SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.67 número146A contribuição da calatonia como técnica auxiliar no tratamento da fibromialgia: possibilidades e reflexões índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.67 no.146 São Paulo jan. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

As vicissitudes da clínica psicanalítica com crianças no século xxi: considerações técnicas no contexto brasileiro

 

The vicissitudes of the child psychoanalytic clinic in the 21st century: technical considerations in the brazilian context

 

 

Jorge Luís Ferreira Abrão*

Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Universidade Estadual Paulista - UNESP

 

 


RESUMO

Sustentado na hipótese de que a transmissão da psicanálise e as transformações socioculturais do século XX têm reflexos tanto nas formas de manifestação do sofrimento psíquico, quanto no manejo da técnica, este artigo tem por objetivo demonstrar as especificidades técnicas da clínica psicanalítica com crianças na atualidade. Adotando o método histórico, a pesquisa consistiu em um levantamento bibliográfico sobre o tema em periódicos nacionais entre 1996 e 2010. Foram identificadas duas fronteiras de desenvolvimento teórico e técnico da psicanálise com crianças no Brasil: as práticas de intervenção na relação mãe-bebê e a análise de pacientes em que prevalecem estados mentais primitivos, dos quais o autismo é um elemento paradigmático. Partindo destas práticas foram introduzidas variações técnicas que se consolidaram como tendências na psicanálise com crianças de forma abrangente.

Palavras-chave: Psicanálise, criança, técnica.


ABSTRACT

Supported by the hypothesis that the transmission of psychoanalysis and the social and cultural transformations of the twentieth century reflect both on the forms of manifestation of psychological suffering as in the management of the technique, this paper aims to demonstrate the technical specificities of the child psychoanalytic clinic today. Adopting the historical method, the research entailed a literature review about the topic in national journals between 1996 and 2010. Two frontiers of the theoretical and technical development about child psychoanalysis were identified in Brazil: the intervention practices in mother-infant relationship and the analysis of patients in whom the primitive states of mind prevail, of which autism is a paradigmatic element. Based on these practices, technical changes were introduced and have been widely consolidated as trends in child psychoanalysis.

Key words: Psychoanalysis, child, technique.


 

 

Se tomarmos como marco inaugural da psicanálise de crianças a publicação por Freud, no ano de 1909, do livro Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, que ficou celebrizado como “Pequeno Hans”, chegamos à constatação de que esta modalidade de atendimento psicanalítico, diferenciada do corpo principal da psicanálise em decorrência de uma delimitação técnica específica, conta com aproximadamente 100 anos de existência.

Neste interstício, que percorre todo o século XX, chegando à aurora do século XXI, muitas foram às transformações na organização social, no modo como as relações humanas são estabelecidas e nas concepções acerca da infância. Na esteira destas transformações, as concepções relativas à infância e, por conseguinte, a forma de compreender, educar e tratar a criança, também sofreram sensíveis modificações, de forma tal que o sentimento de infância constituído, segundo Philippe Ariès (1973/1981), no decorrer da Idade Média, começou a ser sensivelmente abalado, dando margens a hipóteses que sustentam o prenúncio do desaparecimento da infância na sociedade contemporânea (Postman, 1982/1999).

Em um movimento dialético, na medida em que uma nova concepção de infância vai ganhando expressão no imaginário coletivo e, que a forma de se relacionar com a criança assume feição diversa daquela originada no século XIX, características impulsionadas, em certa medida, pela própria psicanálise, o campo circunscrito pela psicanálise com crianças vai inevitavelmente sendo chamado a rever sua prática e alargar as fronteiras de suas hipóteses teóricas, de forma a responder a uma nova demanda, que chega à clínica, permeada por novas relações familiares e manifestações sintomáticas diversas.

Em consonância com este raciocínio devemos considerar que a criança, que se encontra em análise, é sempre um ser social e cultural, que traz consigo a marca de seu tempo. Assim, as angústias de uma época convertidas em sintomas, além de informar sobre a dinâmica psíquica da criança, de forma individual e singular, também nos remete a outra dimensão, não menos relevante, que diz respeito ao contexto cultural no qual este sofrimento psíquico foi gerado. Ou seja, embora a clínica psicanalítica se constitua a partir de experiências individuais com cada paciente, que trazem para a análise uma compreensão subjetiva e singular sobre sua relação com o mundo que o circunda, o conjunto destas experiências, a recorrência de determinados sintomas e a compreensão de seus significados na interface com a esfera social, nos informa sobre as características das relações humanas em determinado momento histórico.

