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Interamerican Journal of Psychology

Print version ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. vol.42 no.2 Porto Alegre Aug. 2008

 

 

Representação de família e material didático

 

Family representation and the didactic material

 

 

Maria Cristina Lopes de Almeida AmazonasI,1; Albenise de Oliveira LimaI; Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de SiqueiraI; Gabriela Ferreira de ArrudaII

IUniversidade Católica de Pernambuco, Recife, Brasil
IILiceu de Artes e Ofícios, Recife, Brasil

 

 


RESUMO

A pesquisa trata da representação de família implícita no material didático usado por crianças de escolas particulares da zona centro da cidade do Recife, que freqüentam entre a primeira e a quarta série do Ensino Fundamental. A amostra foi aleatória. Foram submetidos à Análise de Conteúdo Documental 108 livros didáticos e paradidáticos. Os resultados indicam que estes materiais privilegiam um modelo tradicional de família. Os papéis femininos e masculinos são essencializados e naturalizados; as relações de poder se orientam pela supremacia do sexo masculino sobre o feminino e ocorrem na vertical em relação à idade. Homens, mulheres e crianças são apresentados em um modelo “ideal”, favorecendo a exclusão de outras possibilidades de ser sujeito.

Palavra-chave: Família, Representação, Escola, Material didático.


ABSTRACT

The research is about representation of family implicit in the didactic material used by children from first to fourth grades of private schools in the center zone of Recife city. The sample was chosen at random. A hundred and eight didactical and paradidactic books were submitted to Documental Content Analysis. The results indicate that these materials privilege a traditional model of family. The feminine and masculine roles are considered as essential and natural; power relations are oriented by the supremacy of the masculine gender over the feminine one and occur vertically according to age. Men, women and children are presented in an “ideal” model, favoring the exclusion of all other possibilities of being a subject.

Keywords: Representation, School, Didactic material


 

 

Na atualidade, a família se apresenta cada vez mais diversificada, tanto no que diz respeito às suas configurações quanto ao seu funcionamento. Apesar disto, a representação de família que ainda nos é cara, e preservamos, é a de uma família constituída por um casal e seus filhos, desempenhando os papéis que lhes são socialmente destinados, isto é, uma família nuclear e tradicional. Quando falamos em configuração de uma família estamos nos referindo ao modo como se dispõem e se inter-relacionam os elementos desta família (Osório, 2002). Já a representação é uma noção que vai incluir “as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos” (Woodward, 2000, p. 17).

A noção de representação é importante porque está ligada à produção das identidades e das diferenças. “Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade” (Silva, 2000, p. 91). As identidades são descritas e a linguagem é performativa. Austin (1990, p. 47), diz: “emitir uma expressão é realizar uma ação e . . . esta não se concebe normalmente como meramente dizer algo.” Isso significa que falar é mais que simplesmente emitir uma opinião a respeito de algo, falar é fazer. Quando falamos a respeito das novas configurações familiares não estamos apenas descrevendo-as/representando-as, mas fazendo-as, produzindo-as. Nosso discurso, inclusive nosso discurso teórico, inventa novos “objetos”, novas “realidades”. Questionar a construção social das identidades implica questionar os sistemas de representação que lhes dão suporte e sustentação.

É por esse motivo que o conceito de representação vem ocupando um lugar importante na pesquisa em vários campos de investigação, na área das ciências humanas e sociais, chegando a constituir-se como um campo transdisciplinar. Silva (2000) chama nossa atenção para a importância das implicações pedagógicas e curriculares das conexões entre identidade e representação. Diz ele: “A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade e da diferença” (Silva, 2000, p. 92). No que diz respeito à transmissão de um modelo de família, a escola, enquanto instituição, desempenha um papel fundamental, principalmente quando se trata da educação de crianças. A escola se constitui num espaço privilegiado, tanto para a produção das diferenças quanto para a luta contra qualquer forma de intolerância para com elas.

A representação de família, tanto a trazida pelos professores quanto a transmitida pelos materiais didáticos que eles utilizam, ocupa um lugar fundamental no processo de constituição das crianças enquanto sujeitos e cidadãos. O que lhes é endereçado, através desse material, é, em parte, constituinte dos cidadãos que eles vão ser, quando crescerem e das posições que assumirão diante da diferença. Furlani (2003, p. 69) afirma:

Na escola, o currículo, as disciplinas, as normas regimentais, as formas de avaliação, os materiais didáticos, a linguagem constituem-se em instâncias que refletem e produzem as desigualdades de gênero, de sexo, de raça, etc., e podem incentivar o preconceito, a discriminação, o sexismo.

Desde a infância, começamos a construir nossas posições de sujeito e estas devem incluir mais que respeito e tolerância para com a diferença; devem questionar e problematizar os processos sociais pelos quais as diferenças, assim como as identidades, são produzidas. Em decorrência dessas reflexões é que nos perguntamos: como está sendo representada a família, no material didático usado pelos professores de escolas do Ensino Fundamental? Será que houve alguma mudança, nos últimos anos, nos seus modos de representá-la, ou ele ainda se mantém representando-a do mesmo modo que nas décadas passadas, apesar de todas as transformações ocorridas com essa instituição?

