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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.64 no.141 São Paulo dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

O papel da alimentação na família de uma adolescente com bulimia nervosa: uma leitura sistêmica

 

The function of food in the family of a teenager who has bulimia: a systemic reading

 

 

Flora Teixeira Mota de Paula*; Maria Alexina Ribeiro*

Universidade Católica de Brasília - UCB - DF - Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo do presente trabalho foi conhecer o papel da alimentação na família de uma adolescente com bulimia nervosa, identificando o padrão alimentar e o significado do alimento na história familiar. O método utilizado foi o estudo de caso. Foram realizados uma entrevista e um genograma com a família participante e os resultados encontrados evidenciaram: um padrão alimentar caracterizado por muita fartura e variedade; a alimentação parece ter o papel de unir os membros da família, proporcionar momentos de interação entre os membros e agregar pessoas externas à família; o significado do alimento parece ser o de resgatar uma história e mudar o futuro dos membros da família.

Palavras-chave: Bulimia nervosa; dinâmica familiar; abordagem sistêmica.


ABSTRACT

The objective of this study was to identify the function of food in the family of a teenager who has bulimia, establishing the eating patterns and the significance of food in family history. The method used was a case study. It was performed an interview and a genogram with the family members. The results showed a feeding pattern characterized by much abundance and variety. The results also showed that food may have the function of bonding family members, providing moments of interaction between members and bringing people outside the family. The meaning of food in this family seems to be the recovery of their story and the transformation of their future.

Key words: Bulimia; family dynamics; systemic approach.


 

 

INTRODUÇÃO

Os transtornos alimentares (TA) são caracterizados por perturbações severas no comportamento alimentar (APA, 1995). Existem, atualmente, dois tipos de TA bem definidos e descritos: a Anorexia Nervosa (AN) e a Bulimia Nervosa (BN). Ballone (2005) afirma que de 0,5% a 1% da população brasileira é diagnosticada com anorexia e que a bulimia apresenta índices entre 1% e 3%. Entretanto, de acordo com o mesmo autor, esses números vêm sofrendo um aumento significativo a cada ano, atingindo parcelas cada vez mais diversificadas da população. Ainda segundo Ballone, anteriormente, os transtornos alimentares tinham prevalência entre mulheres adolescentes, mas atualmente, tais patologias vêm atingindo também crianças e adultos. Da mesma forma, os TA se restringiam às classes mais privilegiadas, e hoje alcançam todos os níveis socioeconômicos. Fráguas (2009) constatou que a diferença entre gêneros também diminuiu, apesar de a prevalência continuar sendo entre mulheres.

De acordo com Fráguas (2009, p. 334), tanto na anorexia quanto na bulimia, os indivíduos "vivem experiências silenciosas e solitárias de intenso sofrimento e segredo". São, geralmente, meninas "muito frágeis, com baixa autoestima e muita vulnerabilidade a situações de estresse, silenciosas e solitárias em sua dor". Portanto, são pessoas que,

Apresentam percepção pobre sobre si mesmas e sentem-se muito inseguras de seus afetos e de sua atuação no mundo. Experimentam a sensação de que não conseguem atender às expectativas da família e das pessoas que as cercam, gerando sentimento de grande impotência e falta de competência. São escravas de ideais inatingíveis de beleza, buscando padrões inalcançáveis (Fráguas, 2009, p.334).

Ambos os transtornos são considerados de origem e manutenção multifatorial, por envolver aspectos biológicos, psicológicos, familiares e sociais. Entretanto, a AN difere da bulimia em vários aspectos. Um deles é o estilo familiar, no qual as famílias de pacientes com BN tendem a ser mais desorganizadas e conflituosas, enquanto as famílias de pacientes com anorexia tendem a evitar conflitos e anseiam por manter uma boa impressão. Outra grande diferença está relacionada ao fato de que a BN está associada a uma vergonha considerável, o que implica numa dificuldade de tais pacientes revelarem seus sintomas. Estes veem os sintomas como indesejáveis e, muitas vezes, expressam o desejo de se livrarem dos mesmos. Já na AN, a vergonha está adjunta à alimentação e não aos sintomas da doença. Há, inclusive, um orgulho considerável dos sintomas (Le Grange & Lock, 2009).

De acordo com a última edição do DSM, "a bulimia nervosa é caracterizada por episódios repetidos de compulsões alimentares seguidas de comportamentos compensatórios inadequados" (APA, 1995, p. 511), além de uma excessiva influência da forma e do peso corporal na autoavaliação do indivíduo. As compulsões e os comportamentos compensatórios devem ocorrer, em média, duas vezes por semana, por pelo menos três meses, para caracterizar a BN. É um transtorno que ocorre nas mulheres, em 90% dos casos, predominantemente entre adolescentes e jovens adultas, e costuma começar com a apresentação de compulsões durante ou após dietas.

A compulsão alimentar deve ser definida como a ingestão de uma grande quantidade de alimentos, em um curto período temporal. Essa quantidade de alimentos deve ser consideravelmente maior do que a maioria dos indivíduos consumiria, em uma situação semelhante. Comumente, as compulsões incluem alimentos de alto teor calórico, como doces, bolos e sorvetes. No início do quadro, os episódios de compulsão são acompanhados por um sentimento intenso de falta de controle, que, posteriormente, perde esta forma e se transforma em um prejuízo do controle, caracterizado pela dificuldade em resistir a comer excessivamente ou dificuldade para dar um fim ao episódio de compulsão iniciado (APA, 1995).

