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Interamerican Journal of Psychology

versão impressa ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. v.42 n.3 Porto Alegre dez. 2008

 

 

Da diversidade: uma definição do conceito de subjetividade

 

From diversity: a definition of the subjectivity

 

 

Luis Artur Costa1; Tania Mara Galli Fonseca

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

O conceito de subjetividade tem sido cada vez mais utilizado em trabalhos referentes às ciências humanas. Diante de sua conceituação por vezes imprecisa, o uso do conceito de subjetividade banalizou-se em diversos segmentos da psicologia, perdendo sua especificidade. O presente ensaio efetuou uma definição do conceito de subjetividade no que tange as suas bases filosóficas e implicações práticas. A partir de sua distinção conceitual diante da definição de identidade, erige-se um panorama das concepções de ontologia e epistemologia atreladas a cada conceito. A partir daí, desdobra-se a distinção da subjetividade no que tange a sua lógica, ética e práxis.

Palavras-chave: Subjetividade; Identidade; Filosofia.


ABSTRACT

The concept of subjectivity has become frequent in works related to the human sciences. Given its novelty and its sometimes inaccurate conceptual definition, the use of the subjectivity concept has become stereotyped in several segments of psychology, losing its specificity. The present essay intends to trace a clear definition of the concept of subjectivity, considering its philosophical bases and its practical implications. Starting with its conceptual difference from the definition of identity, a panorama of the conceptions of ontology and epistemology related to each concept is constructed, unfolding the logical, ethical and practical distinction of subjectivity.

Keywords: Subjectivity; Identity; Philosophy.


 

 

A Identidade e seus Operadores Conceituais: A Forma, a Substância e o Método

Iniciemos a discussão sobre a subjetividade delimitando alguns operadores que definem o conceito de identidade desde o princípio da filosofia. Para tanto, nos utilizaremos alguns exemplos colhidos na história da filosofia, os quais nos servem para ilustrar os pressupostos conceituais deste instrumento teórico em duas de suas formas principais: a dedutiva e a indutiva. Elementos os quais, adiante, servirão para elaborar um diálogo entre a identidade em algumas escolas filosóficas e correntes psicológicas.

Em Platão, o "ser" é concebido como algo perfeito e, se perfeito, não pode deixar de ser. Sendo o fenecer e o mudar uma marca de imperfeição, pois, se não permanece como é, logo não "é" de fato verdadeiramente. Assim, as Idéias platônicas são estruturas inteligíveis, as quais não se encontram no tempo, mas fora dele: na eternidade. Já os objetos sensíveis "são" somente por, de alguma forma, participarem da perfeição pertencente às Idéias, mas possuem um status ontológico inferior, pois estão submetidos às mutações que assolam nosso mundo vulgar das coisas de sentir.

Para ter acesso a este mundo inteligível, devemos buscar a pura intelecção apartada de tudo o que é sensório: o corpo, suas paixões e as coisas dos sentidos (Platão, trad. 1996). As tão aclamadas capacidades de Sócrates, para com o controle de suas sensações, ressoam um ascetismo platônico: suportar os efeitos do frio intenso na neve, sem cobrir-se, durante as longas marchas, permanecer sóbrio e lúcido, por mais vinho que beba e, ser o único que não é acometido da vontade de se deitar com o mais belo jovem do banquete (Platão, trad. 1983).

Em Aristóteles, também haveria a afirmação de um conceito identitário, mas não pelo apelo à idéia em sua forma perfeita: esta se dá pelo conceito de substância (ousia), propriedade primeira do ser a qual todas categorias se referem. É a substância que garante a univocidade e constância do ser, já que é nesta que todos acidentes se imprimem para existirem. Todas características contingenciais inseridas na fugacidade temporal nada mais são do que atributos predicados a esta essência, a qual dá suporte a estes sem perder sua constância: "Agora, a principal propriedade da substância parece ser isto: que apesar de permanecer idêntica, una, e a mesma, é capaz de receber qualificações contrárias." (Aristóteles, trad. 1985, p. 57). Aristóteles vê o conhecer como dependente do sensório, ainda que a ontologia dos seres seja definida por sua substância essencial, apartada de tudo que é contingente.

Seguindo uma lógica semelhante de dividir a realidade em substância e acidentes, Descartes, questionando-nos sobre o que nos faz dizer que um pedaço de cera duro posteriormente derretido é "o mesmo", explicitará o caráter abstrato da substância e o papel fundamental da razão (o entendimento, distinguindo-se da imaginação e das sensações). Pois é esta que, diante da alteração de todas as aparências, consegue apreender o que está para além do sensível, a verdadeira base ontológica do bloco de cera, sua substância: sua identidade. É necessário olhar para a cera nua de seus acidentes, vislumbrar com o entendimento a abstração de sua aparência: "É necessário, portanto, que eu concorde de que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é esta cera e que é apenas meu entendimento que a concebe" (Descartes, 1641/1999, p. 265).

