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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.66 no.144 São Paulo Jan. 2016

 

RESENHA

 

 

História dos testes psicológicos

 

Psychological tests history

 

 

Resenhado por Maria Luísa Louro de Castro Valente*

Universidade Estadual Paulista UNESP

 

 

Silva, M. C. V, M. (2011). História dos testes psicológicos. São Paulo: Vetor, 152p.

Dando continuidade às resenhas que se direcionam à apresentação do pensamento de vários trabalhos ligados ao estudo dos testes psicológicos em nosso país, foi selecionada a obra aqui apresentada. É uma resposta à necessidade de estudos teóricos e de pesquisas que possam garantir confiança no uso de técnicas na avaliação psicológica.

No prólogo a autora apresenta o objetivo maior do livro, que parte da premissa de que um teste psicológico é um rótulo genérico, inapropriado para abrigar em seu teto dois conjuntos de técnicas de exame psicológico que têm fundamentos históricos, epistemológicos e metodológicos distintos. Os de base clínica e os de base psicométrica. Retomando o início da Psicologia e dos testes psicológicos, considera a vertente desenvolvida pelo inglês Galton, para quem o exame padronizado de grande número de indivíduos poderia revelar as diferenças mentais existentes entre eles, e dialoga com a abordagem do francês Binet, que sendo um clínico, examina os seus pacientes na busca de um diagnóstico, e que tem como resultado o desenvolvimento da psicometria nos Estados Unidos. Esta abordagem apresentou profundo impacto no uso dos testes psicológicos, na profissão de psicólogo e no papel da Psicologia. O papel destes dois pesquisadores foi fundamental na estruturação da Psicologia como campo científico e na prática profissional nos primeiros anos do século XX, bem como no desenvolvimento teórico posterior.

A autora recorre a Bourdieu e a seus pressupostos teóricos para estabelecer o poder que permitiu, na época, a escolha do objeto de estudo e a expressão do pensamento dos autores, nas entrelinhas podemos entender também a sua escolha pelo assunto. Considera não só a obra, mas principalmente as vidas de Galton e de Binet em seu contexto histórico e social, buscando, como sugerido na sua citação de Figueiredo (2007), que este trabalho possa contribuir para

a construção de uma história da Psicologia, entendida como história dos conflitos, de suas origens na vida e da sociedade e da cultura, de suas implicações teóricas, ideológicas e políticas. Uma história que, estando ainda por fazer, teria uma função essencial na formação do psicólogo e deveria ser contemplada em todos os currículos de graduação (p. 17).

Nos capítulos dois e três a autora apresenta as trajetórias da vida desses dois psicólogos. Do primeiro, se pode dizer que foi de um exímio artista do social, sabendo onde buscar e como encontrar prestígio, valorizar o que possuía e ressaltar características que pressentia serem admiradas. Um profissional que perpassou por vários campos do saber, que buscou, num golpe de mestre, a escolha de uma área ainda não mapeada, apresentando preconceitos de gênero e raciais, e que pesquisou a eugenia como área de maior interesse. Porém teve como contribuição, apesar de tudo, o estudo e a invenção de métodos que possibilitaram a abordagem psicológica científica do estudo da mente. Nas palavras da autora, "foi um investigador hábil na aplicação da matemática à pesquisa de temas nem sempre relevantes e de rigor metodológico muitas vezes questionável" (p. 49). Uma apresentação elegante para um sujeito ambicioso e desejoso de reconhecimento: um oportunista.

O outro psicólogo, Binet, sem dúvida um profissional competente e meticuloso, era o oposto, sem as habilidades a que o meio social dá valor. Um trabalhador incansável, que valorizava seus ídolos e mestres e que por isso pagou um alto preço, pois não ousou se opor à sua autoridade. Só mais tarde adquiriu a independência intelectual suficiente para apresentar os fatos que não se amoldavam às teorias existentes. A autora o apresenta como uma pessoa amável e gentil, introvertido e tímido, sem malícia, empático com os outros, mas também como "um péssimo jogador", pois desconhecia as regras do jogo. Criador de um instrumento para o diagnóstico de crianças, aceitou ser apresentado como um psicólogo da Psicologia experimental, quando teve um trabalho relevante, que muito se aproxima de um pesquisador da personalidade, pairando na área dos métodos projetivos. E aqui podemos entender o carinho e a admiração da autora pelo pesquisado e por seu trabalho. Carinho e admiração que consegue partilhar com os leitores.