Os comportamentos compensatórios inadequados, utilizados para prevenir o aumento de peso, definem os dois subtipos de BN. O subtipo purgativo é caracterizado por métodos como a autoindução de vômito ou o uso indevido de laxantes, diuréticos e enemas para evitar o ganho de peso. Já o subtipo sem purgação se caracteriza por comportamentos compensatórios tais como jejuns e exercícios excessivos, que podem ocorrer em momentos ou contextos inadequados, atrapalhando atividades importantes e que acontecem, inclusive, quando o indivíduo está lesionado ou com complicações médicas. Os sintomas depressivos e a preocupação com a forma e o peso são mais frequentes no subtipo purgativo (APA, 1995).

Dados sugerem que os sujeitos que desenvolvem o quadro de BN estão mais propensos ao excesso de peso do que seus pares, principalmente no caso dos homens que apresentam esta patologia. Além disso, estas pessoas apresentam, com maior frequência, sintomas depressivos, de ansiedade e abuso ou dependência de substâncias, como álcool e estimulantes. Outros estudos sugerem que os indivíduos com esse quadro possuem familiares de primeiro grau com BN, transtornos de humor, abuso e dependência de substância, ou obesidade (APA, 1995).

Além da morbidade psiquiátrica, os sintomas da BN e a preocupação com os alimentos e o peso corporal podem vir a prejudicar o funcionamento social, escolar e profissional. E embora se trate de uma condição psiquiátrica, a bulimia pode ser um risco à vida, em virtude dos efeitos fisiológicos dos sintomas. Além de que, a ideação suicida e as tentativas de suicídio são significantemente maiores em pacientes com BN do que em outros adolescentes (Le Grange & Lock, 2009).

Espíndola e Blay (2006) realizaram um estudo no qual detectaram vários aspectos sobre as pessoas que apresentam o quadro de BN. Quanto à representação da doença, os portadores deste transtorno a veem como uma impossibilidade de se controlar frente ao ataque de compulsão, concebem a patologia como uma força externa que os domina, como uma doença propriamente dita ou como um traço da personalidade. Os principais sentimentos negativos, que permeiam a experiência de pessoas com BN, são a solidão, o medo, a culpa, a raiva, a tristeza e a baixa autoestima. Já os sentimentos positivos são o controle do peso, o poder sobre o corpo e o manter-se magra.

Ainda segundo estes autores, as pessoas com BN costumam ter uma história pessoal de sobrepeso, ou experiências traumáticas no passado. Já sobre a função do sintoma, algumas pessoas utilizam a compulsão para o manejo de emoções negativas ou positivas, podendo usar o alimento como calmante, anestésico, conforto para momentos de solidão e satisfação de outras necessidades, que não a fome fisiológica, como uma forma de compensação. Normalmente, as relações interpessoais desses sujeitos são marcadas pela evitação de proximidade e intimidade, o que leva a relações distantes e superficiais, além do sentimento de rejeição atribuído à má forma física. As relações familiares também são seriamente comprometidas neste tipo de transtorno, devido ao aumento de desentendimentos, diminuição da comunicação e rivalidade entre irmãos (Espíndola & Blay, 2006).

A colaboração da família no surgimento ou manutenção do TA, tem sido sugerida por Minuchin, Nichols e Lee (2009). Da mesma forma, a participação da família é de fundamental importância para a cooperação e adesão ao tratamento. Independente das leituras e interpretações, que podem ser feitas, é interessante conhecer as relações familiares, quando se pensa em uma intervenção clínica para situações de dor e sofrimento. Em artigo sobre esse tema, Fráguas (2009) cita Minuchin et al. (2009, p. 338), que identificaram e estudaram famílias que "funcionavam segundo um padrão interacional que se repetia, e o sintoma tinha importante função na evitação do conflito subjacente e na manutenção do equilíbrio familiar". Minuchin nomeou tais famílias como "famílias psicossomáticas" e identificou que as mesmas apresentam características como: aglutinação, superproteção, rigidez e falta de resolução de conflitos (Fráguas, 2009, p. 338).

Esta pesquisa entra na área da psicossomática, quando retira o foco do impacto da doença na família e dá ênfase ao impacto da vida em família no processo da doença. As doenças psicossomáticas mostram como os fatores psicológicos podem afetar o corpo de forma destrutiva. Da mesma forma, a doença interfere nos processos interacionais da família, que, por sua vez, interferem no processo de adoecimento. O "modelo da família psicossomática" de Minuchin et al. (2009) propõe uma interação circular, na qual a doença interage com os padrões familiares e os processos interacionais da família interferem no processo de adoecimento, que, por sua vez, reforça os padrões familiares e estabelece um processo progressivo de interação.

Optou-se pela abordagem sistêmica da família, devido à crença de que a dinâmica familiar pode estar relacionada tanto com o surgimento e a manutenção da doença, como também pode funcionar como uma forte colaboradora para o tratamento da BN. Segundo Le Grange e Lock (2009), existe, comumente, uma negação e minimização sobre a natureza alarmante dos sintomas bulímicos, tornando as pacientes impossibilitadas de avaliar a seriedade de sua doença. Esta situação exige que os pais garantam que a adolescente esteja recebendo um tratamento adequado.

O objetivo desta pesquisa foi conhecer o papel da alimentação na família de uma adolescente que tem BN, identificando o padrão alimentar e o significado do alimento na história familiar. Buscou-se encontrar, nas narrativas familiares, fatos e situações que envolviam a alimentação, bem como compreender o significado do alimento para a família.

 

MÉTODO

O levantamento e análise dos dados foram feitos com base na metodologia qualitativa de González Rey (2002). Optou-se pela realização de um estudo de caso, por tratar-se de uma análise intensiva de uma situação particular, segundo Holanda (2006).

