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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.63 no.139 São Paulo dez. 2013

 

RESENHA

 

Procedimento de desenhos-estórias: formas derivadas, desenvolvimentos e expansões

 

Story Drawing Procedure: Derived forms, developments and expansions

 

 

Resenhado por Helena Rinaldi Rosa

Laboratório Interdepartamental de Técnicas de Exame Psicológico (LITEP) Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) - São Paulo - SP - Brasil

 

 

Trinca, W. (Org.). (2013). Procedimento de Desenhos-Estórias: Formas derivadas, desenvolvimentos e expansões. São Paulo: Vetor, 363 p.

O livro, organizado pelo brilhante professor e psicanalista Walter Trinca, que introduziu o Procedimento de Desenhos-Estórias ainda em 1972, dá continuidade a outro, também organizado por ele: Formas compreensivas de investigação psicológica, lançado neste ano e pela mesma editora. Ele inicia apresentando as formas tradicionais de aplicação do Procedimento, que é uma técnica de baixo custo, para qualquer idade e população, enfatizando sempre que a estrutura básica mantém-se inalterada nas diversas derivações, bem como sua função principal, que é a de revelar o que ele chama de foco nodal, ou seja, os aspectos mais sensíveis e conflitivos da personalidade. Assim, caracteriza-se pelo processo de associação livre do examinando e de atenção flutuante do profissional, em que o primeiro comunica ao segundo aspectos de sua vida emocional profunda. Já de início, Trinca ressalta também a importância do uso do D-E não apenas para investigação diagnóstica da personalidade, como também para sua função psicoterapêutica interventiva, na medida em que propicia, em si mesmo, certa elaboração desses conflitos, como é apresentado nos demais capítulos da obra.

Ana Maria T. Trinca, a exemplo do que apresentou em Formas de investigação clínica em Psicologia (1997), também organizado por Walter Trinca, descreve o desenvolvimento e a expansão do D-E, situando seu surgimento no contexto histórico da formação da identidade do psicólogo, num momento em que se buscava dar importância à sua subjetividade como elemento fundamental de investigação dos fenômenos psicológicos do paciente, priorizando "a individualidade, o estilo pessoal e as peculiaridades de a pessoa ser e de se expressar" (p. 28). A autora aponta alguns empregos do Procedimento em intermediações terapêuticas (em particular junto a crianças em situação de pré-cirurgia ou com fobias frente ao tratamento odontológico), psicoterapias breves e situações de impasses terapêuticos, quando há uma resistência maciça e muita dificuldade de comunicação. Ana Maria relata também trabalhos na área da saúde que aprofundam os aspectos emocionais das doenças físicas e psíquicas, como o câncer; questões na área da obstetrícia, entre as quais a gestação, a menopausa, etc.; doenças psicossomáticas, que sempre geram desequilíbrios, inclusive para as famílias das crianças ou dos doentes, hospitalizados ou não. São levantadas ainda importantes contribuições nas áreas social e familiar, particularmente nas questões de violência e buscando a prevenção para crianças abrigadas e outros grupos de risco, como drogaditos, ou grupos com perturbações psíquicas como esquizofrênicos, depressivos e outros diagnósticos específicos e em relação às deficiências. Na área educacional, também, cabe mencionar o diagnóstico psicopedagógico e a avaliação das dificuldades de aprendizagem.

A autora mostra que o D-E tem contribuído em estudos não apenas de indivíduos, mas de grupos, de famílias e de grupos específicos, como em culturas diferentes, indígenas e outras comunidades, pesquisas sobre o funcionamento psíquico dos idosos e de outras fases do desenvolvimento humano, assim como, por exemplo, a respeito do relacionamento amoroso, tema de tanto interesse na contemporaneidade. Ela comenta nada menos do que 14 páginas de referências de pesquisas com o D-E, como o faz Maria Izilda Martão, quando apresenta os estudos realizados no período de 1990 a 2012 com o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema. Também com o D-E com Tema, a área mais contemplada é a da Psicologia Hospitalar, com grande diversidade de temas, como a doença mental, câncer, obesidade e sexualidade, o imaginário a respeito da criança e do adolescente com problemas, o idoso, as representações referentes ao exercício profissional, em particular o da Psicologia, casos em abrigos e de adoções, bem como, novamente, as relações familiares e os relacionamentos amorosos. Há trabalhos que utilizaram o D-E com Tema na avaliação psicológica interventiva, em consulta terapêutica bem como no acompanhamento de atendimentos breves ou de longa duração.

