SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.64 número141Criatividade na prática de docentes na área da psicologia: perspectivas de alunos e de professoresTeste das fábulas: estudo em psicossomática índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.64 no.141 São Paulo dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

A construção do perfil da clientela numa clínica-escola1

 

The profile construction of clientele in a school clinic

 

 

Mariana Alves PortoI,*; Maria Luísa Louro de Castro ValenteI,*; Helena Rinaldi RosaII,*

IUNESP - Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Assis
IIUNESP - Faculdade de Ciências e Letras - Campus de Assis e Instituto de Psicologia da USP

 

 


RESUMO

A caracterização da demanda na instituição de prestação de serviços é fundamental para a proposta de melhoria da qualidade desses serviços, em particular quando se aborda o trabalho desenvolvido nos Serviços Escola de Psicologia, voltados ao atendimento da população. Este trabalho faz uma análise sobre o processo de recepção a pacientes e apresenta o levantamento da demanda que chega ao Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPPA) "Dra. Betti Katzenstein" da UNESP de Assis. Por meio de pesquisa documental, analisaram-se as fichas de triagem dos anos de 2008 a 2012 e foram tabuladas as variáveis sociodemográficas (sexo, idade, núcleo familiar), motivo da procura pelo serviço, segundo a faixa etária, constituição familiar das crianças, e profissão, nos adultos. O objetivo foi esboçar o perfil da clientela que busca auxílio no CPPA, compreender melhor a realidade dos conflitos que essa população enfrenta e, obtendo-se melhor compreensão da demanda, orientar ações no sentido de melhor atendê-la favorecendo a prevenção da saúde mental.

Palavras-chave: Avaliação psicológica; clínica-escola; triagem psicológica.


ABSTRACT

The demand characterization in service institutions is fundamental to improve their quality, particularly when discussing the work of Psychology School Services, focused on people's attendance. This paper makes an analysis on the process of patients' reception and shows the demand survey that arrives at Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPPA)2 "Dr. Betti Katzenstein" at UNESP in Assis. Through documentary research, screening records from 2008 to 2012 were analyzed and sociodemographic variables (gender, age, household) were tabulated, as well as the reason for seeking treatment, age, children's family constitution, and profession in the case of adults. The objective was to outline the clientele profile who seeks for assistance in CPPA, to understand better the reality of conflicts those people face and, when better understanding of the demand is achieved, guide actions to serve them better, providing prevention to mental health.

Key words: Psychological assessment; clinical school; screening psychological.


 

 

INTRODUÇÃO

Os cursos de graduação de Psicologia possuem serviços-escola com o objetivo de dar oportunidade aos alunos de articular seus conhecimentos desenvolvidos em salas de aula com a prática. É o lugar em que alunos exercitam seu conhecimento de forma prática. O período de permanência na clínica-escola proporciona ao estudante uma transição da dependência do saber do outro, para a independência, na qual testa seu próprio saber. Assim, o estagiário está em experiência do exercício da identidade profissional, que é construída por meio da atuação em estágios oferecidos pelos serviços psicológicos em uma situação real de intervenção (Melo-Silva, Santos & Simon, 2005).

Os serviços-escola atendem à comunidade de forma gratuita, tendo assim uma procura muito grande. Diante disso, buscam organizar os pacientes que chegam à instituição, bem como diminuir a fila de espera, por meio do processo de triagem. Esse processo é iniciado com a inscrição do paciente, que posteriormente é submetido a uma entrevista individual de triagem orientada por um roteiro semiestruturado. Durante a entrevista são focalizados os motivos que justificam a procura pelo atendimento psicológico, isto é, a queixa, tanto manifesta, quanto latente. Quando se conclui essa etapa, a partir de uma compreensão aprofundada da demanda, formula-se a conduta para cada caso (Santos, Melo-Silva, Pazian, Oliveira & Garducci, 2005).

Esse processo pode ser definido como a "Porta de Entrada" das instituições de saúde, ou seja, o primeiro contato com o cliente que busca atendimento, portanto é o momento de acolhê-lo (Ancona-Lopez, 2005), de procurar saber as causas de suas angústias e de seus sofrimentos. É um processo que oferece uma escuta, uma compreensão mais ampla e profunda do que de fato o traz à clínica. É um espaço de fala, que por si só pode aliviar a angústia do paciente e ajudar o profissional a verificar de quem e qual realmente é a demanda (Salinas & Santos, 2002). Mais do que conhecer os sintomas e as queixas do paciente, o psicólogo procura conhecer quem é esse sujeito que buscou o atendimento. Portanto o processo de triagem tem como objetivo uma compreensão mais ampla e aprofundada do cliente e do grupo em que está inserido, seu cotidiano, sua estrutura familiar, seu trabalho, etc. (Perfeito & Melo, 2004).

