tu só teres técnica". A disponibilidade para este vínculo é, portanto, uma condição para um trabalho que pretende garantir a preservação dos direitos humanos, particularmente, quando envolve crianças e adolescentes vítimas. O fato de conhecer e saber lidar com a "dor humana" foi também considerado uma habilidade não técnica que faz a diferença e é essencial neste trabalho, no qual situações de extremo sofrimento estão presentes. Para isso, "equilíbrio e serenidade" foram habilidades afetivas citadas como essenciais para a atuação nestes casos.

Condições de trabalho

As participantes relataram que, para executar seu trabalho, elas necessitam de autonomia para utilizar as técnicas que julgarem mais adequadas, da maneira como decidirem e quantas vezes acharem necessário. Ainda que, muitas vezes, os prazos dos processos judiciais façam com que a demanda tenha tempo determinado para ser atendida, elas relatam conseguir negociar prazos e estabelecer seu próprio processo de trabalho. Outro aspecto que consideram positivo na função de psicólogas judiciárias é o fato de serem isentas e imparciais. A avaliação do caso realizada pelas psicólogas judiciárias caracteriza-se pela possibilidade de verificar a situação de forma imparcial, não tendo a obrigação de advogar, previamente, em favor da vítima ou do abusador. Isso significa que elas não se colocam previamente favoráveis a uma das partes do processo, mas podem investigar, em termos psicológicos, as situações, de forma completa e imparcial.

"Sinto-me bem confortável, porque eu não tenho a preocupação com uma parte ou outra, como eles chamam. Eu não gosto muito desse termo "parte"... Eu sempre coloco para os pais: Olha, a situação é essa, mas a minha preocupação é com a criança".

Tomada de decisão

Nesta categoria foram incluídas as ideias apresentadas pelas participantes sobre como tomam suas decisões em relação aos casos avaliados. A tomada de decisão judicial é aquela que envolve o poder do Estado na regulação da vida social. Ela afeta as pessoas e a sociedade e parte da figura do juiz de Direito. Entretanto, para que este personagem jurídico tome sua decisão e execute seu papel de forma mais adequada, necessita da contribuição, em muitos casos, de outras áreas para formar seu convencimento. Nas situações de abuso sexual, o psicólogo tem um papel importante na medida em que o crime ocorre, na maioria das vezes, sem deixar evidências físicas e/ou testemunhas oculares. Assim, a tomada de decisão das psicólogas se refere a entender, a partir dos indícios e observações, se o abuso sexual ocorreu ou não ocorreu, e dessa forma, fundamentar sua avaliação. Segundo as psicólogas judiciárias entrevistadas, os elementos analisados para que tomem suas decisões, quanto a definir se há ou não evidências do abuso, incluem os documentos do processo, os recursos técnicos e a avaliação da dinâmica do caso.

Documentos do processo

As psicólogas relataram que a leitura de documentos do processo antecede as suas avaliações. "Quando a pessoa chega, ela vem cheia de provas e tu tens que examinar todo o processo, ler a denúncia..." Entretanto, não foi dada ênfase ao papel destes documentos do processo em sua tomada de decisão, demonstrando que esses apresentam relevância, mas não de uma maneira determinante para que as profissionais formulem uma compreensão satisfatória das situações de abuso sexual. Entende-se aqui por documentos do processo, boletins de ocorrência, documentos do Conselho Tutelar, entre outros.

Recursos técnicos

As participantes indicaram que os instrumentos técnicos utilizados nas avaliações contribuem para que elas tomem uma decisão quanto a considerar, se um caso de abuso sexual verdadeiramente ocorreu ou não, incluindo aqui testes psicológicos, entrevistas, observações, dinâmicas, etc. Cada aspecto avaliado, com o uso dos recursos técnicos, tem papel importante no seu convencimento sobre a ocorrência ou não da situação abusiva:

"Através da avaliação, dos instrumentos que usamos, testes ou entrevistas clínicas ou ludoterapia, nós vamos ver se há esses indicativos. Por exemplo, todos aqueles elementos que traz a literatura, a gente vai se basear por aqueles indícios ali, se a criança está com dificuldades na escola, uma conduta inadequada em termos sexuais, então, uma série de elementos, claro, também a oitiva dela confirmando ou não ... então, uma série de elementos que vai dar ao profissional essa indicação de que tenha ocorrido ou não."