Foi convidada uma família participante do projeto "Construção de metodologia de atendimento psicossocial a crianças e adolescentes com transtornos alimentares e suas famílias", em andamento na Universidade Católica de Brasília, coordenada pela Profa Dra Maria Alexina Ribeiro. Tal estudo está envolvendo 30 famílias de crianças e adolescentes com diagnóstico de transtorno alimentar (anorexia nervosa, bulimia nervosa) e obesidade encaminhadas pelos PRAIAs - DF - Programas de Atenção Integral à Saúde do Adolescente da Secretaria de Saúde (SES-DF) do Governo do Distrito Federal.

A família é formada por Júlia (19 anos), seus pais Caroline (42 anos) e Márcio (47 anos), e seus irmãos Fabiano (23 anos) e Davi (7 anos). Fabiano é filho apenas de Caroline, fruto de um relacionamento anterior, mas também foi criado pelo casal. Júlia, Caroline e Lucas, amigo de Júlia, participaram da entrevista familiar realizada. Júlia é a adolescente diagnosticada com BN de subtipo purgativo e faz acompanhamento psiquiátrico. Ela se define como homossexual e esta questão parece trazer alguns conflitos familiares. Vale ressaltar que os nomes utilizados neste trabalho são fictícios, a fim de proteger a identidade dos participantes da pesquisa e assegurar o sigilo.

Foram utilizados os seguintes instrumentos para a coleta de dados: roteiro de entrevista semi-estruturada, construído para o projeto suprecitado; e genograma: retrato gráfico da história da família, bem como do padrão familiar constituído, em que se permite compreender a estrutura básica e os relacionamentos familiares (Carter & McGoldrick, 1995).

Os procedimentos de coleta dos dados foram: convite para participação na pesquisa e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, aprovado pelo comitê de Ética da Universidade Católica de Brasília (UCB); e um encontro com a família para realização da entrevista do ciclo de vida familiar e genograma. Esse encontro aconteceu em uma sala do Centro de Formação em Psicologia Aplicada da UCB, teve duração de 2h30min e foi gravado e filmado com autorização da família. A entrevista foi feita pela primeira autora, uma aluna de mestrado, que também faz parte do projeto de pesquisa referido anteriormente.

As informações coletadas foram analisadas pelo método construtivo interpretativo, proposto por González Rey (2002). Este método prevê a análise das informações levantadas a partir da identificação dos "eixos de análise", que é feita com base na leitura exaustiva dos dados. Os eixos de análise levam aos indicadores que, segundo González Rey, têm a função de "designar aqueles elementos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador, ou seja, sua significação não é acessível de forma direta à experiência" (2002, p.112). Tais indicadores são essenciais para a definição de zonas de sentido. Estas, por sua vez, são definidas como "espaços de inteligibilidade que se produzem na pesquisa científica e não esgotam a questão que significam, senão pelo contrário, abrem a possibilidade de seguir aprofundando um campo de construção teórica" (González Rey, 2005, p. 6).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da leitura dos dados, foram estabelecidos os seguintes eixos de análise: ciclo de vida familiar, alimentação dos filhos, diagnóstico de BN, padrão alimentar da família e características pessoais de Júlia, levantadas pela entrevista realizada. A partir de tais eixos, os seguintes indicadores foram identificados: dificuldades da família de origem da mãe Caroline, do seu nascimento, suas dificuldades de relacionamento, o surgimento dos sintomas, o diagnóstico de BN, o padrão alimentar atual da família e a dinâmica familiar. As zonas de sentido construídas de acordo com esses indicadores serão apresentadas a seguir.

1a Zona de sentido: "Nós fomo criada três filha jogada no mundo ...": dificuldades da família de origem de Caroline

A avó da Júlia, Sabrina, teve três filhas com o mesmo homem, entretanto, criou suas filhas sozinha. Ela foi empregada doméstica e trabalhava o dia inteiro, deixando Caroline e suas duas irmãs mais novas sem a companhia de um responsável que pudesse cuidar das mesmas. Como afirma Caroline: "Se a minha mãe não tivesse trabalhado em casa de família, hoje a gente poderia ter sido alguma coisa. Por mais que, nós fomo criada três filha jogada no mundo, porque minha mãe trabalhava".

Ainda a respeito dessa fase da vida, Caroline relata: "Minha mãe trabalhava fora, ganhava um salário, nós roubava era couve, comia angu, nossos vizinhos tinham uma plantação de couve, davam um pezinho, a gente ia lá, pegava couve e fazia com fubá". Ao contar histórias de sua infância, pôde-se perceber que Caroline passou por dificuldades financeiras e não teve incentivo da mãe para investir nos estudos e na carreira profissional. Com base nos relatos da mesma, é possível inferir, inclusive, que a família pode ter passado fome durante esse período do seu ciclo de vida, embora Caroline não tenha dito isso claramente.

Caroline morou no interior de São Paulo, quando era pequena, e depois veio para uma região administrativa do DF, com a mãe e as duas irmãs mais novas. Aos 18 anos, Caroline foi para o Mato Grosso e se relacionou com Fabiano Santos, com quem teve seu primeiro filho, Fabiano. Mas ele não assumiu o filho e ela voltou para o DF e começou a se relacionar com Márcio, seu atual marido.