Tomemos alguns exemplos que acompanham o desenvolvimento da psicanálise. A clínica freudiana foi marcada pela prevalência de pacientes histéricas, fruto de uma sociedade repressora com relação às expressões da sexualidade, sobretudo no caso das mulheres. Neste sentido Freud se defrontou desde cedo com a importância da sexualidade na gênese dos sintomas neuróticos, teorizando amplamente sobre esta problemática. Por sua vez, Melanie Klein (Abrão, 2001) desenvolveu seu trabalho clínico com crianças majoritariamente entre as décadas de 1920 e 1940, período este delimitado pelos conflitos armados da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais, de tal forma que entre os casos de crianças analisadas neste período predominavam quadros clínicos de neurose obsessiva, condição que possibilitou à autora teorizar sobre a importância dos impulsos agressivos na estruturação do aparelho psíquico. Lacan, por sua vez, dá origem as suas teses psicanalíticas a partir da análise de pacientes psicóticos, particularmente paranóicos, e, partindo desta experiência clínica e das indagações dela decorrentes, procura alargar a compreensão teórica sobre o narcisismo a partir de uma retomada da obra de Freud.

Tal raciocínio encontra respaldo em pensamento análogo proposto por Renato Mezan (2002), no artigo Klein, Lacan: Para além dos monólogos cruzados, que, ao observar as diferenças teóricas entre estes dois autores, constata “que as situações clínicas das quais partem suas respectivas reflexões não são as mesmas ... a meu ver é por causa disso que, desde o início, a elaboração de cada um dos mestres seguirá caminhos divergentes” (Mezan, 2002, p. 275).

De forma análoga ao que ocorreu no passado, o paciente que recorre à psicanálise nos dias atuais, apresenta formas de sofrimento psíquicos que refletem as angústias vividas em seu tempo. Com a intenção de compreender esta nova ordem de subjetivação do sofrimento psíquico, que ganha expressão em diversas formas psicopatológicas para além das neuroses, Marion Minerbo propõe dois modelos de subjetivação, que coexistem de forma paralela e antagônica, denominados de neurose e não-neurose. Para esta autora,

... neurose é a forma de subjetividade paradigmática de uma civilização marcada por instituições fortes, como eram as do século XIX, aurora da Psicanálise. Já a não-neurose é a forma de subjetividade produzida em/por uma cultura cujas instituições estão fragilizadas. É provável que a própria Psicanálise tenha tido seu papel no declínio progressivo da crença nas instituições e suas narrativas, e no surgimento de uma nova sensibilidade cultural, de novas formas de representar o mundo e a si mesmo (chamada pós-modernidade). (Minerbo, 2009, pp. 28-29).

Neste sentido, a neurose, entendida como sintoma social de uma época, foi a primeira forma de organização psíquica compreendida e teorizada pela psicanálise, na medida em que a sociedade contemporânea foi produzindo novas formas de subjetivação, a expressão do sofrimento psíquico encontra novas configurações, que, por analogia à neurose, foram denominadas de não-neurose.

Na mesma linha de raciocínio encontramos o trabalho do psicanalista Gley Costa (2010), cujas hipóteses sobre a clínica contemporânea são veiculadas no livro A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Neste trabalho, o autor sustenta a ideia da existência, na clínica atual, de um grupo de pacientes, cada vez mais frequente, que tem dificuldade de representar a angústia no plano mental, como ocorre nas neuroses, psicoses e perversão; nestes casos a angústia ganharia expressão no corpo, conduzindo a quadros de adições, compulsões sexuais, transtornos alimentares e acting out, manifestações psicopatológicas denominadas pelo autor de clínica do desvalimento. Na tentativa de explicar estas novas evidências da clínica contemporânea, apresenta a seguinte indagação:

A dúvida que frequentemente é levantada a propósito da clínica atual é, se esses pacientes sempre existiram, mas foram por um longo período recusados pelos psicanalistas por não serem acessíveis ao método psicanalítico tradicional, ou se representam uma patologia do mundo contemporâneo, assim como teria sido a histeria uma doença vitoriana, caracterizada por uma forte repressão da sexualidade. Tendemos a pensar que a clínica atual reflete, em boa medida, um refinamento da teoria psicanalítica e, com ele relacionado, uma maior capacidade de acolhimento por parte dos psicanalistas, os quais, no entanto, confrontados com a necessidade de modificar a técnica psicanalítica para tratar esses pacientes sem, contudo, se descuidarem dos pressupostos básicos da nossa prática, entre os quais a neutralidade, a transferência e a contratransferência (Costa, 2010, pp. 26-27).