Avaliação da dinâmica dos casos

O relato da vítima tem papel crucial, na percepção das participantes do estudo, na decisão sobre o caso. A coerência do relato é especialmente observada, tendo em vista que, quando integrada à história da criança/adolescente e aos possíveis sintomas apresentados, bem como ao histórico e contexto familiar, pode fundamentar suas decisões (não judiciais).

"Tem situações em que tu observas dúvidas, muitas vezes, da mãe em relação ao que a criança está dizendo ... a postura, que essa mãe tem de acordo com o que essa criança mostra, está falando, a falta de reconhecimento talvez de mudanças, de alterações no filho (pausa), a relação de intimidade, né, da mãe com esse filho ... até que ponto consegue conversar a respeito de outros assuntos, né, que pudessem ajudar numa situação como essa, uma criança que pudesse falar, pudesse dizer." Assim, no relato das participantes foi observada a importância de uma avaliação mais abrangente, que considere de forma dinâmica todas as informações coletadas, dando especial ênfase às características do relato da vítima.

 

DISCUSSÃO

Este trabalho abordou potencialidades, dificuldades e necessidades da Psicologia na avaliação de casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes no contexto judiciário, bem como os elementos que influenciam a tomada de decisões por psicólogos nestes casos. As participantes, psicólogas judiciárias com vasta experiência na área, indicaram que a Psicologia contribui com seu aparato teórico e técnico para auxiliar o Judiciário, ao mesmo tempo em que protege vítimas e familiares. Demonstram, portanto, que estão atuando não somente em direção à comprovação do fato e ao envio de informações para os operadores jurídicos, mas atuam também na tentativa de propiciar um acolhimento às vítimas e familiares. Diferentemente da perspectiva apontada na literatura de que os psicólogos apresentam posicionamentos variados em relação ao papel da Psicologia Jurídica (Brigham, 1999), as participantes deste estudo foram unânimes na opinião de que sua atuação contribui tanto para a Justiça quanto para a sociedade, numa perspectiva de intermediação, sempre baseados nos fundamentos teórico-técnicos da Psicologia e pela prioridade do cuidado com a criança e com a família.

Dessa forma, no contexto jurídico, caracteristicamente racional e objetivo, a Psicologia pode fazer a diferença intermediando as necessidades do Poder Judiciário e as necessidades de seus usuários, humanizando o sistema de Justiça. Os operadores da lei buscam a verdade real/material/histórica dos fatos (Guedes, 2012; Oliveira, 2009) e, por tal motivo, há, no Poder Judiciário, a necessidade de esclarecimento dos fatos alegados nos processos e o consequente direcionamento do sistema de Justiça para a punição, mais do que para a qualidade de vida dos sujeitos envolvidos (Cesca, 2004). Segundo Brigham (1999), os juízes não valorizam respostas, que não sejam conclusivas ou que sejam vagas e evasivas. Entretanto, a perspectiva da proteção, que está evidente na busca contínua do auxílio de psicólogos, está ocupando um espaço cada vez maior na preocupação de operadores do Direito.

Essa dupla demanda faz com que os psicólogos percebam que para o trabalho com situações de abuso sexual no contexto judiciário são necessárias diferentes habilidades e circunstâncias. O conhecimento de teorias e técnicas, como os instrumentos psicológicos, que lhes são de uso exclusivo, possibilitam que essas profissionais deem uma contribuição específica a respeito destes casos para a Justiça. Os conhecimentos produzidos pela pesquisa dão sustentação empírica para seus achados, dando maior credibilidade ao trabalho produzido. Dessa forma, conhecimentos e técnicas contribuem para a busca de informações, que são compartilhadas com os operadores do Direito para uma tomada de decisão mais adequada. Apesar de a literatura indicar lacunas na formação em Psicologia Jurídica (Lago & Bandeira, 2009), as psicólogas judiciárias, participantes deste estudo, informaram que é possível um desenvolvimento teórico e técnico a partir de formações complementares e também da experiência prática.