No terceiro capítulo a autora vem considerar a aplicabilidade e o desenvolvimento do que havia sido proposto. Mas o momento histórico vivido nos Estados Unidos vai transpor o pensamento desenvolvido na Europa e implementar programas de testagem em larga escala. O uso indevido de testes, já previsto por Binet, concretiza-se e os mesmos vão ser usados na perspectiva eugênica que embasou o seu desenvolvimento por Galton e assim "a escala de Binet criada como uma forma de ‘medir a inteligência' de modo mais rápido e objetivo vai se tornar um instrumento ideal para os psicólogos colocarem o teste a serviço do interesse social"(p.76). Quando de seu desenvolvimento, o objetivo proposto era auxiliar escolares, mas se converteu num instrumento de discriminação eugênica ao ser aplicado em milhares de crianças, principalmente a imigrantes e seus filhos, muitos sem um adequado conhecimento da língua, descontextualizando o ambiente em que viviam, as questões propostas e utilizando-o em estudos sem rigor metodológico. Assim, com o aval de autoridades do governo, de intelectuais e das universidades, os testes psicológicos sofreram um desvirtuamento na sua fundamentação e, principalmente, no seu uso. O social se sobrepôs aos direitos individuais.

No quarto capítulo, duas correntes de investigação da personalidade dialogam. Uma, mais ligada à tradição europeia, com conceitos próprios da Psicanálise, conta com uma perspectiva qualitativa, com a aplicação individual das provas que são voltadas para o subjetivo e o singular, buscando esclarecer o significado psicológico do indivíduo. Leva em conta as reações afetivas do aplicador, considerando o seu papel no processo, e promove métodos de investigação associados à Psicologia profunda e a outras disciplinas de investigação do humano; faz uso de material ambíguo; compara o indivíduo consigo mesmo em várias situações propostas e considera que as respostas emitidas são singulares e determinadas pela história de vida da pessoa. Mas os testes, em seu conceito psicométrico de validade e de fidedignidade, são provas, que, para serem avaliadas, contam com método próprio, com menor rigor estatístico sim, mas de melhor qualidade e mais adequados ao uso clínico. Quanto à crítica do menor rigor estatístico, podemos considerar que dois psicólogos experimentados deverão avaliar a mesma prova e chegar ao mesmo resultado, ainda que utilizando recursos diferentes.

A outra corrente de investigação da personalidade desenvolvida basicamente nos Estados Unidos se constitui na tradição americana de trabalhar com grande número de pessoas, usando aplicações coletivas, análise quantitativa, na qual o desempenho do indivíduo é comparado com o de uma determinada população, num padrão previamente definido. O desenvolvimento de inventários de personalidade, escalas e testes se incorporam à avaliação que deve ser feita em escolas, hospitais, no exército, nas empresas para contratar e avaliar funcionários de diferentes níveis e, principalmente, em tribunais e presídios. Na avaliação da autora, os testes psicológicos desempenharam "várias funções importantes para o estabelecimento e a promoção do conhecimento psicológico e para a consolidação da identidade profissional dos psicólogos" (p. 94). Refere-se à pátria americana, numa constatação de que essa foi uma realidade que se estendeu pelo mundo.

No capítulo seguinte é apresentada a mudança de direção no desenvolvimento das ideias psicológicas, que passa dos Estados Unidos para a Europa e posteriormente para o Brasil. A influência americana, bem como sua abordagem teórica, também desembarca aqui. Segundo a autora, já em 1920, profissionais de áreas como a Medicina, a Pedagogia, o Direito e as organizações, buscavam na Psicologia fundamentação para as suas práticas. Ressalta também que a Psicologia brasileira teve forte influência da Psicologia europeia, principalmente da francesa, mas a escala Binet, aqui utilizada, adaptada por Burt e introduzida por Medeiros e Albuquerque, foi a que teve maior influência de Galton e de suas ideias eugênicas. Pode-se enfim perceber que os testes psicológicos eram muito usados nos vários setores da vida e da economia brasileiros, mas que a Psicologia clínica, propriamente dita, não se constituía em modalidade de atuação no período inicial. Nessa época a Psicologia, considerada como sendo subsidiária da Medicina, ficou livre da praga psicométrica e das quantidades. A partir da segunda guerra ocorreu uma expansão dos métodos projetivos, o Rorschach e o TAT se desligaram das raízes clínicas e experimentais e tornam-se as grandes técnicas de investigação da personalidade. Em 1962 é reconhecida e normatizada a profissão de psicólogo no país e a utilização de métodos e técnicas da Psicologia passa a ser função privativa do psicólogo e estes são tratados genericamente como Testes Psicológicos.