Caroline já havia se relacionado com Márcio anteriormente, na adolescência, antes de ir para o Mato Grosso. Quando ela retornou ao DF, ambos passaram um tempo na casa de Sabrina, quando ainda namoravam. Sabrina expulsou sua filha de casa e, juntamente com Márcio e o filho Fabiano, Caroline foi morar em um cômodo cedido pela tia dela. A falta de apoio da mãe de Caroline remete à preocupação que a mesma tem hoje, com a filha, quando ela afirma "o que a gente não teve, a gente quer passar pra ela".

Nota-se como a experiência de Caroline em sua família de origem pode ter sido um modelo de relacionamento "evitado" em sua família nuclear. Na terapia familiar sistêmica, Bowen (citado por Penso, Costa & Ribeiro, 2008) estudou as influências da história de vida de uma geração sobre a geração atual. Bowen afirmava que a forma como a família nuclear resolve seus conflitos e lida com as crises não depende apenas dos seus recursos atuais, mas da forma como as gerações anteriores resolveram essas questões.

2a Zona de sentido: "Entramos numa pindaíba ...": o nascimento de Júlia

Segundo Caroline, Júlia foi planejada e desejada pelos pais. "Foi planejada minha filha. Eu lembro até o dia em que foi feita, minha filha! Nós decidimos: hoje nós vamos fazer a nossa filha. Escolhemos o sexo e tudo mais! Nós tava inspirado...". Entretanto, a família passou por sérias dificuldades financeiras. A respeito desse período, Caroline relatou:

"Minha irmã, nós rebolava pra todo lado! Eu ia pra um lado, pra casa da minha tia, ele ia pra um lado [Márcio, seu marido]. Um dia, nós passava por tanta necessidade e, quando nós chegamos em casa tinha uma quantidade de dinheiro debaixo da porta. Nossa, mas nós choramos! E foi o que dava pra comprar umas coisinha, pra dentro de casa".

Uma interpretação possível é que as dificuldades enfrentadas pela família na época do nascimento de Júlia tenham influência sobre o padrão alimentar da família atualmente, que é de muita fartura e variedade. As dificuldades nessa fase, somadas às dificuldades vividas na infância, por Caroline, podem ter levado a família a valorizar a quantidade de alimento que hoje podem ter em casa.

Sobre a alimentação de Júlia, segundo sua mãe, ela foi amamentada até o leite materno secar. Depois, tomou leite na mamadeira até os dois anos. Caroline afirmou que se fosse possível, Júlia estaria tomando leite até hoje, porque ela gostava bastante e tomava mais leite do que se alimentava. Quando Júlia nasceu, Caroline conta que:

"Nós estávamos numa pindaíba minha filha. Entramos numa pindaíba que essa menina só queria peito, só queria peito, e até hoje só quer peito essa menina! É, até hoje! Essa aqui era só leite, leite, leite. E o leite acabando minha filha, se lembra da época que não tinha, que acabava o gás e aí era uma loucura pra comprar?"

3a Zona de sentido: "Eu queria tanto ter uma amiga ...": dificuldades de relacionamento de Júlia

Aos 12 anos, quando sua mãe engravidou de Davi, Júlia passou a comer mais e a engordar. Como ela era muito magra nesse período, encarou o ganho de peso como natural do início da adolescência e este foi aceito como algo positivo: "No começo não, porque eu era muito, muito, muito magra. Aí, no começo, foi normal ... Eu tava criando corpo, aí depois eu comecei a engordar mais ...". Entretanto, a mesma não parou de ganhar peso até os 14 anos. Nesta época, ela e a mãe relataram que Júlia apenas comia e dormia e que não tinha amigos na escola e nem na vizinhança. Sobre isso, Júlia relata: "Só que como ninguém falava comigo, eu não falava com ninguém também. Porque eu não tinha facilidade pra fazer amizade".

Apesar de Júlia relatar que o aumento de peso teve início no período em que a mãe engravidou do seu irmão mais novo, sua mãe associa a alteração de peso ao fato de Júlia ter sido "muito sozinha e ter dificuldades para fazer amigos". Ela acredita que a filha tenha engordado por falta de amizades, pois esta se isolava e se sentia sozinha. Também sobre esse assunto, a mãe opina:

"É, eu vou dizer assim ... solidão. Eu acho que, essa engorda dela, não to nem falando do emagrecimento, essa engorda dela foi a falta de uma amiga. Porque eu lembro que ela falava assim 'ô, eu queria tanto ter uma amiga'. E aquilo me doía no coração. Porque a gente não pode, eu não conseguia dar um amigo pra ela, né?".

De acordo com os relatos de ambas, os sintomas de transtorno alimentar começaram a aparecer no início da adolescência de Júlia, o que remete às observações de Fráguas (2009) e Minuchin (1982) de que dificuldades podem surgir no processo de desenvolvimento do ciclo de vida familiar, quando a família não consegue se adaptar à nova fase de desenvolvimento, flexibilizando sua estrutura para atender às novas necessidades e demandas de seus membros. Assim, o aparecimento do transtorno nesse momento do ciclo de vida - entrada da filha na adolescência - indicaria uma dificuldade no processo evolutivo familiar.

4a Zona de sentido: "Eu não tinha vida ...": o surgimento dos sintomas de transtorno alimentar

Júlia afirma que não tinha amigos e que apenas frequentava a escola e passava o resto do tempo em casa: "Eu não tinha vida ... eu só ia pra escola" e "só ia pra escola, e fazia as coisas da escola, não conversava com ninguém, com quase ninguém". Ao ser questionada sobre o que ela fazia nos períodos em que não estava na escola, Júlia afirma: "Eu não fazia nada ... ficava vendo TV. Ficava no meu quarto, lá". É interessante analisar esta fala de Júlia, visto que solidão e baixa autoestima são duas características comuns em pessoas com BN, segundo Espíndola e Blay (2006). Além disso, as relações interpessoais desses sujeitos são caracterizadas pela evitação de intimidade e relações distantes e superficiais, talvez pelo sentimento de rejeição, atribuído à má forma física.