A noção de representação que vamos tomar aqui é decorrente da perspectiva pós-estruturalista e da chamada “filosofia da diferença”. O pós-estruturalismo é “um movimento de pensamento & uma complexa rede de pensamento & o que corporifica diferentes formas de prática crítica” (Peters, 2000, p. 29). Essa perspectiva teórica questiona a noção clássica de representação, uma vez que concebe a linguagem, e por extensão todo sistema de significação, como uma estrutura instável e indeterminada. A “representação é concebida unicamente em sua dimensão de significante, isto é, como sistema de signos, como pura marca material” (Hall, 2000, p. 90). Desse modo, são descartadas da representação toda e qualquer conotação mentalista ou associação com uma suposta interioridade psicológica.

Para a filosofia da diferença, o mundo é fluxo, é movimento é um vir a ser contínuo e perpétuo. Para ela, a diferença não é um simples conceito, mas o fundamento de todas as coisas. Nessa perspectiva, o pensamento não se confunde com um puro ato de recognição (reconhecimento), e o novo é visto como aquilo que ativa e leva a agir o pensamento, criandoo. O pensamento é capaz de produzir uma existência mais livre e autêntica e sua tarefa é agir em prol da vida (Schöpke, 2004).

Ao distinguir o pensar do reconhecer e do representar, em sua forma clássica, a representação se liga à identidade e à diferença que, por meio dela, passam a existir. Representar é a maneira como os sistemas apresentam, simbólica e socialmente, as identidades, “são formas culturais de referir, mostrar ou nomear um grupo ou um sujeito” (Louro, 1997, p. 98). São formas de interpretar, de atribuir sentido e isso se dá em um campo de forças em conflito, movimentadas pelas diferenças de perspectivas. Cada representação de família, por exemplo, é apenas uma versão, uma possibilidade entre tantas outras que poderiam ser produzidas. Mas as representações não apenas interpretam/descrevem as práticas sociais; elas as produzem. Por meio delas os significados são produzidos e damos sentido à nossa experiência e ao que somos. É possível, inclusive, pensar que esses sistemas simbólicos vão possibilitar não apenas aquilo que somos, mas o que podemos vir a ser (Woodward, 2000).

Desse modo, ao investigar as representações de família transmitidas pelo material didático usado nas escolas, é importante questionar a origem dos atos que as construíram e as posições a partir das quais elas se formaram, uma vez que elas estão imbricadas no processo de subjetivação e individuação das crianças que utilizam esses materiais. Ao representarmos a família em um modelo, seja ele qual for, apagamos as diferenças entre os vários e singulares agrupamentos familiares, escamoteamos as gradações, as continuidades e as descontinuidades entre eles. A diferença, nesses casos, é relegada ao status de mero acessório, de simples acidente (Silva, 2002). Além disso, a representação nunca é neutra, ela é sempre valorada como “normal” ou “anormal”, “bom” ou “mau”, “certo” ou “errado”, o que implica considerar um modelo de família melhor ou pior que outro. Nenhuma descrição de família pode ser considerada melhor que outra; todas elas são dependentes da perspectiva que se adota, e a escola, enquanto um sistema que tem o poder de representar, deve se constituir em um espaço que possibilite diferentes interpretações, pontos de vista e perspectivas acerca dos temas por ela tratados.

Outro aspecto relacionado ao material didático que devemos salientar, é que ele é utilizado nas escolas com o objetivo de auxiliar na transmissão do conhecimento.

Mas, nenhum conhecimento é neutro, todo ele é produzido em um campo de forças. Quem o produz está em uma posição de poder dizer: é isso, é assim que as coisas são (Silva, 2002).

Conhecer é produzir conceitos que reduzem o diferente ao igual. Ao representar a família em um único e hegemônico modelo & o nuclear &, a sociedade está reunindo todos os indivíduos em uma única classe, está buscando semelhanças entre os diferentes numa tentativa de classificar. De acordo com Silva (2002, p. 39)

está caçando analogias para agrupar, circunscrever. O conhecimento abomina a diferença e ama a identidade. O conhecimento é um trabalho de depuração para eliminar todas as diferenças espúrias e chegar ao cerne das “coisas”. Na variedade da diferença, o conhecimento só vê uma coisa: o mesmo. Extraídas e abstraídas todas as diferenças, o conhecimento converge inexoravelmente para o Uno e o conceito. O conceito: o triunfo do mesmo e do idêntico. Para o conhecimento, o diferente é, no fim das contas, igual.

Diante desse quadro, a proposta deste artigo é tratar dos resultados encontrados em uma pesquisa realizada na cidade do Recife, estado de Pernambuco, acerca da representação de família, transmitida através do material didático utilizado por professores da primeira à quarta série, do Ensino Fundamental, de escolas particulares, da zona centro dessa cidade.

Essa preocupação é decorrente de uma investigação anterior, em que as autoras encontraram uma predominância da representação do modelo de família nuclear, por parte de crianças da primeira à quarta série do Ensino Fundamental de escolas públicas e particulares da cidade do Recife. Nessa pesquisa, foi encontrada uma grande diversidade de configurações familiares entre a população estudada, o que nos levou ao questionamento das razões que levaram essas crianças a representar, predominantemente, um tipo de família distinto daqueles em que elas, de fato, viviam. Propusemo-nos, então, a fazer uma investigação dentro do espaço escolar, tanto com os professores quanto com o material didático usado por eles. Neste artigo, vamos tratar dos resultados que encontramos no que se refere ao material didático. Nossa expectativa é a de contribuir para os estudos acerca das diferenças construídas nas escolas, que promovem a inclusão/exclusão dos sujeitos. É refletir e problematizar as “verdades” que são produzidas nesse espaço e que estão influenciando as condições de inclusão/ exclusão social.