Para garantir a qualidade das triagens e possíveis atendimentos, os estudos relativos às clínicas-escola deveriam avaliar, se essas cumprem o papel de articuladores da teoria com a prática profissional (Löhr & Silvares, 2006), assim como verificar, se os serviços prestados respondem às demandas da população (Enéas, Faleiros & Sá, 2000). É necessário que a clínica-escola se mantenha atualizada e acompanhe de forma efetiva e eficiente o curso de graduação em Psicologia. Ela não pode estar alheia às importantes transformações sociais, econômicas e políticas pelas quais passa a sociedade. Precisa também estar aberta a inovações que aprimorem e qualifiquem o exercício profissional. No levantamento da literatura feito por Villemor-Amaral et al. (2012), mais recentemente, as autoras classificaram os artigos encontrados, ressaltando também a importância dos estudos de caracterização da clientela, para que os serviços-escola possam contribuir de modo mais efetivo para que a universidade cumpra seu papel social e atender assim as necessidades dos diversos setores da sociedade.

Segundo Campezatto, Menegat, Nunes e Vitola (2005), a caracterização da clientela das clínicas-escolas é imprescindível para seu funcionamento, pois somente assim, produzirá um conhecimento necessário para a elaboração de mudanças, visando atendimentos clínicos adequados e eficazes. A partir desse conhecimento inicial é que poderão ser formuladas estratégias de ação específicas para cada clínica-escola, a fim de que ser oferecidos serviços relevantes e necessários para a população que a utiliza.

Com a caracterização do perfil da clientela será possível direcionar as modalidades de atendimento, o que possibilita um direcionamento eficaz dos serviços oferecidos de acordo com as necessidades da população que busca esse serviço. O presente trabalho tem por objetivo realizar a descrição da clientela que procura os serviços do CPPA (Centro de Psicologia e Pesquisa Aplicada) da UNESP / Assis, para contribuir no planejamento de ações visando melhor atendê-la. Tem como objetivos específicos: caracterizar a clientela a partir de variáveis demográficas: sexo, idade, escolaridade, profissão, ocupação, constituição familiar, bem como o motivo do atendimento (queixas).

 

MÉTODO

Esta pode ser considerada uma pesquisa documental, pois, segundo Neves (1996), a pesquisa constituída pelo exame de materiais, que ainda não receberam um tratamento analítico ou que podem ser reexaminados é denominada pesquisa documental. Tal procedimento permite o estudo de pessoas a quem não se tem acesso físico. Além disso, os documentos são fontes propícias para estudos de longos períodos de tempo. Este é um método de escolha e verificação de dados, que se propõe a produzir novos conhecimentos, criar novas formas de compreender os fenômenos e, a partir daí, conhecer a forma como eles estão sendo desenvolvidos (Sá-Silva, Almeida & Guindani, 2009).

O trabalho apresentado nesta pesquisa é desenvolvido na forma de projeto de extensão universitária, que tem como objetivo oferecer à comunidade a triagem para entrada na clínica-escola de Psicologia e seus possíveis desdobramentos, além de possibilitar ao aluno o treinamento e aprimoramento da sua escuta clínica. Assim, as entrevistas de triagem são realizadas por alunos voluntários de quarto e quinto anos do curso de Psicologia, como uma atividade extracurricular. Por se tratar de material interno da instituição, foi manipulado pela aluna com bolsa de pesquisa, sendo esse acesso permitido pela instituição. Na clínica o procedimento de triagem consistia no preenchimento de uma ficha que se constituía em um roteiro de entrevista semiestruturada, contendo itens como nome, idade, sexo, cidade, queixa, etc. Essas fichas ficam arquivadas na instituição, possibilitando acesso para a coleta de dados.

Procedimento

Foram consultadas cerca de 1700 fichas, preenchidas de 2008 a 2012. Os dados considerados para os fins dessa pesquisa foram: sexo, idade, profissão, constelação familiar e dados clínicos (queixa). Quanto à idade, as triagens foram divididas em três grupos segundo a faixa etária, de acordo com a categorização de Eizirik, Kapczinski e Bassols (2001). Considerou-se como crianças, aquelas com até 11 anos e 11 meses; adolescentes, entre 12 e 17 anos e 11 meses e adultos, os com idade a partir de 18 anos.