Com 14 anos, quando já pesava 85 kg e estava bastante incomodada com o seu corpo e peso, começou a fazer 'dietas de revista' e iniciou o quadro de restrições alimentares. Ela parou de comer carne e derivados do leite e, aos poucos, foi cortando alimentos de sua dieta, até chegar ao ponto de se alimentar apenas uma vez por dia:

"Aí eu comecei a fazer dieta. Fazia dieta e comia só uma vez por dia ... Aí não comia ... Pegava dieta de revista, fazia essas dietas ... depois saía cortando tudo que tinha na dieta né? Não comia nada ... Só comia uma vez".

Sobre essa fase da vida de Júlia, Caroline relatou que a filha queria pintar o quarto de preto e que sua tia achava que ela tinha depressão. Afirmou também que:

"Ela entrou numa paranóia que não ia comer carne. Nada que tinha carne, que tinha leite ela cortou. Ficou só o coro e o osso. Então assim, a gente não sabia mais o que fazer. 'Minha filha vai derreter, minhas filha vai ...' Eu tinha até nojo de olhar pra mão dela".

Nesta época Júlia emagrecia rapidamente, mas quando passava grandes períodos sem se alimentar, apresentava compulsões alimentares e comia em quantidades maiores do que o de costume. Dessa forma, ela acabava engordando novamente e começando uma nova dieta. Júlia conta: "aí depois eu já tinha vontade de comer, aí saía comendo tudo. Aí engordava tudo que eu tinha emagrecido". A bulimia costuma se iniciar através de hiperfagias durante ou após dietas, segundo a APA (1995).

Aos 16 anos, iniciou as purgações através da indução de vômito, acreditando que, se a comida fosse retirada do estômago, ela não engordaria. Neste período, ela já não conseguia se alimentar sem fazer dietas e controlar as calorias que consumia. O amigo de Júlia que a acompanhou na entrevista afirmou: "Tudo que ela comia ela olhava caloria. Teve um dia que ela chegou pra mim e falou bem assim 'ah, daqui a três dias eu posso comer pipoca!'...". Já neste período, Júlia poderia ter desenvolvido o quadro de BN com subtipo purgativo, visto que apresentava os sintomas de compulsão alimentar, purgação e receio de ganhar peso, sintomas que são reconhecidos pela APA (1995).

Júlia viveu a época em que mais se incomodava com o próprio corpo, aos 18 anos. Nesta fase, ela vomitava involuntariamente, até quando bebia água, e apesar de todos ao seu redor acharem que ela estava magra demais, ela não conseguia se sentir bem com o próprio corpo. Afirmou que se sentia gorda e feia, não importando o número de roupa que usasse. Sobre essa fase, ela relata em vários momentos da entrevista:

"Eu não tava gorda e eu me via gorda ... eu via caloria de tudo! Não tomava nem água!"; "Minha mãe falava 'tá bonita, tá com o corpo bonito', mas ... eu achava muito feio ... mas não importava ... podia ser o menor número que não ficava bem" e "Ah, quando eu tava bem louca, eu tava bem depressiva, eu chegava a vomitar três vezes no dia".

Neste período, Júlia passou a fazer restrições alimentares extremamente severas, apresentando medo mórbido de engordar e autoestima baixa, muito relacionada à imagem corporal.

Com base nos relatos de Júlia, questiona-se, se ela não se enquadrava no diagnóstico de anorexia com purgação, devido ao fato de que a mesma apresentava vários sintomas da anorexia nervosa, como os citados acima (recusa em manter o peso corporal adequado, medo de ganhar peso e percepção distorcida do próprio corpo). Outras características da AN nas quais Júlia se enquadrava eram a imagem corporal empobrecida e os episódios de depressão. De acordo com o CID-10 (OMS, 1993), é mais comum que a bulimia se torne uma seqüela de anorexia nervosa, mas o contrário também pode ocorrer. Entretanto, preocupação com a forma e o peso, insatisfação com o próprio corpo e sintomas depressivos são bastante freqüentes também na BN de subtipo purgativo (APA, 1995).

Atualmente ela não pratica indução de vômito, porque afirma que esse procedimento não ajuda a emagrecer. Ela continua tentando fazer dietas, mas não consegue mais passar longos períodos sem se alimentar. Eventualmente, Júlia come mais do que gostaria, mas não sabe ao certo o que pode provocar a compulsão. Às vezes, quando ela começa a comer, sente como se não conseguisse parar: "Eu to normal, eu nem sinto fome ... eu como um pouquinho, eu nem sei pra que. Aí quando eu como, eu começo a comer um monte!". Segundo a APA (1995), e de acordo com Espíndola e Blay (2006), a dificuldade para dar um fim ao episódio de hiperfagia iniciado caracteriza o sintoma de prejuízo do controle, suscitado pela BN.

Em uma de suas falas, Júlia relata que comeu bastante ao fim de uma viagem, porque estava ansiosa para voltar para casa: "eu nem fiquei comendo que nem nos outros, últimos três dias que eu tava louca pra vir embora, que eu comi que nem uma louca, mas nos outros dias ... ". Em outro momento, afirma que os remédios, que tomava para a bulimia não ajudavam a diminuir a ansiedade, e a deixavam com bastante fome, o que pode indicar que as compulsões alimentares ocorrem, quando Júlia se sente ansiosa: "Ele não tira a ansiedade, teve um dia que eu tava morta de ansiedade e não tava fazendo efeito nenhum".