 

Método

A amostra foi constituída pelo material didático utilizado pelos professores da primeira à quarta série do Ensino Fundamental, de sete escolas particulares da zona centro2 da cidade do Recife. A seleção das escolas se deu de forma aleatória, porém, levando em consideração a representatividade da amostra em cada bairro da referida zona. Isto é, uma vez que esta zona é constituída por onze bairros, sorteamos 10% das escolas que possuíam o Ensino Fundamental em cada um dos bairros. Como havia alguns bairros que não tinham escolas com esse perfil, nesses casos sorteamos mais uma escola em um bairro vizinho. Assim, foram sorteadas onze escolas, porém, destas, quatro não concordaram em participar da pesquisa e até o final do período de coleta de dados não foi possível substituí-las. Essas escolas variaram desde escolas de grande porte, que atendem a uma camada média e alta da população, até escolas que, apesar de serem de ensino privado, cobram um valor baixo e, conseqüentemente, atendem a uma população de menor poder aquisitivo. Em cada escola foram coletados todos os livros didáticos e paradidáticos usados pelos professores da primeira à quarta série do Ensino Fundamental. Uma vez que uma parte dos livros repetia-se de uma escola para outra, ao final, foram analisados cento e oito livros, sendo setenta e oito didáticos e trinta paradidáticos.

A técnica utilizada foi a Análise de Conteúdo Documental dos livros que tratassem do tema da família, seja de forma direta, texto específico sobre família, ou de forma indireta, textos que têm como objetivo principal outra função (aprendizagem da matemática, por exemplo), mas trazem, como fundo, o tema família. A Análise de Conteúdo Documental se baseia na leitura como instrumento de coleta de informações. Um texto escrito é um testemunho que permanece fisicamente e conserva seu conteúdo ao longo do tempo (Olabuénaga, 1996). Consideramos que toda redação de um texto, e toda leitura posterior deste, entendidas como uma coleta de informação são, ao mesmo tempo, uma construção social e política.

Inicialmente, foi realizada uma pré-análise, ou seja, os livros foram lidos pelos pesquisadores bolsistas, identificando os textos que tratassem do tema “família”. Em seguida, o material foi explorado, os textos foram relidos, porém agora, classificando-se em cada um, o modelo de família ali representado, os papéis atribuídos a cada membro, como eram descritas as relações de poder entre os componentes dessa instituição e o modo como esses diferentes aspectos eram valorados. Essa classificação foi realizada, inicialmente, pelos pesquisadores bolsistas da iniciação científica e, em seguida, submetida ao julgamento dos pesquisadores/orientadores. A próxima etapa foi a de realização das inferências e interpretações a partir das informações obtidas nos dados, com a ajuda da literatura de apoio (Bardin, 1999). No momento da análise, tinha-se em mente os objetivos da pesquisa, porém, ao mesmo tempo, atentava-se para a possibilidade de emergirem outros temas a partir desse material. Ao final, foram enfocados alguns temas: modelo de família representado; dinâmica familiar (papéis da mulher, do homem, dos filhos e dos avós); relações de poder entre os membros da família e o modo como esses distintos aspectos eram valorados.

Família: o que ela é e o que não é, no material didático das Escolas de Ensino Fundamental

Dos cento e oito livros analisados, setenta e oito eram didáticos e trinta para-didáticos. Para facilitar a análise dos resultados e o seu entendimento, os dados coletados foram divididos em seis Tabelas. Foram encontrados nos livros 302 textos que representavam modelos de família (Tabela 1); 373 textos referiam-se aos papéis atribuídos à mulher (Tabela 2); 235 textos tratavam dos papéis atribuídos aos homens (Tabela 3); 128 textos referiam-se aos papéis dos filhos (Tabela 4); 53 textos aos dos avós (Tabela 5); 381 textos tratavam das atitudes relacionadas à família que são mais valoradas (Tabela 6). Além disso, foram analisadas também, como se dão as relações de poder no interior da família (79 textos).

 

 

Apesar da literatura especializada (Osório, 2002; Roudinesco, 2003), e a vida cotidiana indicarem a existência de uma grande diversidade de famílias (extensa, abrangente, recasada, monoparental, famílias advindas de uniões homossexuais e outras), o modelo de família nuclear predomina nesses materiais. Um fato curioso é que os demais modelos de família representados, além de o serem com uma freqüência bem menor do que o de família nuclear, foram encontrados, em geral, nos textos que se propunham a abordar diretamente o tema “família”. Quando o assunto tratado no texto não dizia respeito à família (problemas de matemática, por exemplo), mas a família aparecia no texto como pano de fundo, o modelo era quase sempre, o de família nuclear.

“Ex: Observe a família de Rafael:

Pedro (Pai) Rafael (Filho) Vera (Irmã) Ana (mãe)

a) Que fração Rafael representa do número de pessoas dessa família?

b) Que fração de família representam os pais de Rafael?”