Quanto às queixas, a ficha de triagem do serviço apresenta uma classificação de acordo com os estudos de Vilela, Moschioni, Moreira e Pires (2009) e de Jacomo et al. (2009). As categorias estabelecidas são: (A) Imaturidade e atraso do desenvolvimento; (B) Dificuldades escolares; (C) Comportamento confuso / bizarro / regressivo; (D) Comportamento agressivo; (E) Ansiedade / insegurança; (F) Depressão / tristeza; (G) Problemas de conduta; (H) Queixas somatoformes (problemas metabólicos / neurológicos); (I) Dificuldade de lidar com perdas; (J) Distúrbios de sono / alimentação / esfíncteres; (K) Dificuldade nos relacionamentos interpessoais; (L) Dificuldade nas relações familiares; (M) Dificuldade no controle dos impulsos e (N) Outros. E na análise dos dados, foi acrescentada a categoria "Sem especificação", que se refere aos casos sem uma queixa assinalada.

Os dados apresentados foram tabulados e submetidos à análise estatística descritiva. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UNESP / Assis, no1756/2011.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A Tabela 1 apresenta a distribuição das triagens segundo as faixas etárias, conforme descrito acima, em número e em porcentagem, por ano e no total. A freqüência das triagens tiveram variação durante os anos, aumentando progressivamente a partir de 2009, revelando maior procura de pacientes pelo atendimento psicológico ao longo do tempo.

As proporções mantiveram-se semelhantes durantes os anos, em relação à distribuição entre as diferentes faixas etárias. Somente em 2010 houve aumento da frequência de crianças em relação aos demais anos. Observa-se que a maior procura do serviço psicológico foi feita pelos adultos, seguido pelas crianças e, em minoria, pelos adolescentes. Essa distribuição entre as faixas etárias confirma o resultado de outros estudos como os de Louzada (2003), Maravieski e Serralta (2011) e Justen et al. (2010). Uma hipótese para a baixa frequência de adolescentes é a de que, muitas vezes, eles são trazidos pelos pais, isto é, não procuram voluntariamente o atendimento, assim, acabam abandonando o serviço e a possibilidade de ajuda psicológica (Romaro & Capitão, 2003). Quanto às crianças, além de se observar que a procura do atendimento foi alta, notou-se também que, dentro dessa faixa tem aumentado a frequência de crianças com idade menor ou igual a três anos. A Tabela 2 ilustra esse dado.

Exceto em 2009, as crianças de 3 anos ou menores apresentaram aumento progressivo na procura de atendimento. Vale ressaltar que tal porcentagem é referente ao número de crianças triadas. Esse resultado não foi encontrado em outros estudos, sugerindo que esse dado é novo, mostrando uma tendência de mudança. Outra frequência que vem crescendo a cada ano é a de idosos, isto é, adultos com 60 anos ou mais, como é mostrado na Tabela 3.

 

 

A crescente procura de atendimento pelos idosos pode ser entendida não apenas pelo fato de que esta população vem crescendo a cada ano no Brasil. A velhice, antes considerada como algo da esfera privada e familiar, na atualidade passa a ter uma nova configuração. A partir da década de 60, começaram a surgir grupos para a terceira idade, que buscam encorajar a autoexpressão e a exploração de identidades. A cada ano, tais grupos aumentam, criam mais forças e disseminam a ideia de que a velhice é a oportunidade de realizar projetos abandonados em outras etapas da vida e estabelecer relações mais profícuas entre o mundo dos mais jovens e o dos mais velhos (Debert, 2004).

Entende-se assim que essa maior procura de atendimento psicológico por essa população é a confirmação de que os mais velhos deixaram de ser sujeitos passivos, que ficam em suas casas esperando a vida passar e passaram a ser ativos, buscando atividades que lhe proporcionam melhor qualidade de vida. A maior demanda de idosos não foi apontada em outros estudos, como por exemplo, na pesquisa realizada por Louzada (2003), na qual há completa ausência de população idosa em busca do serviço psicológico, o que evidencia a modificação desse dado no decorrer dos anos.

A Tabela 4 apresenta a distribuição de triagens segundo o sexo por ano e no total.

 

 

Em todos os anos as mulheres mantiveram-se em maioria (57,1%), o que corrobora os achados de outras pesquisas. Louzada (2003) obteve o mesmo resultado, sendo 51,1% de sua clientela do sexo feminino e 48,8%, do masculino. Romaro e Capitão (2003) também obtiveram resultados semelhantes, em que as mulheres representaram 57,8% e os homens, 42,2%.