As mesmas evidências observadas por Minerbo (2009) e Costa (2010) na clínica psicanalítica com adultos também podem ser encontradas na psicanálise infantil, os sintomas que motivam os pais a levarem seus filhos à análise no século XXI ganharam formas distintas daqueles apresentados há 100 anos. Neste sentido, os quadros fóbicos e obsessivos vêm cedendo lugar para manifestações de inibições, quadros de hiperatividade e, mesmo, transtornos do espectro do autismo.

Qual o significado destas transformações evidenciadas na clínica psicanalítica com crianças sob forma de sintomas? Tal qual um sismógrafo, que identifica abalos sísmicos em decorrência da atividade geológica do planeta, as queixas que se materializam na clínica expressam de forma simbólica as novas forma de representação da infância e os conflitos vividos pelas crianças frente a esta nova configuração cultural.

Embora ainda pouco explorada, esta temática começa a se constituir como objeto de interesse da psicanálise. A título de exemplo citamos o artigo “A infância roubada: reflexões sobre a clínica contemporânea”. Valendo-se do conceito de “não-lugar” do antropólogo Marc Augé, termo metafórico empregado para designar os espaços desinvestidos de sentido simbólico, que representam a transitoriedade do mundo moderno, como espaços de trânsito representados, por exemplo, por aeroportos e hotéis, espaços estes que se contrapõem a lugares familiares e simbólicos como a casa, sustentam os autores “a hipótese de a infância atual, vista em nossas clínicas, ser entendida como ‘não lugar’ dentro do tempo da vida” (Favilli, Tanis & Mello, 2008, p. 33). Assim, as crianças que frequentemente chegam à clínica psicanalítica encontram-se fora do lugar da infância, que foi desinvestido em favor de um idealizado mundo adulto, ou ainda, das representações sobrevalorizadas da adolescência, que se configura como um espaço potencial, no qual se conquista parte da autonomia da vida adulta sem as responsabilidades a ela atribuídas: aspectos históricos da psicanálise de crianças no Brasil, principais influências teóricas, adaptações técnicas, que as teorias de referência sofreram no Brasil e inovações da psicanálise de crianças brasileira.

Não pretendemos, neste momento, esgotar os temas aqui propostos, relativos às transformações do conceito de infância que se apresenta na atualidade, ou sobre as formas atuais de sofrimento psíquico da criança que chegam à clínica, pretendemos tão somente demonstrar a ocorrência destes fatos e destacar a necessidade de que a psicanálise amplie suas hipóteses teóricas para compreender esta realidade, bem como se dedique a rever seus parâmetros técnicos na clínica com crianças, de forma a considerar estas variações. A esta problemática devemos acrescentar uma segunda ordem de dificuldades, qual seja: a introdução e adaptação das ideias relativas à psicanálise com crianças produzidas na Europa em um contexto cultural distinto da região em que foram geradas.

Autores como Elias Mallet da Rocha Barros (1995), Sérvulo Augusto Figueira (1991) e Luiz Meyer (1991) têm se dedicado ao tema da difusão e das formas de transmissão, apropriação e desenvolvimento da psicanálise no contexto brasileiro. Mais especificamente sobre o tema da psicanálise com crianças, Jorge Luís Ferreira Abrão (2001), apresentou as principais linhas de difusão desta especialidade no país. Partindo das reflexões destes autores é possível identificar que as teorias psicanalíticas provenientes da Europa sofreram diversas adaptações e ampliações ao serem empregadas pelos analistas brasileiros. Para efeito didático é possível estabelecer três etapas, ou momentos, que balizaram o desenvolvimento de um pensamento inovador no contexto da psicanálise brasileira, a saber: a prática intuitiva, o reconhecimento das transformações e a sistematização teórica.

No primeiro momento, observamos a ocorrência de pequenos ajustes ou modificações na prática clínica, feitos de forma intuitiva e quase imperceptível, com o intuito de tornar o processo analítico mais adaptado às necessidades e às demandas da dupla analítica, que vão sendo constituídas ao longo do trabalho. A característica nodal neste momento é que algumas modificações vão sendo introduzidas na clínica psicanalítica, sem que se tenha obrigatoriamente um olhar reflexivo e crítico sobre essas ocorrências que podem, por vezes, sobretudo no caso de analistas menos experientes, ser negadas conscientemente. Dentro desta configuração, a referência para o trabalho psicanalítico é sempre o sistema teórico dominante, tomado como modelo de identificação; assim sendo, qualquer modificação introduzida é sempre entendida como desvio ou transgressão a ser evitada. Assim, “a importação psicanalítica cria um dilema interessante, pois as transformações que o saber importado sofre não são pensáveis a partir das definições e das auto-representações também importadas” (Figueira, 1991, p. 117).