Os demais capítulos são todos ilustrados com casos clínicos, que tornam a leitura leve, agradável e o texto de fácil compreensão, para os profissionais não familiarizados com o procedimento. Sonia Mestriner propõe seu emprego como forma de entrevista psicológica e ilustra com um caso clínico. Ressalta que não se trata de um modelo, mas de exemplificação desse emprego, levando em conta toda a situação: as unidades do D-E e as demais observações do comportamento do entrevistado e das pessoas ao seu redor, bem como os sentimentos e pensamentos do entrevistador. Comenta a riqueza obtida com os procedimentos não verbais na entrevista, já ratificada intensamente na literatura, e ressalta duas utilidades do Procedimento como um recurso de entrevista: como meio de comunicação entre entrevistado e entrevistador e como meio de estimular fantasias aperceptivas verbais do entrevistado. Como objeto intermediário facilitador da comunicação entre ambos e do entrevistado consigo mesmo, o D-E substitui a conversação direta e as expressões indiretas, por meio dos desenhos e verbalizações temáticas, que "podem ser consideradas como ‘associações livres' ou ‘sonhos'" (p. 84). Estimular fantasias aperceptivas significa, para a autora, permitir aos entrevistados com dificuldades de representação, "que não tiveram acolhimento mental necessário ao desenvolvimento das funções de pensamento ... que possam começar a ‘sonhar', associar e representar" (p. 90).

No quarto capítulo Walter Trinca retoma seus trabalhos sobre as formas, relativamente constantes, segundo ele, pelas quais o pensamento esquadrinha o material clínico na tentativa de alcançar uma compreensão, ilustrando magistralmente como estas formas acontecem na utilização do procedimento de Desenhos-Estórias com diversas vinhetas clínicas. A ênfase é no uso do pensamento clínico e das interpretações com base no foco nodal, como já mencionado, de modo a apreender o conjunto do material clínico num contexto global. Trinca ressalta ainda a importância da formação profissional sólida, tanto teórica quanto clínica, o que ocorre também ao longo de todo o livro: "Quando o profissional se encontra atento a si mesmo, em seu sentir e em seu viver ... torna-se ponto de ressonância e mediador na tarefa de transformar em conhecimento a situação com que se depara ... consegue abertura e expansão em direção ao universo mais abrangente da compreensão clínica ... desvendar os significados que a própria vida oferece" (p. 153-154).

O autor apresenta ainda, com Maria Izilda Martão, a descrição de um modelo de pesquisa qualitativa com a utilização do D-E, que permite investigar a manifestação de focos nodais inconscientes compartilhados pelos membros de um determinado grupo, como adolescentes infratores ou pais com filhos portadores de quadros específicos, por exemplo.

Também com exemplos de casos clínicos, Silvia Ancona-Lopez apresenta o psicodiagnóstico interventivo na abordagem fenomenológico-existencial do uso do Procedimento, mostrando a participação ativa dos clientes, no caso, criança e pais (e família), em que cada encontro é considerado interventivo, a compreensão é construída em conjunto com os clientes e compartilhada entre estes e o psicólogo e as devolutivas vão sendo dadas ao longo do processo, oferecendo ao outro um "movimento em direção a si mesmo, que pode levar a mudanças" (p. 164).