No entanto, quando se analisa essa distribuição nas diferentes faixas etárias, os resultados são diferentes. O presente estudo investigou cada faixa etária em sua especificidade para maior compreensão de quem está buscando os serviços psicológicos. A Tabela 5 apresenta a distribuição das frequências das triagens dos três grupos.

Em todos os anos, as crianças do sexo masculino ficaram em maioria, representando 60% da demanda. Segundo pesquisa bibliográfica de Wielewicki (2011), os meninos representam a maior parte na procura de atendimento, o que concorda com os dados desta pesquisa. Esse é um fenômeno que perdura ao longo dos anos, pois desde artigos publicados em 1980 sobre a caracterização da clientela em clínicas-escolas, encontra-se esse resultado. Ancona-Lopez (1983, apud Merg, 2008) constatou em sua pesquisa de uma clínica-escola da cidade de São Paulo, 68,3% de meninos e 31,7% de meninas.

Segundo Merg (2008), isto pode ser explicado pelo fato de que os meninos apresentam comportamentos mais externalizantes, como agressividade, impulsividade, agitação e atitudes desafiadoras. Tais comportamentos são mais intoleráveis, tanto para a família, quanto para a escola e, consequentemente, estas procuram ajuda psicológica inclusive para atendimento profilático. Já as meninas têm comportamentos diferentes, são os chamados internalizantes, isto é, os caracterizados por retraimento, depressão, ansiedade e queixas somáticas. Dessa forma, são mais difíceis de ser detectados, pois não trazem preocupação, nem à escola, nem à família. Campezatto e Nunes (2007) afirmam ainda que isso possa ocorrer em função de questões culturais e sociais, pois os meninos expressam mais seus conflitos, sendo menos contidos que as meninas. Porém isso não significa que as meninas sofrem menos que os meninos.

Nota-se que não somente a frequência dos adolescentes é baixa, como a diferença entre os sexos manteve-se praticamente nula, exceto em 2008 quando houve grande prevalência do sexo masculino. Resultado similar também foi observado no estudo de Schoen-Ferreira, Silva, Farias e Silvares (2002), em que, ocorreu uma pequena maioria do sexo masculino em relação ao feminino.

Entre os adultos, as mulheres estão em maioria em todos os anos. Pode-se afirmar que esse resultado corrobora os de Campezatto e Nunes (2007), que pesquisaram as clínicas-escola dos cursos de Psicologia da região metropolitana de Porto Alegre. Ao avaliarem pessoas com mais de 21 anos, verificaram que as mulheres estavam sempre em maioria. Louzada (2003) também encontrou esse resultado e atribuiu esse fenômeno às cobranças sociais em relação os homens, que tendem a expressar menos seu mal-estar psíquico.

Observou-se também que no CPPA da UNESP / Assis, como em outros serviços-escola, a busca de atendimento pelas crianças e adolescentes é em sua maioria feita pelas mães que, além de tentarem ajuda para seus filhos, acabam conhecendo o serviço e decidem procurar atendimento para elas mesmas, o que contribui para que a frequência de mulheres seja maior que a dos homens. Ainda que essa informação não tenha sido obtida nas fichas consultadas, isso foi observado pelos estagiários que atenderam os casos.

Tão importante quanto conhecer quem procura o serviço de uma clínica-escola, é entender quais são as queixas relatadas, isto é, porque as pessoas procuram ajuda psicológica. A Tabela 6 apresenta as frequências de cada categoria de queixa, por ano e total. Uma dificuldade encontrada foi que, principalmente em 2012, muitas das fichas não estavam preenchidas corretamente, e não havia queixa assinalada, o que pode ter gerado distorções nesses resultados. Por isso foi criada a categoria N ("sem especificação") para quantificar a falta de indicação da queixa.

Observa-se que há uma distribuição de frequências semelhantes entre as diferentes queixas, isto é, ao longo dos anos, as variações entre a maioria das queixas se mantiveram parecidas. No entanto, na queixa denominada dificuldades escolares (B), por exemplo, houve maior variação, em 2008 e 2009, que representavam 19% e 21% respectivamente, porém foram diminuindo, chegando em 2012 a constituir apenas 7% das queixas. Em contrapartida, a queixa somatoforme (H) tem aumentado a cada ano, em 2008 eram 4%, passando a 11% em 2012.

Tais resultados sugerem que a procura de atendimento psicológico manteve-se, de forma geral, semelhante. Para melhor entendimento das queixas, essa distribuição foi analisada segundo as diferentes faixas etárias. A Tabela 7 apresenta a distribuição de freqüência das queixas das crianças por ano.