Entretanto, para além das teorias e técnicas, as psicólogas participantes deste estudo indicaram que, para a atuação nestes casos, há a necessidade de os profissionais apresentarem certas características pessoais para o acolhimento da vítima e dos envolvidos. A população vítima necessita de atendimento qualificado e sensível em situações difíceis, tais como, o abuso sexual, e a Psicologia pode contribuir significativamente neste aspecto. Ao demandar habilidades de cunho afetivo e pessoal, o equilíbrio emocional, para lidar com emoções negativas e situações que envolvem intensos sentimentos e conflitos familiares, é um atributo necessário para os profissionais que trabalham ou pretendem trabalhar com casos de abuso sexual. Sendo este um fenômeno emocionalmente carregado, dificilmente é possível que um profissional oriente suas ações essencialmente por questões de ordem racional (Finnilä-Tuohimaa, Santtila, Sainio, Niemi & Sandnabba, 2005). Os profissionais podem sentir angústia e sofrimento diante dos casos, mas podem também se motivar para a busca de soluções e para a necessidade de proteção e atenção à vítima. Reconhecer, portanto, os sentimentos que surgem nesse processo faz parte da ética do profissional e demonstra que este profissional tem respeito pelo outro (Ribeiro & Costa, 2007).

Ainda na perspectiva do que se faz necessário para a atuação do psicólogo, as circunstâncias em que o trabalho se desenvolve devem ser marcadas pela isonomia. Neste estudo, as psicólogas judiciárias informaram que conseguem administrar prazos e ter autonomia em seu trabalho diário, fazendo o que é sugerido na literatura: manter uma postura de avaliadoras, ser imparcial e pensar sempre na possibilidade de múltiplas hipóteses para o caso (Kuehnle, 1998). Nessa interface, o psicólogo judiciário deve ter autonomia e imparcialidade, pois ele não é, nem deve ser, representante da vítima ou do acusado. Ele deve ser imparcial e seu trabalho ocorre na tentativa de preservar a todos, especialmente as crianças e adolescentes, tendo em vista sua peculiar condição de desenvolvimento. O psicólogo que, atuando como perito, advoga em favor de uma das partes, pode estar ferindo princípios éticos da profissão e violando as recomendações da Psicologia Jurídica (Kuehnle, 1998).

Com essas potencialidades (conhecimento teórico-técnico, auxílio ao judiciário e proteção a vítimas e familiares) e tendo os atributos pessoais/profissionais necessários às necessidades para o trabalho garantidas (habilidades técnicas, habilidades pessoais e condições de trabalho), as possibilidades para uma contribuição consistente da Psicologia para a sociedade são expandidas. A principal colaboração do psicólogo judiciário passa necessariamente por uma decisão tomada por este a respeito do próprio caso de abuso sexual, uma decisão que reflete as hipóteses levantadas pelo psicólogo a partir de seus instrumentos. As participantes deste estudo, para tomarem suas decisões sobre os casos, fazem uso de diferentes fontes de informação. Demonstrando comprometimento com o trabalho realizado, as psicólogas judiciárias informaram que a investigação dessas situações deve ser realizada cuidadosamente e envolver desde os documentos do processo, passando pelos instrumentos psicológicos até a realização de uma avaliação da dinâmica dos casos, utilizando todos os recursos que estiverem à disposição. A partir da exploração de todos os recursos possíveis é que se conseguirá elaborar uma compreensão mais completa do caso, possibilitando uma tomada de decisão em relação ao fato alegado (o abuso sexual). A produção de documento decorrente dessa avaliação e a anexação ao processo procurarão atender as demandas do Judiciário por respostas da Psicologia, influenciando, mais tarde, as decisões proferidas pelos operadores do Direito. Cabe retomar que, especialmente quando se trata de processos envolvendo crianças e adolescentes, os documentos produzidos pelos psicólogos, como os laudos, são considerados importantes fontes de informação (Coimbra, 2004).