O sexto capítulo é mais uma cereja neste manjar que nos é servido pela professora Maria Cecília. Mostra claramente que as técnicas psicométricas, embasadas na estatística primam pela quantificação, criaram um constructo, o QI, e o consolidaram, mas ignoraram o principal, a abordagem humanística e holística do seu criador, Binet. Para ele a inteligência era um constructo conveniente e complexo, relacionado às funções superiores da capacidade de julgamento, possuía uma dimensão multiforme e era impossível de ser mensurada, fazê-lo era simplificá-lo. A sua escala não se prestava ao estabelecimento de hierarquia entre crianças e servia para conhecer e possibilitar um aprimoramento na educação especial para aquelas que dela necessitassem. São os instrumentos psicométricos, que consideram a inteligência inata, abstrata, unilinear e dominante sobre todas as outras capacidades. Para validar estes instrumentos, a Estatística vai utilizar a análise fatorial e a correlação. Para a autora, e segundo Gould (1999), a sua utilização para investigar a estrutura física do intelecto apresenta profundos erros conceituais. Já as técnicas projetivas devem ser rigidamente submetidas ao método clínico. Método que utiliza todos os conhecimentos e disciplinas do funcionamento da personalidade, as teorias da personalidade, a Psiquiatria, a Antropologia e a Psicologia da evolução, entre outras. São técnicas qualitativas que não têm verdades em si, em que as respostas adquirem sentido, apenas no contexto em que são obtidas e dependem da habilidade e experiência do profissional para articular os dados. Isto posto, termina a autora se questionando se o rótulo de testes psicológicos é adequado à diversidade de instrumentos de investigação.

O próximo capítulo, o sétimo, tem como mote a seguinte questão: tendo como origem duas abordagens tão distintas, uma, a psicométrica que levou à criação de instrumentos de aplicação em massa, com o uso de estatísticas e que consolidou a profissão de psicólogos como agentes de engenharia social alinhados a ideais eugenistas, chegando a servir à exclusão social, e a outra, originária de uma tradição clínica, que partiu da necessidade prática de identificar crianças que precisavam de assistência para acompanhar o currículo escolar, uma abordagem que era voltada para o diagnóstico, utilizando instrumentos, que tinham como objetivo contribuir para o encaminhamento e a intervenção e o acompanhamento de cada caso a partir da investigação dos processos mentais superiores. Podem estas técnicas, oriundas de diferentes e tão opostas tradições, merecerem a mesma denominação? Certamente que não.

Depois de apresentar uma ampla discussão sobre a aplicação, suas características, análise e natureza dos dados obtidos, critérios de validação dos instrumentos, lança a autora uma questão, para nós, essencial. A da qualidade da formação do profissional. Não só da qualidade técnica, mas das características de sensibilidade e intuição, da escuta clínica que o profissional poderá realizar. Sem preconceitos, aberto, disponível, sem arrogância, dono de uma arte interior que lhe permita ouvir o que é dito, o que é calado, o que é demonstrado através das linguagens, verbais, pré-verbais e não verbais do comportamento da pessoa a ser escutada. Quanto mais rico de escuta, de interesses, de vida e de experiência for o profissional, melhor será a sua compreensão de si mesmo e do outro.

Nas riquíssimas considerações finais a autora aponta que, tal como fizera Galton, que se armou de gráficos, tabelas e números para convencer a comunidade científica e a sociedade em geral da qualidade e necessidade de seu trabalho, o CFP (Conselho Federal de Psicologia), quando questionado por descontentes, também se armou do direito de arbitrar o que os psicólogos podem ou não usar, assumindo a função de instância máxima para determinar o que é uma verdade científica ou não é. Um papel semelhante ao desempenhado por Galton, arrogante, autoritário e oportunista.

A avaliação psicológica é uma questão complexa, multifacetada, que envolve aspectos interligados de modo inextricável que merecem abordagens menos simplistas que a mera validação estatística dos instrumentos - um critério copiado de associações que operam em nações de tradições históricas, culturais, sociais e científicas bastante diferentes das nossas (p.137).

Finalizando, cabe-me dizer da honra por poder apresentar tais considerações de um livro que merece ser adotado na íntegra nas nossas disciplinas dos cursos de graduação. Pela sua capacidade de síntese, pela crítica elaborada aos oportunistas que, cobertos de razões e, fundamentados por estatísticas e gráficos, nos empurram, ou tentam fazê-lo, goela abaixo seus preconceitos, chicanas, jogos que se destinam a tudo menos à educação e esclarecimento do conhecimento da Psicologia.

 

 

Recebido em 18/05/2016
Aprovado em 30/05/16

 

 

* Endereço para correspondência: Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Departamento de Psicologia Clínica, Av. D. Antônio 2100. CEP: 19806-900 Assis, SP. E-mail: luisalourovalente@gmail.com

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