Entre as crianças, a queixa com maior frequência é a de dificuldades escolares (B), representando 16% do total. Esse resultado ocorre nos estudos de caracterização de clientela de clínica-escola há muitos anos. Merg (2008), ao fazer um levantamento bibliográfico sobre o assunto, afirma que, desde artigos publicados em 1980, a queixa de dificuldade escolar tem sido observada, mantendo-se constante posteriormente. Questiona-se que, já que esse quadro não se modificou ao longo dos anos, por que nada foi feito a respeito.

Segundo Campezatto e Nunes (2007), ao entrar na escola, a criança enfrenta novas experiências, que se caracterizam como novos problemas para ela resolver. Tais problemas, tanto de ordem interna, quanto externa, podem se constituir em obstáculos à integração de funções como o falar, o pensar e o agir, o que acarretará em dificuldade de aprendizagem. Além disso, a criança pode estar passando por outras questões que lhe causam sofrimento psicológico, que se manifestam no sintoma da dificuldade escolar. É preciso estar atento a essa demanda, para que o psicólogo possa diferenciar um problema fisiológico de um problema emocional, pois a escola pode estar despistando ou camuflando os problemas emocionais infantis.

Entretanto, em 2012 as queixas mais frequentes foram de ansiedade e insegurança (E) e relações familiares (L). Duas hipóteses podem ser levantadas. A primeira é de que os pais podem estar mais atentos a seus filhos, considerando não apenas seu desenvolvimento escolar, mas também seu comportamento nas relações sociais e suas questões emocionais. Outra hipótese é de que o processo de triagem do CPPA vem tomando caráter cada vez mais interventivo, estando o estagiário mais apto a entender a dinâmica do caso a ser atendido e intervindo de acordo, proporcionando ao paciente um melhor acolhimento e favorecendo a emergências de outras queixas que não o comportamento na escola. Também em 2012, observa-se que as fichas sem especificação de queixas constituíram 36% (79) do total de atendimentos, o que indicaria que a diferença constatada pode ter sido influenciada por esse fator.

A Tabela 8 apresenta a distribuição de frequências das triagens dos adolescentes segundo a queixa, por ano e no total.

Pelo fato de ainda se encontrarem em ambiente escolar, tal como as crianças, os adolescentes mostraram uma frequência significativa da queixa de dificuldade escolar (B), representando 11% das queixas, o que pode estar relacionado a questões internas, que acabam se externalizando na aprendizagem. As demais queixas dos adolescentes estão relacionadas principalmente à ansiedade/insegurança (E), dificuldades nas relações interpessoais (K) e dificuldades nas relações familiares (L), o que é esperado para essa faixa etária. Sabe-se que adolescência é a fase de grandes modificações, que podem causar angústias e ansiedades naqueles que estão deixando de ser crianças e estão em busca de uma identidade. Identidade essa que será buscada fora do contexto familiar, causando estranhamento entre os pais, acostumados a ser o centro das atenções de seus filhos. Por outro lado, o adolescente também se sente ansioso e inseguro ao tentar ser aceito por um grupo diferente daquele que sempre teve dentro de sua casa. Portanto, as questões apresentadas pelos adolescentes são normais nesta etapa do desenvolvimento. A ajuda psicológica fica então responsável pelo suporte à passagem dessa fase.

A Tabela 9 apresenta a distribuição das triagens dos adultos segundo a queixa por ano e total.

As queixas mais frequentes são as de ansiedade/insegurança (E), depressão (F) e dificuldade nas relações familiares (L). Esse é um dado que difere de outros estudos sobre o perfil da clientela de clínicas-escola. Campezatto e Nunes (2007), por exemplo, encontraram como queixas mais frequentes entre os adultos as de dificuldades nas relações interpessoais (14,53%) e dificuldade nos processos cognitivos (23,96%).

Outro objetivo deste trabalho foi verificar a existência de diferenças na procura do atendimento psicológico em relação à posição familiar das crianças, isto é, se são filhos únicos ou possuem irmãos. A Tabela 10 apresenta a distribuição de frequência das triagens das crianças segundo a posição familiar por ano e total.

Para investigar se as diferenças encontradas apresentam significância estatística, foi feito o teste qui-quadrado, que mostrou que a proporção de filhos únicos foi significantemente maior em comparação a todos os demais (qui-quadrado = 112,6; p<0,001). Já a proporção de filhos do meio foi significantemente menor do que a dos filhos caçulas e primogênitos (qui-quadrado = 62,04; p< 0,05 e qui-quadrado=39,2; p<0,01, respectivamente). Entre os filhos caçulas e primogênitos não foi obtida diferença significante (qui-quadrado=3,15; p> 0,05).