Em um segundo momento, que denominamos de reconhecimento das transformações, acompanhamos o surgimento de um maior juízo e reflexão sobre as modificações, as adaptações e as ampliações, que os analistas foram introduzindo individualmente em sua prática clínica, e uma consequente reflexão sobre esta nova conjuntura, entendida ora como inovação, ora como desvio e transgressão. Nesta etapa encontramos um reconhecimento mais explícito das inovações incorporadas ao trabalho clínico e, mais do que isto, a convicção das necessidades destas transformações ou, ao menos, de parte delas. No entanto, a fidelidade ao modelo teórico dominante torna o reconhecimento público desta condição indesejado ou temido pelas críticas e efeitos negativos que supostamente ocorreriam.

Por fim, o terceiro momento, delimitado sob a alcunha de sistematização teórica, constitui-se em uma etapa de organização de dados, experiências e informações, e consequente divulgação, por intermédio da publicação de trabalhos científicos, das transformações identificadas na prática clínica, de forma a compartilhar experiências e discutir os efeitos, sejam eles positivos ou não, que estas modificações exercem sobre a psicanálise. Cabe, neste momento, propor elaborações teóricas que deem conta de explicar conceitualmente as modificações que foram incorporadas no trabalho psicanalítico desenvolvido no país ou em dada região, apontando as conexões e as dissidências com relação ao modelo teórico dominante, de modo a estimular o debate científico e a delimitação de um referencial psicanalítico nacional.

Com o intuito de exemplificar os modelos delimitados acima tomaremos um elemento da técnica, no qual estas modificações se tornam bastante visíveis, qual seja: a inserção dos pais no processo analítico da criança. Em um primeiro momento, partindo de uma interpretação dogmática da técnica psicanalítica desenvolvida na Europa, a introdução dos pais durante a análise da criança era entendida como transgressão, no entanto, em função de demandas do atendimento e de características culturais presentes nas relações pais filhos no contexto brasileiro, manter um contato mais regular com os pais mostrou-se produtivo, ainda que tal prática fosse entendida como transgressão. No segundo momento, o que era visto como transgressão começa a ser entendido como uma prática aceitável, de forma que em diversos casos o contato regular com os pais ou mesmo a presença deles em determinados momentos da sessão, durante a análise da criança, torna-se admissível e produtivo, de forma que tal prática começou a ser aceita e divulgada. O terceiro momento compreende uma maior decantação e elaboração dessas transformações, de forma que as modificações técnicas introduzidas e reconhecidas como válidas passam a ser teorizadas e empregadas de forma mais abrangente, como o surgimento de grupos de pais e crianças, constituindo-se uma delimitação técnica com elementos inovadores em psicanálise de crianças, bastante respondente em casos de crianças com transtornos invasivos de desenvolvimento.

Tendo em vista as considerações e delimitações apresentadas acima e considerando os fundamentos metodológicos da pesquisa histórica em psicanálise (Abrão, 2007), realizamos uma pesquisa com o objetivo de apresentar as especificidades da clínica psicanalítica com crianças no século XXI no contexto brasileiro. Com tal finalidade foi realizado um levantamento bibliográfico na base de dados BVS-Psi, tomando como referência os seguintes descritores: psicanálise com crianças, psicanálise infantil, psicanálise e bebês. Tal procedimento foi realizado com o intuito de identificar artigos, em periódicos nacionais, sobre psicanálise com crianças e temas correlatos no período compreendido entre 1996 a 2010, tomando como referência os descritores apresentados acima. A partir deste levantamento foram identificados 181 artigos sobre o tema, que apresentavam esses descritores. É legítimo considerar que muitos outros artigos abordem o tema da psicanálise com crianças no período em questão, no entanto, aqueles que não estavam indexados com os descritores da pesquisa não foram considerados.

A partir da análise dos dados colhidos, um primeiro ponto a ser destacado recai sobre os fundamentos teóricos que subsidiam o trabalho clínico com crianças desenvolvido pelos psicanalistas brasileiros. Não nos parece possível, neste momento histórico, circunscrever a emergência de um pensamento teórico original e dotado de razoável independência, que possibilite singularizar a psicanálise com crianças no Brasil das vertentes teóricas de influência oriundas da Europa. Como ficou evidenciado, a prática em psicanálise infantil existente no Brasil é tributária de matrizes europeias, no entanto esta rede de influências não é linear, sofrendo variações e interferências em decorrência de fatores de natureza histórica e clínica. Podemos considerar, seguindo esta linha de raciocínio que após uma primeira influência fundante da psicanálise com crianças no país, período em que prevaleceu maciçamente o pensamento kleiniano, entendido como sinônimo de análise infantil, outras ascendências teóricas se fizeram sentir.