Os exemplos são inúmeros. Praticamente todo problema de matemática que cita a família, o faz no modelo nuclear e, além disso, nestes casos, os papéis atribuídos a cada membro da família, principalmente às mulheres, são sempre os tradicionais.

“Dona Sônia, a mãe de Mauro, comprou uma dúzia de maçãs para fazer uma torta. Sabendo que para uma receita inteira ela gasta uma dúzia. Quantas maçãs ela gastará para fazer meia receita?”

“O pai do Hugo pagou R$ 8128,00 para o empregado de sua casa em 16 meses de trabalho. Quanto o empregado ganhou por mês?”

As mães fazem as compras, cozinham, e os pais lidam com as despesas da casa, planejam os gastos e têm um salário.

O fato de contemplarmos a diferença apenas quando nos detemos para falar especificamente sobre ela, parece indicar que estamos tão impregnados pelos modelos dominantes que não nos damos conta do quanto os privilegiamos em nossos discursos.

Sabemos que séculos de uma cultura patriarcal não se diluem de um momento para o outro. Segundo Narvaz e Koller (2005, 2006), no patriarcado tradicional, o poder do pai na família é origem e modelo de todas as relações de poder e autoridade. Ainda que possamos dizer que esse modelo teve sua maior vigência da Idade Média à Modernidade, nos dias de hoje, encontramos o que essas autoras denominam, citando Pateman (1993), de patriarcado moderno, que “alterou sua configuração, mas manteve as premissas do pensamento patriarcal tradicional” (Narvaz & Koller, 2006, p. 3).

Ao dizer que esses textos refletem o modelo de família hegemônico na sociedade, o modelo tido como ideal, não queremos, com isso, classificá-lo como “bom” ou “ruim”, “melhor” ou “pior” que os demais modelos, mas sim questionar quais os interesses envolvidos na manutenção e reprodução de um modelo “ideal”, em relação ao qual todas as outras formas serão considera das, não só diferentes, mas, no mínimo, indesejáveis. Perguntamo-nos: a partir de que lugar a “realidade” familiar está sendo olhada? Por que e a quem interessa a manutenção de um único modelo de família e por que esse e não outro?

Pensamos que a escola, e nela o material didático, pode e deve levar em consideração nossa herança cultural em seu conteúdo de ensino, mas não de forma exclusiva. Como diz Sponchiado (2005, p. 64), ela deve, “sobretudo, desvelar aspectos sociais ideológicos ocultados . . . contemplar as diversas identidades que fazem parte do processo educativo, dando a todas a importância necessária para que possam desenvolver-se”. Não podemos esquecer que a diferença é produzida por relações sociais assimétricas e a escola é um lugar privilegiado de exercício de poder.

Outro dado importante é que, em muitos casos, o material didático coloca os avós, tios, primos, na situação apenas de parentesco, não sendo considerados como propriamente “família”, e claramente especifica como núcleo familiar o tripé pai-mãe-filho (família nuclear). Uma dessas descrições, diz: “Do núcleo familiar, surgem os parentes, membros da família do pai e da mãe. Por isso, temos: avós paternos, avós maternos, tios, tias e primos de 1º, 2º e 3º graus.”

Isto é, os demais personagens formam novos núcleos familiares isolados, ligando-se entre si, por relações de parentesco. Essa descrição ignora a quantidade de famílias que incluem em seu núcleo, avós, tios, e/ou outro membro familiar, pelas mais diversas razões, quer estas sejam de ordem econômica & filhos casados que perdem o emprego e necessitam voltar para a casa dos pais/avós; avós muito velhos que necessitam morar com os filhos por não possuírem mais condições de viver sozinhos; avós que moram com seus filhos para ajudar a cuidar dos netos, quando ambos os pais trabalham fora do lar & entre muitas outras razões (Dias & Costa, 2006).

Além disso, essa representação não é inócua. Nossa sociedade privilegia a solidariedade entre aqueles que são mais “próximos”, inclusive, geograficamente. Ao colocarmos avós, tios, primos, etc., na categoria de “meros parentes”, os excluímos de nossas preocupações e de nossas responsabilidades, reforçando o individualismo. A Tabela 2 refere-se aos papéis atribuídos às mulheres pelos livros didáticos e para-didáticos.

 

 

Os papéis atribuídos às mulheres estão, geralmente, ligados às atividades relacionadas à casa e/ou aos filhos. Juntas, essas atividades foram atribuídas às mulheres por 79% dos textos. Como uma função também tradicional, podemos ainda agregar a de “favorecer o bem estar da família e proporcionar lazer” com 6,1% que, se somados às atividades anteriores alcançarão 85,1% de representação nos textos analisados. Isto demonstra que a visão que ainda predomina é a de que a mulher deve se restringir ao espaço privado do lar e ao cuidado com toda a família. De acordo com Narvaz e Koller (2005, p. 130), “a posição da mulher, na família e na sociedade em geral, desde a colonização até hoje, demonstra que a família patriarcal rural escravagista foi uma das matrizes de nossa organização social”, ainda que seja discutível a hegemonia deste modelo familiar. Se considerarmos as distintas classes sociais vamos encontrar uma pluralidade de arranjos familiares.