Da mesma maneira, Maria Lúcia Amiralian analisa como os conceitos básicos da teoria de Winnicott servem para a compreensão dos pacientes na utilização do D-E. Este, de forma semelhante à das Consultas Terapêuticas e do Jogo dos Rabiscos daquele autor, tanto no psicodiagnóstico compreensivo como em intervenções de curta duração, propicia a possibilidade de retomar "o desenvolvimento a partir das rupturas causadas por situações adversas" (p. 178), oferecendo condições de o paciente restabelecer a confiança básica, "a experiência de se sentir confiante quanto ao presente e ao futuro" (p. 184).

O uso do D-E nas entrevistas devolutivas é abordado por Elisa Villela, também a partir dessa teoria e com exemplo clínico, em que o Procedimento serve como mediador da comunicação com a paciente, facilitando que ela "fizesse associações e se aproximasse de sua forma de funcionar" (p. 215). Isto permite maior contato não somente entre a dupla, profissional e paciente, mas também uma melhor elaboração interna desta, favorecendo o trabalho analítico.

O Procedimento de Desenhos de Família com Estórias é discutido por Valéria Barbieri na avaliação psicológica cruzada entre pais e filhos, no caso, mãe e filha. Esta técnica permitiu o aprofundamento da compreensão dos significados latentes do que acontecia na díade mãe-filha, indo além do manifesto, revelando "o conflito nodal presente no relacionamento entre ambas e que repercute na constituição da personalidade da menina" (p. 271), fornecendo inclusive elementos para subsidiar ações terapêuticas.

Também é abordado o Procedimento de Desenhos-Estórias com Tema, introduzido por Tânia Vaisberg e Fabiana Follador e Ambrosio, proposto inicialmente para o estudo de representações sociais e então empregado em investigações sobre imaginários coletivos, "contribuindo para a transformação de condutas preconceituosas" (p. 287). Elas discutem que as reflexões teórico-clínicas, que têm desenvolvido em seu grupo de pesquisa, têm interlocução com o pensamento de Winnicott, com ênfase especial no conceito de transicionalidade, e que o D-E com Tema seria também um procedimento mediador da experiência emocional, um "rabisco brincante" que "facilita a troca de comunicações emocionais em campos relacionais" (p. 282). Apresentam diversas produções resultantes de suas pesquisas, embora não as discutam e remetam as interpretações aos trabalhos originais.

Leila Tardivo finaliza a obra relatando o uso do Procedimento de Desenhos de Família com Estórias e de Desenhos-Estórias com Tema em propostas de atendimentos grupais, nos contextos clínico e institucional, que se configuram como alternativas de atendimento para enfrentar as limitações das formas tradicionais de atendimento individual de longa duração, indissociando o caráter diagnóstico e interventivo, visando promover o que ela chama de experiências mutativas. Assim como as demais autoras, baseando-se em conceitos winnicottianos como os de consulta terapêutica, espaço potencial e holding, Tardivo ilustra com um atendimento familiar, em que todos os participantes realizaram o DF-E numa folha de cartolina, uma única folha para cada uma das tarefas do Procedimento, o que favoreceu a emergência dos conflitos subjacentes e a possibilidade de experiências mutativas. Apresenta outra situação em que o D-E com Tema, junto a um cuidador numa casa abrigo e três meninas abrigadas na instituição, também funcionou como "materialidade mediadora", que ofereceu "um ambiente terapêutico destinado a favorecer o crescimento emocional e o desenvolvimento de potencialidades individuais" (p. 342).

O livro convida o leitor a aprofundar não apenas a leitura, mas o conhecimento da técnica e também o contato com o próprio ser interior, no sentido em que Trinca propôs em outras obras, de busca de uma experiência de inteireza, que permita estar verdadeiramente presente, quando no contato com o outro - e na utilização do D-E nas suas várias derivações, para que se possa apreender a globalidade do que está sendo vivenciado nesse contato. Assim pode ser considerada mais uma obra primorosa do clínico e pesquisador e de seus colaboradores.

 

 

Recebido 12/01/14
Revisto 15/01/14
Aceito 17/01/14