Alguns estudos na literatura se referem ao comportamento de crianças que não possuíam irmãos. Segundo Sinlgy (2000, apud Santos e Rabinovich, 2011), conforme se dá a diminuição do tamanho das famílias, o individualismo se torna mais presente. Nesse sentido, nas famílias contemporâneas, que estão cada vez mais se configurando com apenas um filho, a ênfase na individualização se manifesta cada vez mais. O autor considera que a criança que não possui irmãos dispõe de espaços próprios desde o seu nascimento, apropriados ao seu desenvolvimento. Pode-se supor, no entanto, que isso não favorece sua saúde emocional, uma vez que os filhos únicos são os que apresentam maior demanda na clínica psicológica, ao menos no presente trabalho.

Tavares et al. (2004), em estudo sobre o comportamento de filhos únicos versus primogênitos e não primogênitos, concluem que filhos únicos convivem predominantemente com adultos durante sua infância. Dessa forma, tornam-se mais maduros e acabam assumindo comportamentos adultos mais precocemente que os demais. Rivera e Carrasquillo (1997, apud Freitas & Piccinini, 2010) referem-se a esse fato como algo bom para as crianças, pois assim aprendem mais rápido a linguagem e o comportamento adultos. Sugerem que não ter irmãos é na verdade uma grande vantagem, pois essas crianças recebem mais reforços positivos e elogios dos pais, o que acaba contribuindo para a melhoria de sua autoestima.

Há algumas contradições nas ideias sugeridas por tais estudos, indicando que esse assunto precisa ser discutido melhor. Tais reflexões ultrapassam os limites da presente pesquisa, que aponta para a necessidade de novos estudos que investiguem mais profundamente o tema e como explicar a demanda maior tanto de filhos únicos como de primogênitos.

Também foi investigada a profissão dos adultos, tendo sido encontradas diversas profissões, pulverizadas diante da grande variedade de possibilidades, no entanto algumas se destacaram pela sua frequência. Uma delas foi a de professor, representando 6% do total. Tal resultado indica que esta é uma profissão altamente causadora de estresse, confirmando o que já vem sendo sugerido por outros estudos. Goulart e Lipp (2008) pesquisaram professores do ensino fundamental da rede pública e observaram que tais profissionais apresentavam sintomas de irritabilidade e cansaço excessivos e angústia diária. Concluíram que essa profissão é caracterizada por sua complexidade e alta responsabilidade, fatores que podem abalar o equilíbrio interno, sendo que nem sempre essas pessoas possuem a capacidade para lidar adequadamente com essas situações. Além disso, as escolas não oferecem suporte psicológico a esses profissionais, o que os obriga a buscar ajuda em outro lugar. Dessa forma, fica clara a necessidade de atenção voltada a essa classe de trabalhadores, não apenas em relação a um atendimento específico na clínica, mas também à criação de ações de prevenções e apoio a essa demanda.

Outra ocupação com maior freqüência foi a classificada como Do lar, representando 9% de todas as profissões. Esse dado corrobora os resultados constatados quanto às diferenças entre os sexos, isto é, as mulheres estão em maior número na procura do atendimento psicológico, o que está relacionado ao fato de que, na maioria dos casos, são as mães que buscam o atendimento para seus filhos. Uma hipótese que se pode levantar é de que mulheres, que não trabalham fora de casa, têm mais tempo e disponibilidade para buscarem ajuda psicológica, uma vez que não possuem restrições com horários definidos como as que trabalham. Assim, têm maior disponibilidade tanto para si mesmas, quanto para o cuidado de seus filhos.

 

CONCLUSÕES

A análise da demanda da triagem de uma clínica-escola permite uma melhor compreensão das necessidades da população que procura esses serviços. Portanto, uma compreensão aprofundada da clientela é de fundamental importância para o planejamento de ações, garantindo a qualidade do atendimento psicológico.

Além do mapeamento das características da clientela, esta pesquisa indica uma orientação quanto às modalidades de atendimento no serviço, que devem ser compatíveis com a demanda que recebe. Tais resultados darão também àquele que recebe o usuário, um suporte para que possa realizar uma triagem de caráter interventivo, já nos primeiros contatos, resultando em um processo, em si mesmo, terapêutico. Isto é, o maior conhecimento da demanda recebida facilitará a escuta acolhedora e atenta para a triagem.