Uma hipótese que pode ser levantada é que as compulsões apresentadas sejam uma forma de lidar com a ansiedade, visto que o comportamento alimentar compulsivo surge com mais freqüência nos momentos em que a ansiedade é predominante. Tal hipótese se baseia no entendimento de que, de acordo com a APA (1995), a hiperfagia é tipicamente desencadeada, entre outros fatores, por estressores interpessoais. Além disso, pessoas com BN apresentam disposição maior para desenvolver sintomas depressivos e de ansiedade.

É possível que a ingestão compulsiva de alimentos seja uma forma de suprir a ansiedade vivida por Júlia, pois, conforme Espíndola e Blay (2006), os indivíduos com BN utilizam a hiperfagia como calmante, anestésico, conforto para momentos de solidão e como forma de compensação de um sentimento não necessariamente relacionado à fome fisiológica.

Durante a entrevista, Caroline faz vários comentários sobre a filha:

"Ela tem 19 anos. Tem gente com menos idade dela e já tá muito mais na frente. Ela, desde pequenininha, ela tem plano, ela tem sonho. Mas sabe aquele sonho que você deita 2h da manhã e acorda meio dia?"; "Esse é o sonho dela! E aí é onde que a gente quer ir, faz, fala, como você vai arrumar um serviço, se você dorme 2h, 3h da manhã e você acorda meio dia? Quem vai te dar um serviço? Qual é o serviço que você vai ... aí ela fala 'ah eu quero morar sozinha, quero fazer uma faculdade', tem que ter base! O que a gente não teve, a gente quer passar pra ela! Que é a única que tá mais na frente e ela não é, num cai a ficha".

Todos esses relatos evidenciam as expectativas depositadas em Júlia, por sua mãe. Sobre isso, é interessante notar que Caroline nunca trabalhou, em nenhum período de sua vida e, ao ser questionada sobre a possibilidade de procurar um emprego e ser um exemplo para sua filha, ela afirma que precisa de alguém que 'lhe dê um chute'. É possível que Caroline esteja se empenhando em dar o apoio e incentivo à filha, que gostaria que sua mãe tivesse lhe dado, para que ela tivesse investido nos estudos e na vida profissional.

É possível que as expectativas e cobranças de Caroline também possam causar ansiedade na filha. De acordo com Fráguas (2009), pessoas que desenvolvem transtornos alimentares costumam ter a sensação de que não conseguem corresponder às expectativas da família e acabam experimentando sentimentos de impotência e incompetência. Além disso, quando há uma valorização das conquistas pessoais na família, o uso de dietas pode se apresentar como um recurso para atender aos padrões de sucesso familiares, visto que o controle sobre o peso e o corpo passa a ser uma conquista pessoal. O contexto familiar não deve ser considerado isoladamente, como causador do TA, entretanto, supõe-se que este possa ser um dos fatores que influenciam no surgimento, ou colabora para a manutenção de alguns sintomas.

Esta família pode ser enquadrada no "modelo da família psicossomática" (Minuchin et al., 2009), visto que a vida em família interfere no processo de adoecimento. Segundo estes autores, os sintomas são uma forma de comunicação e, no caso de Júlia, a compulsão alimentar pode ser um sintoma de ansiedade.

Atualmente, apesar de se sentir mal, quando come mais do que desejaria, Júlia não utiliza nenhum comportamento compensatório: "Ah, eu não consigo mais comer normal ... eu como muito mais ... e depois fico me sentindo mal ... mas eu não faço nada".

5a Zona de sentido: "Eu nem suspeitei ...": o diagnóstico de bulimia nervosa

O diagnóstico foi feito pelo psiquiatra que acompanha Júlia há quase um ano. Além de BN, ela também foi diagnosticada com transtorno bipolar. Júlia fez tratamento com uso de medicamentos para ambas as patologias, durante o ano anterior, entretanto interrompeu o tratamento e parou de usar os medicamentos por conta própria.

A presença de comorbidades nos casos de transtornos alimentares foi discutida por Cavalcante (2009), em um estudo sobre anorexia nervosa. Segundo a autora, a presença de outros transtornos psiquiátricos "podem influenciar o curso dos TA, camuflar sua presença, influenciar a procura de assistência e ter um impacto no planejamento do tratamento" (p. 30).

Atualmente, ela voltou a fazer o tratamento psiquiátrico e o seu médico receitou novamente as mesmas medicações, mas ela ainda não retornou ao uso dos medicamentos. Ela afirma que, quando recebeu o diagnóstico de BN, estava sozinha em sua consulta e não contou sobre isso para a família. O médico pediu que a sua mãe ou sua namorada a acompanhassem na sessão seguinte, mas não foi possível.

Júlia contou sobre o seu diagnóstico para duas amigas da escola, sua prima e seu amigo presente na entrevista. Ele assegura:

"Eu, a Nati, a Ju e a prima dela que é a Carina. Quando a gente se falou, a gente nem tinha assim, muito contato na sala, né? Mas eu tava até reparando, cada hora ela emagrecia mais! Emagrecia mais e reclamava de dores ... falava, aí um dia a gente conversou com ela e ela foi e contou pra gente".

Eles foram as pessoas que a apoiaram e a ajudaram a se alimentar novamente e parar de induzir os vômitos. Lucas, o amigo, conversava com ela sobre a gravidade da doença e estimulava que ela se alimentasse: "aí a gente falava pra ela, tentava amenizar né? Falar pra ela comer, que fazia mal ... que já levou à morte muitas pessoas e falava essas coisas pra ela." Júlia voltou a se alimentar normalmente e parou de induzir vômitos há aproximadamente um ano: "... faz tempo ... não adianta! É uma coisa que não adianta" falando sobre a indução de vômitos.