Entretanto, conforme as participantes deste estudo, a Psicologia não pode assumir a responsabilidade de resolver todas as demandas existentes nessas circunstâncias. A Psicologia não pode resolver tudo e dar respostas a todas as questões, não tem "bola de cristal" - é uma ciência e uma profissão que, por um lado, tem métodos, instrumentos, teorias e possibilidades, mas, por outro lado, tem limites e dificuldades. As limitações da própria Psicologia e a complexidade do abuso sexual fazem com que muitas perguntas fiquem sem respostas. Em muitos casos, não há como dizer, se determinados sinais, sintomas e comportamentos indicam ou não a vitimização. A literatura demonstra que não existe uma síndrome específica e mesmo um comportamento hipersexualizado pode não ser indicativo deste maltrato (Beltran & Marin, 2012; Echeburúa & Subijana, 2008). Dessa forma, a tarefa de avaliação dos casos de abuso sexual tem limitações, que são inerentes às próprias características e dinâmica dessa violência. Além dos limites impostos pelas características da própria violência, a Psicologia é uma ciência e deve se ater aos dados levantados no decorrer do processo avaliativo e aos conhecimentos acumulados por essa ciência.

Esses limites e possibilidades podem, entretanto, ser melhor conhecidos por todos os que trabalham nessa área, sejam operadores do Direito ou psicólogos. Com uma maior aproximação entre esses saberes é que será possível a compreensão dos papéis, dificuldades e potencialidades de cada um. Ao compreender mais sobre a Psicologia, os operadores certamente terão mais facilidade em entender a necessidade de prazos diferentes nos casos mais difíceis e a importância de condições de trabalho caracterizadas por autonomia e isenção, bem como a impossibilidade de apresentar conclusões em alguns casos, conforme indicado pelas participantes. Existem diferenças cruciais entre essas duas áreas que não são facilmente resolvidas. A Psicologia tende a ser criativa, empírica, experimental, guiada por teorias, descritiva e acadêmica; enquanto o Direito é mais conservador, autoritário, adversarial, prescritivo, guiado pela especificidade do caso e reativo (Brigham, 1999). Essas importantes diferenças são percalços para o entendimento mútuo e o trabalho na interface entre as duas áreas.

A interrupção da violência, bem como a prevenção de novos abusos e a definição de propostas de intervenção, apresenta mais chance de ocorrer mediante a realização de uma avaliação psicológica adequada (Laraque, DeMattia & Low, 2006). A utilização de uma avaliação ampla, incluindo instrumentos específicos para essa população, informações sobre o contexto da criança/adolescente e família, história clínica e de seu desenvolvimento, numa perspectiva compreensiva, contribuem para a elaboração de uma hipótese de ocorrência ou não do abuso sexual (Beltran & Marin, 2012). A literatura indica a necessidade de inovação metodológica (Costa, Penso et al., 2009), entretanto, as participantes deste estudo propõem utilizar muito mais instrumentos tradicionais e conhecidos, do que inovações da área. A avaliação tem sido importante vertente de trabalho da Psicologia Jurídica, mas não deve ser desconsiderada a necessidade de investimento da Psicologia no cuidado das pessoas que entram no sistema de Justiça em razão do abuso sexual (Adams, 2002). Além disso, apesar de a literatura reconhecer que psicólogos apresentam olhares diferenciados sobre a relação da Psicologia com a Justiça (Brigham, 1999), neste estudo, as psicólogas judiciárias concursadas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul demonstraram o mesmo entendimento com relação às potencialidades, dificuldades, necessidades e fatores envolvidos na tomada de decisão. Segundo Otto e Heilbrun (2002), uma das prioridades da Psicologia Jurídica é resolver a diferença existente entre uma pequena parcela de profissionais especializados na área e uma grande parcela de profissionais que presta serviços esporadicamente à Justiça, ao remeter informações sobre pacientes, que são por eles atendidos, ou por realizarem avaliações ocasionalmente para a Justiça.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo apresentou as possibilidades da Psicologia enquanto ciência, fundamentando achados da prática, e enquanto profissão capaz de contribuir tanto para o sistema de Justiça quanto para seus usuários. Os psicólogos podem utilizar recursos teóricos específicos e instrumentos de uso exclusivo, que fortalecem sua atuação na área jurídica em casos tão complexos como os de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Além disso, os recursos pessoais desenvolvidos no decorrer da experiência acadêmica e profissional propiciam um cuidado diferenciado em relação às vítimas de violência e suas famílias. A possibilidade de contribuição com o judiciário, ao mesmo tempo em que exerce proteção e cuidado com vítimas e familiares, representa a potencialidade da intermediação de necessidades que a Psicologia pode oferecer à sociedade. Conforme apontado anteriormente, diferentemente do foco exclusivo inicial que era a avaliação pericial (Costa, Penso et al., 2009), a atuação do (a) psicólogo (a) judiciário (a) também apresenta a perspectiva da proteção de crianças e adolescentes vítimas e seus familiares, corroborando com a ideia de que a Psicologia Jurídica vem avançando no sentido da valorização e reconhecimento, bem como na ampliação de seu campo de atuação (Otto e Heilbrun, 2002). Além disso, as psicólogas judiciárias buscam formação complementar e parecem preparadas para a atuação nos casos, sentindo-se confortáveis também com as condições que lhes são oferecidas para o trabalho.