Outra constatação importante é a de que, apesar da inserção da mulher no mercado de trabalho vir aumentando a cada dia (Lipovetsky, 2000), nesses materiais estudados a mulher aparece apenas em 7% dos textos exercendo um trabalho remunerado e em 1,6% sendo a provedora do lar. Ainda quando essa mulher trabalha para ganhar dinheiro, esse trabalho é, muitas vezes, relacionado a alguma atividade do tipo doméstica ou manual. “Nair faz balas para vender. Outro dia, ela fez 15 balas e as colocou em quantidades iguais nos saquinhos. Ela usou 3 saquinhos. Quantas balas ficaram em cada um?” Mas o que chama mais atenção é o fato de os livros só representarem a mulher como a principal fonte de renda da família, quando não está presente uma figura masculina, isto é, quando ela pertence a uma família monoparental.

A família dos passarinhos é como a do Eduardo e da Cris: o pai e a mãe deles se separaram. Os dois moram com a mãe. A mãe do Eduardo e da Cris trabalha fora. Ela sai de casa todo dia bem cedo e só volta à tardinha.

Nessa situação, de mulher separada e com filhos, é legitimado o trabalho extralar e remunerado para a mulher, única saída digna para sustentar os filhos. Mas, se o marido e/ou companheiro está presente, “dispensa- se” o falar sobre as mulheres que trabalham e compartilham as responsabilidades com a manutenção da família.

O preconceito contra a mulher ainda aparece com mais força no texto que se segue:

Elza tinha sido uma daquelas mulheres que habitam um lugar estranho e pecaminoso chamado bordel... E ela, com os filhos, precisavam de um emprego, que ninguém lhe dava por causa do seu passado. Daí vovô a contratou como cozinheira, no que teve o apoio de vovó.

Sob a aparência de um gesto de tolerância e bondade, a figura feminina é apresentada como alguém “desviado” da norma, a “pecadora”, aquela que necessita da caridade alheia para garantir a sobrevivência sua e dos seus filhos. Em outra ocasião, a tentativa de contemplar a diferença é contraditória. Após representar diferentes modelos de mães, o trabalho remunerado aparece quase de modo imperceptível entre inúmeras atividades tradicionais. Além disso, a referência ao masculino é agregada de forma a comparar com atividades que são caracterizadas como tipicamente femininas e, se exercidas por um homem, este se feminiza.

Cada mãe é diferente: mãe verdadeira, ou postiça, mãe vovó e mãe titia, Maria, Filó, Francisca, Gertrudes, Malvina, Alice, toda mãe é como eu disse. Dona mamãe ralha e beija, erra, acerta, arruma a mesa, cozinha, escreve, trabalha fora, ri, esquece, lembra e chora, traz remédio e sobremesa… Tem até pai que é ‘tipo mãe’… esse, então, é uma beleza!

Servir como figura de identificação para os filhos (4,02%) e exercer autoridade sobre eles (2,14%) são funções que têm uma baixa freqüência nesses textos. É interessante notar que, quando a mulher aparece com alguma autoridade esta é sempre exercida sobre os mais novos, os filhos, e tem uma função educativa: a mãe ensina o filho a respeitar e cuidar dos mais velhos, levao a adquirir valores religiosos, entre outros. A mãe é aquela que pune, põe de castigo, ainda que para isso use o nome do pai. A família burguesa, entre outras coisas, legou-nos uma enorme dependência das crianças em relação às mães e a submissão dos filhos aos valores dos pais (Narvaz & Koller, 2005).

Essas representações da mulher restrita às atividades do lar contribuem para confirmar uma visão de gênero como destino, e constrói identidades femininas despreparadas para uma vida em que terão que dar conta de múltiplas e variadas exigências, profissionais e afetivas, que incluem a construção de novas modalidades de ser sujeito. Os modos de subjetivação femininos e masculinos estão mutuamente implicados, uma vez que as identidades são relacionais. Quando a identidade da mulher é vista como uma essência, quer seja natural ou histórica, o mesmo acontece com a identidade masculina. É o que observamos quando analisamos os papéis atribuídos aos homens. A Tabela 3 traz os resultados acerca dos papéis masculinos relacionados à família.

 

 

Numa perspectiva dicotômica e complementar, o homem/pai é representado, em geral, como o provedor, o protetor, o herói; mas, o pai contemporâneo é apresentado também como um amigo. “O pai é o amigo de todas as horas, mesmo quando repreende um filho, é para o seu bem. Ele trabalha para sustentar a família e compartilha amor com os filhos.”

Como vimos, prover e proteger significa amar, quando se trata do pai. Na família contemporânea, o pai ausente e que só era visto como figura de autoridade, o qual era temido por todos, deixa de existir enquanto um valor, e abre lugar para o pai preocupado com a criação de seu filho e que já divide alguns papéis com a mulher, embora não todos. Ainda lhe é conferido o lugar de autoridade principal na família e é a ele que compete prover e sustentá-la, excluindo, desse modo, as famílias chefiadas por mulheres.

Embora possamos dizer que os papéis familiares não estão mais tão rigidamente delimitados quanto há algumas décadas, não são mais tão exclusivos de um sexo ou de outro, ainda há atividades e lugares vistos como, predominantemente, femininos ou masculinos. No caso das atividades domésticas, por exemplo, elas são delegadas, quase que exclusivamente às mulheres, enquanto que, prover e proteger a família é a função principal do homem. Essa atribuição é passada, muitas vezes, de um modo disfarçado, com a aparência de proteção da mulher. “Não custa nada fazer o que papai lhe pede sem reclamar: ajudar a mamãe nas tarefas do lar. Ou seja, o papai manda (‘pede’) e o filho obedece, e cabe à mamãe e não ao papai, as tarefas do lar”.