A prevalência do pensamento kleiniano junto à psicanálise com crianças no Brasil foi modulada por grandes círculos de influência. Inicialmente, a partir de meados da década de 1950 e início da década de 1960, este modelo teórico foi introduzido por profissionais que buscaram formação psicanalítica ou aperfeiçoamento profissional na Sociedade Britânica de Psicanálise, cujos exemplos mais notórios são os de Décio Soares de Souza, no Rio de Janeiro, e Virgínia Leone Bicudo, em São Paulo. Posteriormente, a partir de meados da década de 1960 e com maior contundência, nos anos de 1970, o grupo liderado pela argentina Arminda Aberastury teve forte ascensão sobre a psicanálise com crianças no país difundindo, ainda, as ideias de Melanie Klein (Abrão, 2001).

O surgimento de outras influências teóricas a partir da década de 1980 foi promovendo uma polaridade entre a psicanálise inglesa, representada não só por Melanie Klein, mas por outros autores contemporâneos, que ganharam maior destaque, entre os quais Donald Winnicott, Francis Tustin, Antonino Ferro, e mesmo, Wilfred Bion, são presenças marcantes, e a psicanálise francesa de inspiração lacaniana, a partir dos trabalhos de Françoise Dolto, Maud Mannoni e seus seguidores (Abrão, 2001).

As escolhas dos profissionais, de um modelo ou outro, como matriz teórica de referência para subsidiar a prática clínica, não parece ser um acontecimento meramente ocasional, ao contrário, é modulada por fatores históricos. Desta forma, ao escolher adotar um modelo teórico ou outro, os profissionais brasileiros foram influenciados por alguns fatores, entre os quais se destacam: a presença de psicanalistas de referência em determinada região que, após realizarem formação no exterior, assumiram a função de promover e transmitir determinado modelo teórico e demandas clínicas específicas, tais como necessidades pontuais de determinadas atividades clínicas, que demandam certos suportes teóricos, que se mostrem mais respondentes às necessidades evidenciadas no contexto brasileiro, como, por exemplo, a adoção de modelos teóricos técnicos mais respondentes a práticas institucionais surgidas no Brasil.

Apesar da preponderância das influências teóricas provenientes do exterior, seria ingenuidade pensar que a prática clínica em psicanálise infantil realizada no Brasil se constitui em um mero mimetismo da psicanálise europeia. Sustentados neste raciocínio, identificamos duas áreas principais, que se despontaram como âncoras de desenvolvimento da técnica psicanalítica com crianças, quais sejam: práticas de intervenção da relação pais-bebê e trabalho com crianças em que prevalecem estados mentais primitivos enquanto delimitação psicopatológica, dos quais o autismo se tornou um elemento paradigmático de referência. É razoável sustentar o raciocínio de que essas áreas constituíram importantes fronteiras de desenvolvimento da psicanálise nas últimas duas décadas em todo o mundo, no entanto, o momento atual da psicanálise infantil brasileira, bem mais consolidada e autônoma, permitiu a emergência de reflexões e desenvolvimentos técnicos independentes e originais, refletindo as especificidades da psicanálise com crianças no Brasil.

Partindo deste axioma, cumpre-nos esclarecer as razões pelas quais estas áreas se converteram em importantes focos de desenvolvimento da técnica em psicanálise com crianças. Esses temas, em nosso entendimento, são bastante propícios, enquanto promotores de variantes técnicas na psicanálise com crianças, por terem a especificidade de congregarem dois elementos catalisadores de transformações, notadamente, expansão teórica e responsividade à demanda clínica. Por um lado, estas áreas representam nichos de reflexões e aprofundamento teóricos, que têm possibilitado aos psicanalistas ampliarem suas hipóteses acerca do funcionamento psíquico primitivo, constituindo-se deste modo, em fronteiras para o desenvolvimento da psicanálise. Complementarmente, estas áreas ganham importância na medida em que os aportes técnicos por elas delimitados tornam-se efetivos para o acolhimento de uma demanda crescente na sociedade contemporânea, caracterizada pela prevalência de estados mentais primitivos.

Os elementos acima dispostos, ampliações teóricas, transformações técnicas e demandas clínicas contemporâneas, merecem uma articulação que possibilite visualizar com maior clareza as áreas de interdependência e sobreposição entre eles e seus reflexos na prática clínica em psicanálise com crianças. É legítimo considerar que o desenvolvimento teórico da psicanálise nas últimas décadas, representado pelos autores de referência indicados acima, tem se dedicado, a partir de realidades clínicas distintas, ao estudo do que se convencionou chamar de estados mentais primitivos, cuja presença na clínica psicanalítica tem sido recorrente. Estes autores de referência proporcionaram aos psicanalistas brasileiros substrato teórico e indicações técnicas, que atuaram como parâmetros de orientação, que vieram a subsidiar o trabalho clínico por eles desenvolvido.