Novamente vemos o corpo e suas sensações postos em questão. Para Descartes, as verdades primeiras são as inteligíveis (a lógica, a matemática e a geometria), por serem as únicas que independente da situação permanecem as mesmas (um circulo é sempre um círculo, dois vezes dois sempre são quatro, não importa onde ou quando). Mas no seu Discurso ao método, irá erigir outro espaço ao corpo e seus sentidos: definindo enquanto condição para o acesso ao verdadeiro nas coisas, para a correção do saber, a necessária disciplinarização dos sentidos. Mesma prerrogativa será feita por Francis Bacon em seu Novum organum para que sejam vencidos os ídolos do saber: "Assim, não é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e peso, para que lhe sejam coibidos o salto e o vôo" (Bacon, 1620/1999, p. 81). Não se trata mais de escrever as verdades mesmas, mas de erigir um modo, uma forma, através do qual todos possam conhecê-la, o método.

Para Além da Forma e da Substância

Assim, vemos uma configuração da realidade composta: a substância (conteúdo material ou abstrato sobre o qual se imprime a forma, a aparência) e a forma (estrutura abstrata, inteligível, que ordena à substância). Sempre iguais a si mesmas, existem por si, de modo independente das demais configurações da realidade: tendo, por isso, um status ontológico superior de ser o que realmente é. Tal realidade é contraposta aos acidentes, as propriedades e atributos que se realizam nestas, ou por estas, essências anteriormente citadas, sem retirar-lhes sua constância e univocidade. Os acidentes não existem por si, dependem da essência identitária para serem, e quando o são, fazem isso de um modo menor, fugaz, inconstante. Tratando as inconstâncias da fugacidade como atributos predicáveis de uma essência substantiva, se acaba por permitir o uso do conceito identidade. Assim, poderiam alguns argumentar que a constância da identidade depende da substância, enquanto outros podem afirmar que a forma seria o critério delimitador de uma identidade coerente com a noção de idêntico a si

No entanto existem diversas complicações na operação do conceito de identidade para circunscrever os limites dos objetos em nosso mundo. Se tratássemos da cadeira em que estás sentado, por exemplo, a sua transmutação atômica de ferro para plástico (mudança de substância), ou ainda, a troca de suas pernas por rodas (mudança de forma), seriam modificações as quais impediriam o uso dos conceitos forma e substância como critérios necessários e suficientes na definição de algo ser idêntico a si (identidade), e, por conseqüência, impediriam o próprio uso do conceito identidade como explicação cabal para a persistência de nossas denominações.

Mas, em se tratando de mim ou de ti, não basta impossibilitar a identidade de substância e forma para impossibilitar uma coisa sempre igual a si (identidade). Quando falamos de humanos, a noção de identidade está muito atrelada ao conceito de consciência e de nossa autopercepção, pois é com a percepção de nossas percepções, pensamentos, afetos e memórias que afirmamos nossa existência perante nós mesmos e os demais. Sem pretender oferecer uma resposta para um termo contemporaneamente tão polifônico, podemos ressaltar uma definição que nos conceitua a consciência como referente ao encontro das memórias passadas e planejamentos futuros que fazemos em nossa mente ou cérebro no presente. Sendo um gerenciador de esquemas mentais e decisões, ou um epifenômeno fruto do agenciamento de esquemas de condicionamento, a consciência costuma estar atrelada aos atos e pensamentos que produzem a ligação entre passado e futuro construindo nosso presente (Bergson, 1903/1989; Damásio, 2000).

No entanto, as formas de compreender tal fenômeno variam muito na filosofia, psicologia ou neurociências. Façamos, aqui, então, uma didática divisão desta miríade de perspectivas em duas posições gerais: as que vêem a consciência enquanto um atributo "interior", privativo, e as que diluem esta em uma rede de interações para além do indivíduo.

As perspectivas identitárias de consciência usualmente a identificam enquanto entidade reificada em uma substância (mente, cérebro) ou forma (esquemas de processamento da informação, rede cortical) que se referem a si mesmas constituindo uma interioridade privativa do indivíduo fechada em si. Seria através desta base própria que o sujeito efetuaria suas interações com seu meio, o qual influi e modifica as mesmas nesta relação, mas sempre enquanto entidades de realidades distintas: mantidas por uma coerência interna específica a cada, e partidas por um binarismo do particular e do coletivo, do dentro e do fora, do sistema nervoso central e do periférico, etc. Aqui nossas memórias e planos são conhecimentos abstratos em uma entidade inteligível autocontida (mente, esquemas), ou mesmo informações neuroquímicas restritas ao cérebro e sua rede neural (Beck & Freeman, 1993; Damásio, 2000; Hall, Lindzey, & Campbell, 2000).