Entretanto, existem desafios que caracterizam essa área de atuação profissional. As diferenças entre a Psicologia e o Direito e a necessidade de comunicação é um destes desafios. Especificamente neste estudo, os desafios levantados incluíram o fato de que os (as) psicólogos (as) não atendem apenas casos de abuso sexual, mas diferentes casos que demandam tempo e conhecimento em outras questões conflitivas, a grande demanda, a dificuldade de desenvolver estudos empíricos e a própria complexidade das situações de abuso sexual, que impedem, muitas vezes, a apresentação de conclusões mais definitivas sobre o caso.

Destacam-se como limitações do estudo, em primeiro lugar, a pequena quantidade de participantes e o consequente impedimento de uma generalização destes resultados. O fato deste estudo se limitar ao Estado do Rio Grande do Sul também pode repercutir de forma específica nos dados encontrados, tendo em vista que este Estado, em outras ocasiões, já se posicionou diferentemente de outros estados sobre metodologias e formas de trabalho envolvendo crianças e adolescentes, como é o caso do Depoimento Especial. Futuros estudos podem contribuir para o avanço do conhecimento nesta seara, investigando o papel e as possibilidades da Psicologia em funções específicas como o próprio Depoimento Especial, avaliação psicossocial, perícia psicológica, entre outras atividades exercidas pela Psicologia relacionadas à questão do abuso sexual.

 

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Recebido em 25/06/13
Revisto em 02/01/14
Aceito em 03/01/14

 

1 Apoio financeiro: Apoio CNPq Brasil. Este trabalho é parte da tese de doutorado da primeira autora, orientado pela segunda autora.
* Endereço para correspondência: Rua Ramiro Barcelos, 2600/115. Porto Alegre - RS - Brasil CEP: 90035-003 - E-mail: catulapelisoli@yahoo.com.br

 

 

ANEXO 1

PROTOCOLO DE ENTREVISTA PARA PSICÓLOGOS

Diante de sua experiência com casos de abuso sexual infantil, quais você acha que são as forças e as fraquezas da Psicologia neste trabalho?

Como você acha que a Psicologia pode contribuir para garantir com mais ênfase a qualidade das avaliações destes casos?

O que você considera que seria essencial na formação e qualificação dos psicólogos brasileiros para a atuação em situações de abuso sexual?

Nos casos em que você faz a avaliação de casos de abuso sexual, você sente necessidade de tomar decisões sobre a ocorrência ou não do abuso?

Que elementos influenciam a sua decisão na sua avaliação do caso?

Qual a sua percepção sobre o uso que foi feito de documentos que você enviou à Justiça?

Atualmente como você percebe a valorização de documentos elaborados por psicólogos em casos de abuso sexual? Explique.

Você considera que o estado atual dos conhecimentos da Psicologia nesta área tem condições de subsidiar uma decisão do juiz? Explique.