Evidentemente a eleição destes autores de referência e a pertinência de suas reflexões teóricas e indicações técnicas não se fez de forma aleatória e tão pouco desvinculada da realidade clínica que caracteriza a psicanálise com crianças no Brasil. Ao contrário, ao se defrontarem com uma demanda clínica, que nas últimas décadas foi assumindo um perfil característico, fortemente marcado pela presença de manifestações psicopatológicas tais como transtornos de hiperatividade, transtornos do espectro do autismo e transtornos psicossomáticos, os profissionais brasileiros foram premidos a esboçar uma compreensão que possibilitasse entender as especificidades clínicas manifestadas pelas crianças na atualidade e, consequentemente, buscar referenciais teóricos capazes de dialogar com esta nova realidade presente na clínica. Como elemento aglutinador de um grande contingente de manifestações sintomáticas, que caracterizam a clínica psicanalítica com crianças na atualidade, reunidas em delimitações psicopatológicas, como as descritas acima, predomina uma organização mental caracterizada pela fragilização do processo de formação simbólica, pela prevalência de relações narcísicas com evidente dificuldade de diferenciação entre a criança e os pais e um funcionamento mental caracterizado pelo predomínio de estados mentais primitivos. Ao serem confrontados com esta realidade os psicanalistas brasileiros, na tentativa de melhor compreendê-la, recorreram a formulações teóricas que vinham refletindo sobre temas correlatos.

Como consequência, variações técnicas começaram a ser introduzidas na prática clínica com crianças, com o intuito de melhor acolher a nova demanda que se faz presente cotidianamente e oferecer um atendimento mais respondente às necessidades manifestadas. É plenamente reconhecível que transformações técnicas possam estar ocorrendo de forma silenciosa no trabalho clínico de natureza psicanalítica com crianças, sem que tais modificações sejam reportadas sob a forma de comunicações científicas, no entanto, algumas áreas se tornaram mais propícias no sentido de possibilitar a delimitação, visualização e comunicação de inovações técnicas, que passaram a se consolidar como tendências na psicanálise com crianças.

Destacamos no decorrer desta pesquisa duas áreas que foram tomadas como fronteiras para o desenvolvimento da psicanálise, isso porque, sendo ainda campos pouco explorados sob a perspectiva prática, não possuem uma delimitação técnica tão específica. Tal conjuntura cria um campo relativamente desprovido de referências prévias, afeito, portanto, a variações ou inovações, que se diferenciam dos padrões já estabelecidos, forjados a partir da análise de pacientes em que predominava uma estrutura neurótica de personalidade.

Em consonância com esta linha de raciocínio, podemos afirmar que os trabalhos de observação de bebês introduzidos por Lygia Alcântara do Amaral em São Paulo, na década de 1950, e no Rio de Janeiro por Rosa Beatriz Pontes de Miranda Ferreira, no início dos anos de 1970, tiveram gradual repercussão de forma a culminar, na atualidade, em práticas de intervenção na relação pais-bebê-família em diversos contextos, transitando das intervenções clínicas às práticas institucionais.

Desta forma, a partir do acúmulo de experiência clínica nesta área, podemos constatar que uma expressiva contribuição técnica, advinda dos trabalhos psicanalíticos de intervenção na relação pais-bebê, foi a ampliação da compreensão relativa à participação dos pais no desenvolvimento psíquico da criança e sua influência nas manifestações sintomáticas dos filhos. Como corolário, encontramos também a adoção de uma postura técnica, na qual os pais são convidados e estimulados a participar ativamente do processo clínico nas intervenções psicanalíticas pais-bebê, por serem considerados elementos integrantes, tanto do processo de adoecimento da criança, quanto das possibilidades de atuação terapêutica. Este pressuposto técnico adotado nas práticas dedicadas à intervenção na relação pais-bebê, aliada a uma necessidade de maior contato com os pais, evidenciada por profissionais que atuavam na análise infantil, culminou na ocorrência de uma variação técnica que passou a ser adotada com regularidade, ampliando consideravelmente a participação dos pais durante o processo analítico da criança. Do ponto de vista prático, isto resultou em uma maior assimilação dos pais no setting psicanalítico da criança, de forma tal que os genitores, além de contribuírem viabilizando o tratamento do filho ou trazendo informações nas entrevistas preliminares, podem integrar o atendimento, sempre que esta demanda surja no contexto terapêutico. Desta forma, encontramos a construção de uma prática clínica muito mais sintonizada com as demandas que emergem no contexto brasileiro, na qual os pais têm uma expectativa de maior participação no atendimento psicanalítico do filho, contribuindo para a delimitação de aportes técnicos originais, sintonizados com as características culturais brasileiras e eficientes sob o ponto de vista do desenvolvimento terapêutico do paciente.