Outro texto, na tentativa de demonstrar que as atividades domésticas também podem ser exercidas pelos homens, diz: “EEEEH! O mariquinhas enxugando os pratos! Já lhe disse mil vezes que ajudar a mamãe não é ser mariquinha! É ser bom. Dá para entender. Homens bons ajudam à mãe!” Isso é, homens não enxugam pratos, apenas ajudam, não é ao pai que ele vai ajudar a enxugar os pratos, mas sim à mãe, portanto, a tarefa é dela.

A falta de tempo crônica, da atualidade, é uma das preocupações dos autores dos livros didáticos. Mas a ênfase recai sobre a necessidade dos filhos de compartilhar mais tempo com o pai. O que é transmitido é que o pai, por ter que trabalhar para sustentar a família, ser o único responsável pela solução de todos os problemas familiares, ser um verdadeiro herói, acaba não tendo tempo de brincar com os filhos. Os textos ainda acrescentam que, tudo isso poderia gerar nos filhos carência da presença paterna e sentimentos de insegurança. Um texto que fala de um macaquinho que quer sempre dormir na cama dos pais, diz:

Quando o pai perguntava, um dia era vontade de fazer xixi, outro dia era medo, no outro era porque o berço estava apertado. E tudo o pai resolvia. E sempre o macaquinho estava de volta. Até o dia em que o macaquinho resolveu falar claro: & ‘Eu quero ficar na sua cama porque fico com saudades de você.’ E o pai entendeu, e o macaquinho o abraçou e o beijou. E, daí pra frente, não passou mais para a cama do pai, porque brincavam juntos e o pai tinha tempo para ele.

Esses dados nos apresentam uma figura de pai idealizada como um herói, provedor, protetor e educador. As demais possibilidades de pai, fragilizados pelo desemprego, pela falta de tempo, de paciência & pelo excesso de trabalho & ou não são apresentadas ou o são como tudo aquilo que vale menos e não deve ser. Também nos chamou a atenção a pouca ênfase dada ao exercício da autoridade parental. Apesar desse exercício estar centrado no pai, aparecendo com um percentual bem superior ao que é destinado à mãe, ele, no total dos textos, aparece com uma freqüência pequena (14,48% somando a destinada tanto ao pai quanto à mãe). Isto pode indicar que, na família, as relações igualitárias entre os pais e os filhos vêm se impondo, pelo menos enquanto um valor, ainda que seja cada vez mais freqüente a queixa contra as crianças sem limites, o que parece ser uma reação ao modelo de família igualitário. A Tabela 4 apresenta os resultados coletados acerca dos papéis dos filhos.

 

 

A escola, enquanto um sistema educativo que tem como principal função a transmissão de conhecimentos, considera o estudo como sendo a principal responsabilidade da criança. Porém, os livros ora tratam do estudo como sendo uma obrigação da criança, ora tratam- no como um direito. A seguir exemplificamos ambas as situações:

“Os pais trabalham para sustentar a família e darlhe bem-estar e conforto. Os filhos devem estudar, preparando-se para, no amanhã, também formar suas famílias.”

“Os pais não devem colocar seus filhos menores de idade para trabalhar, pois o direito de uma criança é estudar para quando adulto, tornar-se um trabalhador competente.”

Mas, de uma forma geral, a idéia que eles sempre tentam passar é que o lugar da criança é na escola e que um futuro melhor, tanto para elas próprias quanto para a sociedade, depende disso.

A figura do filho dentro da família, transmitida pelo material didático, é também idealizada. A boa criança, ou melhor, o bom filho é aquele que estuda, ajuda seus pais, obedece, e não lhes dá trabalho.

“Marque o que você deve fazer para ver sua mãe contente e feliz. ( )Mentir (X)Beijar (X)Estudar ( )Brigar (X)Amar (X) Ajudar (X)Obedecer (X)Respeitar (X)Ser gentil (X) Ser carinhoso (X) Ser ordeiro.”

Somente duas alternativas fogem à regra da criança “boazinha”. Sobre esse aspecto, ainda é importante ressaltar que, quando os materiais didáticos atribuem aos filhos a função de ajudar seus pais, essa tarefa inclui várias formas de ajuda. Pode ir desde a realização de uma atividade doméstica simples, sendo essa a mais freqüente: “Num dia frio de inverno, a mãe de Betina assava biscoitos. Betina, que já preparava a mesa para o lanche, teve a idéia de pegar a geléia na prateleira no armário.”

Também pode se caracterizar pela ajuda financeira, no caso das famílias pobres, como acontece nesse trecho: “Geralmente a criança trabalha por uma finalidade, que é agradar ou cumprir a expectativa dos pais, ajudar a família numa situação de carência.”

Nesses casos trata-se sempre de famílias de baixa renda, e o pai vai ser apresentado com aquele que tem a função de preparar o filho para a vida. “Em nossa comunidade, quando a pessoa leva uma criança para um roçado ou para uma casa de farinha, significa que o pai está dando uma aula para seu filho, porque está ensinando para a vida.”