Caroline afirma que, até o momento da entrevista, não sabia que a filha havia sido diagnosticada com bulimia. Ela já tinha visto Júlia vomitar, mas não imaginava que ela induzia o vômito: "eu nem suspeitei, porque ... eu já vi ela vomitando, mas eu nem imaginava que era ela que chegava a esse ponto". De acordo com Perkins, Winn, Murray, Murphy e Schmidt (2004) e Espíndola e Blay (2009), algumas famílias apresentam dificuldades para perceber a doença e, mesmo depois do diagnóstico, é comum haver uma percepção confusa e uma subestimação do transtorno. Le Grange e Lock (2009) também relatam a possibilidade de negação ou minimização de natureza alarmante dos sintomas bulímicos, pelos familiares. Os autores também se referem a uma vergonha considerável, que leva à dificuldade da pessoa que tem BN em revelar seus sintomas.

6a Zona de sentido: "É o que cair na mesa e for cozido, minha filha ...": padrão de alimentação atual da família

Segundo Caroline e Júlia, atualmente a família costuma se reunir para fazer as refeições. Caroline é a primeira a acordar e é a responsável por fazer o café da manhã. Como o marido sai cedo para trabalhar e os filhos acordam mais tarde, o café da manhã é tomado separado e individualmente, na medida em que cada um acorda. As três refeições principais são sempre muito fartas e com muita variedade. No café da manhã, normalmente tem pão, pão de queijo, doce, bolo, pastel, brigadeiro e café. Depois do café da manhã, a próxima refeição é o almoço. Ninguém costuma se alimentar entre as duas as refeições. No almoço também há muita fartura e variedade. A família costuma almoçar reunida, exceto quando Márcio não consegue voltar a tempo do trabalho. O almoço é servido antes das 13h, porque Davi vai para a escola neste horário.

No almoço, sempre tem arroz, feijão, macarrão, carnes, verduras, saladas e farofa. É comum haver mais de uma opção de carne e de carboidrato nos almoços e a família costuma comer bastante salada e verduras. O jantar é parecido com o almoço, com muitas opções de carnes, carboidratos e saladas: "Muita variedade, meu marido gosta de ver as panela assim, pode fazer 10 tipos de comida, ele não liga não! Pelo contrário ... ele quer ver é cor!". Perguntados sobre o que costumam comer, Caroline afirma: "Ah minha irmã, tudo! Arroz, feijão, carne, verdura, salada ... macarrão, carne ... farofa, o que fizer ... carne moída ... é o que cair na mesa e for cozido, minha filha". Márcio costuma fazer as compras e Caroline e Júlia preparam as refeições. No momento das refeições, cada um serve seu próprio prato e comem sentados nos sofás.

Márcio sempre compra alimentos para todos terem o que gostam de comer em casa:

"Ele compra bolinho de doce, que eu gosto, compra o que eu gosto, que eu gosto de bolinho de doce, o Davi gosta de brigadeiro e de pastel, e de bolo de chocolate, ela gosta de petinha1, e de pão de queijo, o meu menino gosta de pão, e eu também como muito pão ... aí, vai fazendo aquele assim, é uma coisa bem diversificada, não é aquela coisa maçante, todo dia aquela mesma coisa".

Ele não gosta de comer alimentos repetidos nas refeições e, por isso, tem várias opções em cada horário: "Tem uma variedade grande ... e não gosta de repetir ... meu marido é chato, minha filha, o homem é chato".

A quantidade de alimentos também é elevada. Caroline conta: "Nós chegamos da Bahia, no dia foram 40 pães! Eu fiquei assim 'meu Deus do céu'". Nas reuniões em família, todos costumam comer ainda mais do que comem no dia-a-dia.

É possível que a grande quantidade e a variedade de comidas na alimentação atual da família estejam relacionadas às dificuldades e restrições alimentares do passado. A experiência de Márcio em sua família de origem não foi investigada, devido à ausência dele na entrevista com a família, mas, como foi discutido anteriormente, Caroline relatou carência de alternativas de alimentos em sua infância e na época do nascimento de Júlia.

O momento das refeições nessa família lembra os rituais familiares (Penso et al., 2008) que têm como função organizar as relações interpessoais dos membros da família e validar a experiência e o estar juntos. Esses rituais contribuem para manter a identidade familiar que, no caso desta família, foi construída a partir da experiência de pobreza e negligência na família de origem da genitora. O ritual das refeições em família parece ter o papel de unir a família - que no passado era desmembrada - e o alimento tem o significado de resgatar uma história e mudar o futuro da família com muitas dificuldades: pobreza, falta de alimento e apoio. Parece haver uma forte ligação entre alimentação, afetividade e pertencimento (Minuchin, 1982) e, dessa forma, não surpreende que um de seus membros tenha apresentado um sintoma relacionado com uma dimensão tão importante para a família.