Em outra direção, destacamos uma crescente demanda de pacientes em que prevalecem estados mentais primitivos, sendo que nos casos mais graves a capacidade simbólica apresenta grande comprometimento. Esta realidade clínica, bastante diversa daquela manifestada pelos pacientes neuróticos, a partir dos quais os fundamentos técnicos da análise de crianças foram edificados, impuseram a necessidade da introdução de variações na técnica clássica empregadas com crianças, de forma a possibilitar uma maior compreensão e comunicação com estes pacientes. Neste contexto, as transformações mais evidentes, que reverberaram como tendências majoritárias na análise infantil, podem ser observadas na forma de utilização do brincar no setting e no modo de comunicação da interpretação.

Ainda que o brincar continue ocupando um lugar de destaque na análise infantil, sua importância tem sido relativizada, sobretudo em decorrência de transformações no perfil dos pacientes que chegam à clínica psicanalítica nos dias atuais. Parece verossímil considerar, portanto, que os pacientes mais estruturados do ponto de vista psíquico, com predomínio de um funcionamento neurótico, tendem a aderir com relativa precocidade ao universo adolescente, relegando ao ostracismo as insígnias infantis como o brincar, recorrendo à linguagem verbal como principal forma de expressão e, aqueles que apresentam patologias mais graves, com prevalência de estados mentais primitivos e precariedade dos recursos simbólicos, tendem a empregar uma atividade lúdica mais empobrecida em favor da utilização de identificações projetivas e manifestações corporais como formas de comunicação. Esta condição tem requerido dos analistas de crianças, ora maior habilidade para compreender as associações livres da criança, que por analogia com a análise de adultos se constitui em uma prática relativamente familiar, ora o desenvolvimento de uma aguçada capacidade de compreensão de comunicações não simbólicas, por intermédio da compreensão dos sentimentos contratransferenciais mobilizados pelo paciente.

No tocante à interpretação fica patente uma tendência crescente, que não é exclusiva da psicanálise brasileira, mas que encontra forte ressonância em nosso meio, que diz respeito à forma de construção e comunicação da interpretação ao paciente. Na medida em que o contato com as práticas de observação e intervenção na relação pais-bebê se ampliam, desenvolvendo no analista uma capacidade mais aguçada de observação de estados mentais ainda não submetidos ao crivo da simbolização, e na proporção em que o contingente de pacientes com graves transtornos emocionais tende a crescer, requerendo do analista maior habilidade para representar as experiências emocionais, a interpretação assume caráter mais amplo, que ultrapassa a transcrição de conteúdos simbólicos inconscientes, indo na direção de uma ação que favorece a capacidade criativa, condição que aumenta as possibilidades de representação das experiências emocionais do paciente.

Um último aspecto a modular as transformações técnicas da psicanálise com crianças no Brasil, abordado como tema transversal neste trabalho, merece ser destacado, qual seja: a influência das práticas institucionais.

Em uma breve recensão histórica acerca da articulação entre psicanálise com crianças e práticas institucionais no Brasil, verificamos que a introdução desta especialidade no país ocorreu entre as décadas de 1930 e 1940, por intermédio de Clínicas de Orientação infantil, que inicialmente ofereciam psicodiagnóstico às crianças com dificuldades escolares e orientação a pais e professores. E, posteriormente entre as décadas de 1940 e 1950, dedicaram-se, de forma pioneira, à psicoterapia psicanalítica com crianças (Abrão, 2001). Apesar do caráter inovador representado pelas práticas introduzidas por estas instituições, ao associarem a atenção à criança à teoria psicanalítica, estas iniciativas foram descontinuadas a partir da década de 1960, seja pela conjuntura política do país ou em decorrência do redirecionamento das ações psicanalíticas para dentro das recém-criadas, Sociedades de Psicanálise. Uma inversão desta perspectiva pode ser evidenciada a partir da década de 1990, ocasião em que novas propostas de articulação entre psicanálise e práticas institucionais começaram a surgir. Desta feita, a implantação das referidas práticas, inspiradas na psicanálise, foi ancorada em duas frentes principais, centros de atendimento dedicados a crianças autistas e psicóticas e projetos de natureza social, como berçários creches ou abrigos, voltados ao cuidado de bebês e crianças em situação de risco. A título de exemplo do primeiro grupo, destacamos nesta pesquisa, a Associação Lugar de Vida: Centro de Educação Terapêutica, de São Paulo, e o Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem, no Recife. Em relação ao segundo grupo destacamos a Obra do Berço e a Casa da Árvore, ambas do Rio de Janeiro.