O trabalho infantil, contextualizado deste modo, é visto não como uma exploração da criança, mas como aprender a viver em suas condições reais de existência. Embora a legislação brasileira (Emenda Constitucional n. 20 aprovada em 16 de dezembro de 1998), proíba o trabalho de crianças e adolescentes, ele ainda é uma realidade no contexto brasileiro. A literatura mostra que o trabalho infantil vem associado a uma situação de pobreza e fazendo parte da cultura familiar nessa população (Schwartzman, 2004). Nestes casos a família funciona como uma espécie de unidade de produção, isto é, todos os membros necessitam contribuir para a subsistência familiar. Os livros didáticos parecem reforçar, nesses casos, o já existente.

Outra atividade atribuída à criança, especialmente quando elas pertencem a famílias de baixa renda, é a de cuidar dos irmãos menores. “Enquanto mamãe terminava o jantar, eu segurava o Adalberto no colo para ele não chorar, ele tinha um aninho.”

O que também nos chamou atenção é que os livros apresentam o amor dos filhos pelos pais como sendo um dever. “Devemos amar e honrar nossos pais, não só no seu dia, mas em todos os dias, pelo amor que sentimos e pelo tanto que fazem por nós, trabalhando para nos dar conforto.”

Os avós aparecem com pouca freqüência, nos textos. A Tabela 5 foi elaborada com os resultados dos papéis atribuídos a eles.

 

 

Os avós representados nos livros didáticos também são aqueles tradicionais. São figuras bondosas, preocupadas principalmente com o bem estar da família. As principais funções delegadas a eles é proporcionar lazer e nutrir uma relação de amizade com os netos: contar histórias, paparicar seus netos, fazer tudo para agradálos, entre outros. “& Oba! A vovó faz tudo que a gente quer! Dá doce, deixa brincar com tudo...”

Ficam excluídos dessas representações os avós que contribuem com suas aposentadorias para a renda familiar, quando não para o total sustento da família, avós que ainda estão inseridos no mercado de trabalho, que cuidam dos netos em tempo integral, enquanto seus filhos/as trabalham fora do lar, entre outras possibilidades.

Chama a atenção o baixo percentual de textos (1,9%) que atribuem algum tipo de autoridade aos avós, numa época em que, como já mencionamos anteriormente, muitos estão encarregados de cuidar dos netos enquanto seus filhos trabalham fora, ou mesmo, são os principais responsáveis pela criação, educação e formação destes.

Apesar de ser atribuída, em especial à avó, a tarefa de cuidar dos netos e da casa enquanto a filha está fora, sua autoridade é apresentada de modo débil, pois “cabe a uma avó fazer tudo para agradar os netos”. Isto pode ser observado, por exemplo, em um texto que relata a conversa entre uma avó e um avô, enquanto a avó (des)arruma a sala, para deixar como os netos gostam:

“& Querido preciso arrumar a sala! As crianças vão chegar logo da escola!

& Aqui... Assim...

& mas assim...

& Eles gostam assim! [grifo nosso].”

Dessa forma, podemos perceber que a autoridade dos avós representados nos materiais didáticos é subestimada em favor da valoração da figura do avô e da avó bondosos, que acabam fazendo tudo o que os netos desejam.

Quanto às relações de poder na família, há dois modos principais deste ser apresentado. Um primeiro é ser hierarquizado por sexo, o masculino se sobrepõe ao feminino; outro modo está relacionado à idade, os mais velhos mandam nos mais novos. Esses livros estereotipam a figura masculina como sendo a única representante da lei. Isso pode ser confirmado pelo fato de, muitas vezes, a mulher para conseguir cumprir o papel de cuidar dos filhos, que lhe é atribuído como um dos seus principais afazeres, utiliza-se da figura masculina para conseguir impor limites aos filhos.

Pois você vai ver quando seu pai chegar . . . Olha esse barulho, menino! Seu pai está dormindo. . . . Pede licença a seu pai primeiro. . . . Agora deixa seu pai descansar & ele está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito bonzinho com ele, meu filho.

O poder está entremeado em todas as relações e é sempre concentrado em um membro mais velho da família sobre um mais jovem: pais mandam em filhos; irmãos mais velhos nos irmãos mais jovens. As formas de apresentação do poder na família, em geral, vêm disfarçadas como “proteção”. As normas de convivência determinam as relações entre as pessoas. Observe o diálogo de Ana com o pai.

“& Ana, preciso ir ao banco pagar uma conta... Venha comigo.

& Ah, pai! Não estou com vontade de sair...

& Mas não tem outro jeito, Ana... sozinha é que você não pode ficar.

& Criança sempre tem de fazer o que os adultos mandam... Por que não posso mandar em mim mesma?”

A Tabela 6 contém as atitudes relacionadas à família que são mais valoradas nos materiais didáticos.

 

 

Os três conjuntos de valores mais representados nos livros didáticos são solidariedade, união e harmonia, companheirismo e amizade. Isso pode ser confirmado pelo seguinte trecho:

Ao encerrar o trabalho com esta página, converse com seus alunos sobre a função da família e a importância, até mesmo, das desavenças que existem, mas o importante mesmo é que podemos contar com aqueles que gostam de nós de verdade.