É válido lembrar que algumas dificuldades foram encontradas ao longo da pesquisa. Uma delas foi a falta do preenchimento correto das fichas de triagem, o que pode ter acarretado em algumas distorções nos resultados obtidos. Dessa forma, acentua-se a importância do comprometimento daquele que realiza a triagem, não só no contato momentâneo com o paciente, mas com o todo o processo. Esses dados mostram-se também, fundamentais para a pesquisa documental, uma vez que foi percebido que os resultados confirmaram os de outros estudos acerca do assunto. Por outro lado, a atualização dessas pesquisas pode mostrar que a configuração da clientela, embora constante em alguns aspectos, pode apresentar mudanças em outros, com o passar dos anos, revelando diferenças nas características da população. Além de questões a respeito do trabalho dos profissionais que realizam o atendimento psicológico, os resultados permitem avaliar também as necessidades de infraestrutura da clínica-escola, sendo possível analisar, se as condições físicas estão de acordo com as necessidades da demanda recebida.

O objetivo do trabalho, de caracterizar a clientela, buscando oferecer indicativos para a melhoria da qualidade dos serviços prestados, foi atingido, podendo ser sugeridas diferentes ações. No entanto outros estudos devem ser empreendidos para se fazer generalizações.

 

REFERÊNCIAS

Ancona-Lopez, S. (2005). A porta de entrada: Reflexões sobre a triagem como processo interventivo. In C. P. Simon, L. L., Melo-Silva & M. A. Santos (Orgs.). Formação em Psicologia: Desafios da diversidade na pesquisa e na prática. (pp. 243-254). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Campezatto, P.V.M.; Menegat, C.B.; Nunes, M.L.T. & Vitola, J.C. (2005). Interface entre a Psicologia Clínica e a Psicologia da Saúde no Serviço de Atendimento Psicológico da PUC/ RS. In L. L. Melo-Silva, M. A. Santos, C. P. Simon & et al. Formação em Psicologia: Serviços- escola em debate. (pp. 119-137). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Campezatto, P.V.M. & Nunes, M.L.T. (2007). Atendimento em Clínicas-Escola de Psicologia da região metropolitana de Porto Alegre. Estudos de Psicologia, 24(3), 363-374.         [ Links ]

Debert, G.G. (2004). A reinvenção da velhice: Socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: USP/ FAPESP.         [ Links ]

Enéas, M.L.E.; Faleiros, J.C. & Sá, A.C.A. (2000). Uso de psicoterapias breves em clínica-escola: Caracterização dos processos com adultos. Psicologia: Teoria e Prática, 2 (2), 9-30.         [ Links ]

Eizirik, C.L.; Kapczinski, F. & Bassols, A.M.S. (2001). O ciclo de vida humana: Uma perspectiva psicodinâmica. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Freitas, A.P.C.O. & Piccinini, C.A. (2010). Práticas educativas parentais em relação ao filho único e ao primogênito. Estudos de Psicologia, 27(4), 515-528.         [ Links ]

Goulart, E.Jr. & Lipp, M.E.N. (2008). Estresse entre professoras do ensino fundamental de escolas públicas estaduais. Psicologia em Estudo, 13 (4), 847-857.         [ Links ]

Jacomo A.C.S.; Silva, A.D.L.; Bertho, F.C.A.; Medeiros, R.F.; Bottari, R.S. & Pires, M.L.N. (2009). Para o que adultos procuram ajuda? Uma caracterização preliminar da clientela atendida na clínica-escola de Psicologia da UNESP, campus de Assis. Anais do XVII Encontro de Serviços e Clínicas-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo. Marília, SP: FUNDEPE. (CDROM).         [ Links ]

Justen, A.; Paltanin, E.S.; Maroneze, G.S.; Vissovatz, M.M.; Dal Prá, J. & Feltrin, J. (2010). Identificação da população atendida no Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Paranaense. Arquivos de Ciência da Saúde UNIPAR, 14(3), 197-209.         [ Links ]

Lohr, S.S. & Silvares, E.F.M. (2006). Clínica-escola: Integração da formação acadêmica com as necessidades da comunidade. In E. F. M. Silvares (Org.), Atendimento psicológico em Clínicas- escola. (pp. 11-22). Campinas: Alínea.         [ Links ]

Louzada, R.C.R. (2003). Caracterização da clientela atendida no Núcleo de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Espírito Santo. Estudos de Psicologia, 8 (4), 451-457.         [ Links ]