É interessante salientar que as instituições mencionadas, entre muitas outras congêneres existentes, agrupadas nas duas categorias ora referidas espelham as fronteiras de desenvolvimento da psicanálise, que destacamos durante esta pesquisa, corroborando assim duas hipóteses aqui levantadas: uma crescente demanda tanto para o atendimento de crianças, que apresentam sintomas dentro do espectro do autismo ou para o acolhimento das dificuldades sintomáticas inerentes ao relacionamento pais-bebê, e o reconhecimento das possibilidades de desenvolvimento teórico e a necessidade de adaptações técnicas para o atendimento desta demanda.

Para além de uma mera reprodução das inovações técnicas introduzidas na psicanálise com crianças nas últimas décadas, a partir das práticas stricto sensu, os trabalhos de natureza institucional tiveram o mérito de contribuir diretamente para a compreensão das necessidades e contingências manifestadas por estes segmentos, que buscam atendimento institucional, e proporcionou o desenvolvimento de estratégias que possibilitem aplicar a psicanálise em ações de caráter lato sensu, ou como queiram alguns, em práticas de psicanálise extramuros, que se mostraram efetivas e de amplo alcance.

Para finalizar, convém destacarmos duas ressalvas, que delimitam os alcances e limites do presente estudo. O debate relativo às transformações da técnica psicanalítica com crianças no contexto brasileiro atual se insere em um campo de variações compatível com a preservação dos pilares fundantes da psicanálise, todas as práticas mencionadas neste trabalho, ainda que comportem inúmeras inovações, trazem em comum como elemento integrador, a preservação do método psicanalítico e o reconhecimento do inconsciente, tomados como pedras angulares da psicanálise. A presente pesquisa teve um caráter muito mais prospectivo do que conclusivo, dito de outra forma, o estudo em epígrafe, ao abordar as vicissitudes da técnica psicanalítica com crianças na atualidade a partir do contexto brasileiro, identificou várias temáticas, que se manifestam com recorrência para um expressivo número de psicanalistas no país, compondo uma unidade que genericamente confere identidade e coesão a esta área de atuação.

 

REFERÊNCIAS

Abrão, J. L. F. (2001). A história da psicanálise de crianças no Brasil. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Abrão, J. L. F. (2007). Por um modelo metodológico de historiografia da psicanálise. Pulsional: Revista de Psicanálise, 20(189), 5-16.         [ Links ]

Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. (D. Flaksman, trad.; 2ª’ed.). Rio de Janeiro: Guanabara. (Original publicado em 1973).

Costa, P. G. (2010). A clínica psicanalítica das psicopatologias contemporâneas. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Favilli, M. P., Tanis, B., & Mello, M. C. A. (2008). A infância roubada: Uma reflexão sobre a clínica contemporânea. Revista IDE, 31(46), 33-37.         [ Links ]

Figueira, S. A. (1991). A dimensão teórico-clínica da psicanálise no Brasil: Imitação ou criação. Revista Brasileira de Psicanálise, 25(1),109-122.         [ Links ]

Freud, S. (1987). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 10; pp. 13-154). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1909).         [ Links ]

Meyer, L. (1991). Método, estilo e prática da psicanálise no Brasil. Revista Brasileira de Psicanálise, 25(2),329-339.         [ Links ]

Mezan, R. (2002). Klein, Lacan: Para além dos monólogos cruzados. In R. Mezan, A vingança da esfinge. (2ª ed.; pp. 271-279). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Minerbo, M. (2009). Neurose e não-neurose. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Postman, N. (1999). O desaparecimento da infância. (S. M. A. Carvalho, & J. L. Melo, trad.). Rio de Janeiro: Graphia. (Original publicado em 1982).         [ Links ]

Rocha Barros, E. M. (1995). The problem of originality and imitation in psychoanalytic thought: A case study of kleinian thinking in Latin America. International Journal of Psychoanalysis, 76(4), 835-843.         [ Links ]

 

 

Recebido em 09/03/2016
Revisto em 02/06/17
Aceito em 06/06/17

 

 

* Endereço para correspondência: Avenida Rui Barbosa, 1262/91, Assis - SP. CEP: 19814-000. Telefone: (18) 99621-1609. E-mail: jlfabrao@gmail.com

Creative Commons License