Mesmo com uma freqüência menor, o respeito, e aí se inclui a tolerância e respeito pela diferença, também vai aparecer nestes materiais. “Meninos e meninas, não olhem cor nem religião. Bons amigos valem ouro, a amizade é um tesouro, guardado no coração.”

Embora haja a tentativa de apresentar uma família distinta da tradicional, isto ocorre com pouca freqüência nos textos, mas merece ser mencionado. Um deles afirma: “A responsabilidade pelas famílias também mudou. Hoje, de cada quatro casas, uma tem a mulher como responsável.” Esse mesmo texto, em outro trecho denuncia: “Atualmente, de cada dez mulheres brasileiras adultas, quatro trabalham fora de casa. Contudo elas continuam recebendo menos que os homens.”

Em síntese, podemos dizer que os livros didáticos e paradidáticos representam a família, sobretudo, de acordo com um modelo tradicional. Os papéis de cada membro da família encontrados nos livros, atribuem à figura materna a responsabilidade pelas atividades domésticas e o cuidado com os filhos. Aos homens, ainda fica o encargo de prover o sustento e proteger a mulher e os filhos. Os filhos têm como tarefas primordiais, estudar, ajudar seus pais e obedecê-los; já aos avós, é delegada a tarefa de proporcionar lazer e nutrir uma relação de amizade com seus netos. Poucas são as ocasiões em que se apontam para outras possibilidades. De uma forma geral, observa-se que a família & representada pelos materiais analisados & ue contribui para a formação da criança enquanto sujeito e cidadão, privilegia um modelo hegemônico e tradicional, que atende a uma ideologia predominante na sociedade, que estabelece um modelo ideal e coloca todas as outras formas numa posição de inferioridade e exclusão.

 

Considerações Finais

A família não é um fenômeno natural, e sim, uma invenção humana (Narvaz & Koller, 2005). Hoje, o principal determinante na formação dos vínculos familiares é o afeto. A afeição se constitui a verdadeira base dos relacionamentos, não se aceitando mais nenhum outro limite. Isso faz com que nos deparemos com organizações familiares as mais diversas. Famílias em que a criança necessita conviver com dois pais e duas mães advindos/as de relacionamentos anteriores (famílias de recasados); famílias monoparentais; crianças nascidas com o auxílio das biotecnologias de procriação; famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo exercendo a homoparentalidade.

No entanto, nada nem ninguém nos impede de construir novas formas de vida familiar diferentes das já instituídas. Ampliar a visão das crianças para a pluralidade de famílias existentes hoje, desconstruir a idéia de que a “boa família” é a constituída por papai, mamãe e filhinhos, em que o pai é o provedor do lar e a mãe, a responsável pelas tarefas domésticas, é também função da escola. Cabe a ela problematizar as relações de gênero no interior das famílias, a produção das desigualdades, das identidades e das diferenças.

Na escola, o material didático se constitui um poderoso instrumento que tanto pode favorecer a discriminação e a exclusão quanto a ampliação dos limites humanos que abriguem, cada vez mais, a todos, sem qualificações e sem hierarquias. A representação de família é fundamental na formação da criança, pois contribui para que ela construa sua própria identidade.

Sendo a escola um sistema representativo, fonte de transmissão de valores e formadora de opiniões, cria posições pelas quais os sujeitos se apresentam e podem falar. Esse sistema, na medida em que dificulta a identificação da criança com o que é representado por ele, possibilita a colocação da criança no lugar do excluído. A diferença faz parte da vida e só por ela podemos escolher aquilo que somos e queremos ser, pois é através daquilo que eu não sou, que eu posso definir aquilo que sou.

Monteiro (2000) nos lembra que é só através das diferenças que podemos renovar nossa crença, e se alguém possui uma conduta diferente, essa conduta não deve ser percebida como uma exceção e sim como uma possibilidade. Na nossa opinião, seria exatamente isso, o que as escolas deveriam priorizar como função.

 

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Received 23/11/2006
Accepted 08/06/2007

 

 

Maria Cristina Lopes de Almeida Amazonas. Doutora em Psicologia pela Universidade Deusto. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Albenise de Oliveira Lima. Doutora em Saúde e Família pela Universidade de Deusto. Atualmente é professor adjunto IV da UNICAP.
Danielle de Fátima da Cunha Cavalcanti de Siqueira. Aluna da Graduação em Psicologia pela UNICAP, bolsista da Iniciação Científica PIBIC/CNPq.
Gabriela Ferreira de Arruda. Aluna do Liceu de Artes e Ofícios da cidade do Recife, PE. Bolsista do PIBIC Júnior, FACEPE/CNPq.

1 Endereço: Rua Regueira Costa, 77, apto. 701, Rosarinho, Recife, PE, Brasil, CEP 52041-050.
Tel.: (81) 32416130. Celular: 91915613.
E-mail: crisamaz@elogica.com.br
2 A cidade do Recife é dividida, segundo dados da prefeitura (Empresa Municipal de Informática, Recife, 2000 - EMPREL), em seis zonas, entre as quais se situa a zona Centro. Este estudo faz parte de um projeto mais amplo, em que as demais zonas foram investigadas quanto à representação de família em crianças da 1ª à 4ª série do Ensino Fundamental. Ao ampliar nosso estudo para a representação de família em professores e no material didático, as pesquisadoras estavam realizando os demais subprojetos na zona Centro, razão pela qual, esta mesma zona foi tomada para este estudo.