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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.65 no.142 São Paulo Jan. 2015

 

RESENHA

 

 

Sonhos da matéria e matéria dos sonhos, na perspectiva de Walter Trinca

 

Dreams of matter and matter of dreams in Walter Trinca's perspective

 

 

Resenhado por Walter José Martins Migliorini*

Departamento de Psicologia Clínica - UNESP, Assis - SP - Brasil

 

 

Trinca, W. (2014). Viagem ao coração do mundo: A apreensão da imaterialidade. São Paulo: Vetor. 176 p.

Qual o alcance de nossa experiência pessoal? Até que ponto nossa interioridade está em condições de entrar em sintonia com facetas sutis da existência, tais como leveza, frescor, luz, harmonia, integração, espontaneidade, cintilância, alargamento, fluidez e profundidade? Quem já não foi pego de surpresa por um instante de encantamento com o mundo?

Embora façam parte do viver comum, esses estados fugidios da mente não costumam ser objeto de estudo da psicanálise. Walter Trinca tem o mérito e a coragem de investigá-los em "Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade" (2014). O tema em questão - os estados de expansão da consciência - há muito o têm inquietado e já foi tema de publicações anteriores. A raiz desse interesse talvez se encontre na compreensão clínica do autor de que o sofrimento psíquico está vinculado essencialmente à perda de contato do indivíduo com o núcleo de sua interioridade. Esse processo é vivenciado como empobrecimento da consciência por saturação sensorial ou por impregnações de fragilidade. Em contrapartida, a expansão da consciência se faz pelo caminho inverso, o das experiências de interiorização e sintonia profunda do indivíduo consigo mesmo e com o mundo. Nessa perspectiva, a vivência de infinitude se torna, respectivamente, sofrimento medonho de solidão absoluta ou sentimento de estesia diante da grandeza misteriosa e incomensurável do Universo. O objetivo do autor é "apontar a existência de uma perspectiva de observação e estimular a construção de um relacionamento que impulsionem a consciência da imaterialidade do mundo" (p. 10).

O ponto de partida dessa viagem é, necessariamente, o contato do indivíduo consigo próprio, cuja intensificação favorece uma atitude de receptividade e mobilidade psíquica frente à realidade interna e externa. Para isso, é fundamental a disposição para se desprender das interferências de sistemas de pensamento rígidos e preconcebidos, abrindo-se para as possibilidades de encontro com o inesperado. Nota-se, aqui, uma semelhança com o processo criativo, com a atenção flutuante e a associação livre.

O livro representa um esforço de apreensão teórica e descritiva de experiências de plenitude e de encantamento com a imaterialidade do mundo, ilustradas com exemplos pessoais ou emprestados de outros autores. Como uma espécie de caleidoscópio, os títulos do capítulos anunciam essas dimensões surpreendentes do viver: radiância, presença vicejante da vida, harmonia silenciosa, estética do infinito, assombro, dimensão cósmica e eterno retorno. Um dos exemplos mais ilustrativos da capacidade humana de apreensão da imaterialidade é o do heroico ativista da resistência francesa Jacques Lusseyran que, mesmo cego desde os oito anos de idade, sentia a presença de uma luz que permitia que ele "enxergasse" o mundo externo. Essa luz era descrita como interna e externa e o seu foco "aumentava ou diminuía em função da qualidade do relacionamento consigo próprio e com a realidade exterior" (p. 59). Em momentos de tensão emocional, a perda de contato com o seu ser interior lançava-o a uma vivência de escuridão.

A leitura do livro de Walter Trinca é também um convite para que o leitor se deixe levar por suas memórias de encantamento e plenitude. Desse modo, me recordei que, há muitos anos atrás, ao visitar pela primeira vez uma exposição de aquarelas, um amigo se empenhava em explicar que os efeitos de luz e sombra que se via nas telas eram obtidos por variações de tonalidades de cor e não por aplicação direta de tinta branca ou preta. Essa observação me pareceu interessante, mas não teve impacto sobre mim. Procurando ser mais explícito, ele forneceu a seguinte ilustração para os seus argumentos: havia um vaso no salão com uma folhagem alta e robusta e a luz do sol se infiltrava pelas folhas em infindáveis tons de verde. Apontando para a folhagem, disse entusiasmado: "Percebe que só há cores?" Nesse momento, tive a impressão de que o tempo parou e percebi, maravilhado, os coloridos dando contorno às formas (e não o contrário) e que luz e sombra eram composições de inumeráveis matizes de cores. O mundo era pura cor nesse momento que provocou em mim uma espécie de despertar e de revelação. Apreensão da imaterialidade.

Walter Trinca argumenta que nesses instantes de epifania captamos os sonhos da matéria e que há, portanto, uma espiritualidade fenomênica inerente à natureza passível de ser desvelada em nosso cotidiano. Em "Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade" (2014), ele acena com essa possibilidade e, de modo surpreendente, ensina que ao nos interiorizarmos somos devolvidos para o mundo e o reencontramos de forma ainda mais intensa e encarnada. O livro é um convite para explorarmos o que está para além das fronteiras que convencionamos denominar saúde ou maturidade. E para isso não há idade: recordo-me de um garoto de sete anos que, em dia de frio, absorto com a visão de uma sopeira que fumegava sobre a mesa, me perguntou se a fumaça era o véu do vento.

A investigação da capacidade do ser humano de transitar e acessar esses fenômenos não sensoriais tem um lugar específico na obra do autor: a concepção de um modelo global da mente. No livro "Psicanálise compreensiva: Uma concepção de conjunto" (Trinca, 2011) em que esse modelo é apresentado, os estados de ampliação da consciência compõem um degradê com os de perturbação psíquica. Ambos são considerados como as duas direções de um mesmo espectro, sendo que o grau de contato do indivíduo com o próprio ser interior é que definirá as possibilidades de acesso a fenômenos não sensoriais e o colorido da viagem ao coração do mundo.

 

REFERÊNCIA

Trinca, W. (2011). Psicanálise compreensiva: Uma concepção de conjunto. São Paulo: Vetor.         [ Links ]

 

 

Recebido em 04/07/2015
Aceito em 08/07/2015

 

 

* Endereço para correspondência: Avenida Dom Antonio, 2100. Assis - SP. CEP 19806-900. E-mail: walter@assis.unesp.br

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