7a Zona de sentido: "Minha casa parece um bordel de bicha": dinâmica familiar

Júlia se diz homossexual e se relaciona com Camila (15 anos) há um ano e quatro meses. Ela conta que já teve algumas relações homossexuais, mas nenhuma tão séria como a atual. Caroline afirma que respeita e aceita a sexualidade da filha, mas não conhece a sua namorada e nem permite que as duas se encontrem na frente dela. Júlia nunca falou da sua sexualidade para Márcio, mas, mesmo conversando sobre isso apenas com a mãe, todos na família desconfiam disso, segundo Júlia e Caroline. O irmão mais velho, Fabiano, não consegue aceitar esta situação e diminuiu significativamente sua relação com a irmã. Márcio também não aceita tal condição. Caroline afirma:

"Minha filha, minha casa parece um bordel de bicha. É o tempo todo cheia de bicha. Nós respeita, mas não aceita. Nós aceita, pode vir, pode vir, pode vir ... pode fazer, nós aceita, porque ela, ela era uma pessoa assim, que ela não tinha amigo. Ela era muito trancada. Aí quando começou a amizade com ele que ela começou a se abrir, porque ela dormia 24h, né?".

A frase "minha casa é um bordel de bicha" é bastante interessante, pois, inserida no contexto em que foi dita, pode-se entender que a casa da família é como uma "casa de ninguém", uma "casa sem dono". Caroline afirma que a sua casa parece um bordel de bicha porque está "o tempo todo cheia de bicha". Isto mostra que as fronteiras externas são difusas (Minuchin, 1982), ou seja, pouco delimitadas e seletivas, permitindo que os amigos dos filhos cheguem a qualquer hora, durmam e comam o que quiserem, como afirma Júlia sobre seu amigo: "O Lucas se acaba lá em casa".

Esses dados estão em consonância com Le Grange e Lock (2009), que afirmam que famílias de pacientes com BN tendem a ser desorganizadas. Caroline explica que essa permissão em relação aos amigos de Júlia se deve ao fato de que a filha não tinha amigos e, agora que construiu uma rede, os pais incentivam que as amizades sejam mantidas, já que ela era muito fechada e dormia a maior parte do tempo, e, depois que fez amizades, se tornou uma pessoa mais aberta e sociável.

Não foram obtidos dados suficientes para avaliar as fronteiras internas dessa família, mas parecem ser bem estabelecidas, visto que Caroline afirma que as decisões são tomadas em conjunto pelo casal (sistema parental): "Tudo nós decidimos juntos! Se eu quero vermelho e ele quer rosa, a gente fica com o cinza". Este exemplo de complementaridade e acomodação mútua é muito importante para a execução do papel parental. Segundo Minuchin (1982), o casal precisa desenvolver padrões em que um complemente o outro, apoiando o funcionamento do outro em vários aspectos e concedendo parte de sua separação, para que haja pertencimento.

A partir da entrevista com a família da Júlia e da análise dos dados, foi possível notar que Caroline passou por várias dificuldades na infância, tanto de ordem financeira, quanto educacional. Devido às limitações de renda, Caroline e suas irmãs não puderam contar com uma alimentação balanceada, chegando ao ponto de 'roubar' alimentos dos vizinhos para se nutrirem. Talvez por ter vivido esta falta, e pelas dificuldades vividas na época do nascimento de Júlia, hoje a família priorize a quantidade e a variedade de alimentos que podem comprar e consumir.

Outra dificuldade de Caroline na infância, que parece gerar conseqüências na vida atual foi a falta de apoio e investimento de sua mãe na escolaridade e profissionalização de suas filhas. Caroline relata mais de uma vez que, se a mãe a tivesse estimulado e incentivado, hoje, ela poderia 'ser alguém na vida e ter um emprego'. Sobre as observações que Caroline fez sobre Júlia, grande parte se referia à cobrança e às expectativas depositadas na adolescente, sobre sua formação e carreira profissional. Uma hipótese possível é que Caroline faça tais cobranças na tentativa de incentivar Júlia e fornecer o apoio do qual sentiu falta em sua juventude.

Foi possível observar também que Júlia teve uma infância solitária e que apresentava dificuldades para fazer amigos. Caroline, por perceber que sua filha se sentia sozinha e se isolava, passou a incentivar a presença dos amigos dela, quando esta iniciou a sua rede social. Atualmente, os amigos de Júlia freqüentam a sua casa, convivendo, dormindo e se alimentando com os outros membros da família. Essa necessidade de proporcionar oportunidade de relacionamentos sociais aos seus membros fez com que a família criasse fronteiras externas difusas para permitir maior contato com o mundo externo.

A grande diversidade e quantidade de alimentos que são servidos nas três principais refeições, além de ser o motivo principal e os momentos nos quais a família se reúne, é também um atrativo para os amigos da família. Sendo assim, o papel da alimentação neste caso, além de ser a união e o pertencimento da família e proporcionar também os momentos de interação conjunta, parece ser o de atrair e agregar pessoas que estão fora do núcleo familiar.

Desta forma, o alimento, na família analisada, tem o papel de unir a família, agregar novos membros e possibilitar momentos de interação familiar. Além disso, tem o significado de resgatar uma memória e história familiar, de pobreza e desengajamento, e possibilitar a mudança de futuro, que pretende ser de união e fartura. Para Júlia, entretanto, parece que a alimentação tem um significado particular, que é a de suprir uma falta provocada pela sua ansiedade. Júlia, em seus episódios de compulsão alimentar, provocados principalmente pela ansiedade ou estressores interpessoais, costuma utilizar o alimento como calmante, analgésico, ou ainda para compensar algum tipo de desconforto, como a solidão. As cobranças de Caroline e as dificuldades da família para lidar com a homossexualidade da filha podem ser dois fatores importantes e provocadores de ansiedade, que tendem a colaborar com os episódios de compulsão de Júlia.

 

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Recebido em 22/06/13
Revisto em 15/12/14
Aceito em 16/12/14

 

 

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1 Peta é um biscoito de polvilho. Ela usou a palavra no diminutivo: "petinha"

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