Maravieski, S. & Serralta, F.B. (2011). Características clínicas e sociodemográficas da clientela atendida em uma clínica-escola de Psicologia. Temas em Psicologia, 19(2), 481-490.         [ Links ]

Melo-Silva, L.L.; Santos, M.A. & Simon, C.P. (2005). Serviços-escola em Psicologia: A construção do saber prático. In L. L. Melo-Silva; M. A. Santos & C. P. Simon (Orgs.), Formação em Psicologia: Serviços-Escola em Debate. (pp. 21- 27). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Merg, G.M.M. (2008). Características da clientela infantil em clínicas-escola. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Psicologia (PUCRS). Porto Alegre.         [ Links ]

Neves, J.L. (1996). Pesquisa qualitativa: Características, usos e possibilidades. Caderno de Pesquisas em Administração, 1(3). Disponível em: <http://www.ead.fea.usp.br/cad-pesq/arquivos/C03-art06.pdf>         [ Links ].

Perfeito, H.C.C.S. & Melo, S.A. (2004). Evolução dos processos de triagem psicológica em uma clínica-escola. Estudos de Psicologia, 21(1), 363-374.         [ Links ]

Romaro, R.A. & Capitão, C.G. (2003). Caracterização da clientela da clínica-escola de Psicologia da Universidade São Francisco. Psicologia: Teoria e Prática, 5(1), 111-121.         [ Links ]

Sá-Silva, J.R.; Almeida, C.D. & Guindani, J.F. (2009). Pesquisa documental: Pistas teóricas e metodológicas. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, 1(1), 1-15.         [ Links ]

Salinas, P. & Santos, M.A. (2002). Serviço de triagem em clínica-escola de Psicologia: A escuta analítica em contexto institucional. Psyché, 1(9), 177-196.         [ Links ]

Santos, M.A.; Melo-Silva, L.L.; Pasian, S.R.; Oliveira, E.A. & Garducci, P.C. (2005). A trajetória do cliente na clínica-escola: Articulação entre serviços na formação profissionalizante em Psicologia. In L. L. Melo-Silva; M. A. Santos & C. P. Simon (Orgs.). Formação em Psicologia: Serviços-Escola em debate. (pp. 139-170). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Santos, L.R.C. & Rabinovich, E.P. (2011). Situações familiares na obesidade exógena infantil do filho único. Saúde e Sociedade, 20(2) 507-521.         [ Links ]

Schoen-Ferreira, T.H.; Silva, D.A.; Farias, M.A & Silvares, E.F.M. (2002). Perfil e principais queixas dos clientes encaminhados ao Centro de Atendimento e Apoio Psicológico ao Adolescente (CAAA) - UNIFESP/EPM. Estudos de Psicologia, 7(2), 73-82.         [ Links ]

Tavares, M.B.; Fuchs, F.C.; Diligenti, F.; Abreu, J.R.P.; Rohde, L.A.P. & Fuchs, S.C.P.C. (2004). Características de comportamento do filho único vs filho primogênito e não primogênito. Revista Brasileira de Psiquiatria, 26(1) 17-23.         [ Links ]

Vilela, C.B.; Moschioni, M.F.; Moreira, A.M. & Pires, M.L.N. (2009). Descrevendo as queixas de quem procura ajuda: Caracterização preliminar da clientela de crianças e adolescentes atendidos na clínica-escola de Psicologia da Unesp, campus de Assis. Anais do XVII Encontro de Serviços e Clínicas-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo. Marília: FUNDEPE.         [ Links ]

Villemor Amaral, A.E.; Luca, L., Rodrigues, T.C.; Leite, C.A.; Lopes, F.L. & Silva, M.A. (2012). Serviços de Psicologia em clínicas-escola: Revisão da literatura. Boletim de Psicologia, LXII (136) 37-52.         [ Links ]

Wielewicki, A. (2011). Problemas de comportamento infantil: Importância e limitações de estudos de caracterização em clínicas-escolas brasileiras. Temas em Psicologia, 19(2), 379-389.         [ Links ]

 

 

Recebido em 01/04/14
Revisto em 15/11/2014
Aceito em 20/11/14

 

 

* Endereço para correspondência: Helena: Av. Prof. Mello Moraes 1721. Cidade Universitária. São PauloSP. CEP: 05416-002 - SP. Telefone: (11) 99687.6343. E-mail: mariana_aporto@hotmail.com; hrinaldi@usp.br ; luisalourovalente@gmail.com
1 *Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP - Processo 2012/21536-3)
2 Center for Research and Applied Psychology

Creative Commons License