Já para as perspectivas que utilizam o conceito-ferramenta subjetividade, estes binarismos são trocados por uma complexa rede constitutiva do sujeito, a qual está sempre a ultrapassar sua construção enquanto indivíduo. Trata-se de uma construção forjada em arranjos sempre cambiantes de forças, os quais não podem ser reificados em entidades ou órgãos, e, tampouco referidos a si mesmos em uma coerência interna.

Nossas memórias e planos, nosso passado e possibilidades de futuro, existem na concretude de nossos corpos e de nossas ações. O corpo mais que todo, a se ultrapassar como ação orgânica e histórica, parte de um mundo-ação. Corpo não identitário, impossibilitado de isolar-se em um "si mesmo". Formado em uma estilística expressionista, aquém da divisão forma-conteúdo, registro constituinte e constituído das marcas do tempo, a partir do qual nossas ações erigem-se do que foi, nos lançando ao que será, em um só tempo: o presente e suas virtualidades. Corpo-no-mundo, memória concreta do passado todo superfície, colapsado no presente, de onde se atualizam novas ações, as quais são o futuro no agora, a concretude do vir-a-ser.

Transubjetivando: As Forças

O conceito de subjetividade transborda as linhas da identidade enquanto algo igual a si mesmo, pois se há constância em seu critério, esta é de mudança na construção das estilísticas do ser. Fala da constante passagem: de um processo, de uma ação, de um acontecimento. Assim, quando pensamos eu mesmo ou tu mesmo, estamos afirmando que este ao qual denomino, é um instante de um processo. Um momento capturado por meu olhar restrito, uma presa carregando consigo toda uma trajetória singular e tortuosa. Logo, quando dizemos, ele mesmo, não estamos afirmando que seja o mesmo idêntico ao que foi, mas sim que é agora um distinto, no qual de alguma forma aquele passado atua, do mesmo modo que em um percurso errante, o caminho percorrido influi no que irá se percorrer, toma parte deste, mesmo sendo díspar, pois se encontramo-nos onde estamos é só porque já estivemos em outro lugar diferente do que agora passamos: "Cada um de seus momentos é algo novo que se junta ao que havia antes. Vamos mais longe: não é algo novo, mas algo imprevisível" (Bergson, 1907/1964, p. 45).

A subjetividade, antes de ser feita de igualdades, é constituída por diferenças contingentes, justapostas, formando um estilo. Desfaz-se o esquema antes explicitado de uma divisão da realidade em essências e acidentes. Nietzsche, por exemplo, irá denunciar a dependência secreta da aparente naturalidade da identidade para com os pressupostos implícitos na lógica e na linguagem: "A palavra e o conceito são o fundamento mais visível, pelo qual acreditamos nesse isolamento de grupos de ações: com eles não nos limitamos a designar as coisas, pensamos captar originalmente, através deles, o ‘verdadeiro’ nelas" (Nietzsche, 1999a, p. 123).

O cogito cartesiano, por exemplo, a aparente auto-evidência do penso logo existo, encontra-se sustentada por diversas outras afirmativas como: "pensa-se" e "sou eu que penso". E, é exatamente neste conjunto de pressupostos que encontramos o sujeito cartesiano extirpado de seu corpo e identificado com a consciência abstrata e autocontida, a própria afirmação de um eu identificado com a consciência já está, aí, explícita, juntamente com a possibilidade de discernibilidade entre algo chamado pensamento e as nossas sensações e afetos. Não passam de artigos de fé gramaticais, onde todo predicado/acidente exige um sujeito/substância. É motivado pela sedução da linguagem que o homem busca uma verdade além do aparente, uma essência sob o contingente, uma causa para um efeito. Nomes próprios, substantivos, que servem de unificadores referenciais de adjetivos, e desaceleradores de verbos, oferecendo a estes uma causa-agente ou um fim-paciente que lhe dêem um sentido.

Erigimos então, com a subjetividade, um campo todo superfície, formado apenas pelas contingências, pelas predicações em constante movimentação verbal, tudo ocorre, acontece. Existimos, então, em um mundo-expressão, no qual vagamos-expressamos, impelidos por nossas forças em arranjo. E, assim, nos vamos implicando com as demais expressões, as quais jamais são as próprias, mas a criação de um encontro. São efeitos e efeitos que se concatenam em uma trama dinâmica, a qual constitui uma espécie de jogo em permanente transmutação. Um jogo que tem suas regras afirmadas e mudadas em cada ação, mas jamais como algo subjacente ao que ocorre, elas são no que ocorre, enquanto ocorre.

Passamos então da designação de coisas predicadas a um sujeito, para a expressão de acontecimentos sempre moventes, onde o atributo não é mais uma qualidade-adjetivo de um ser, mas sim a expressão verbal de um modo de ser. Liberamo-nos do agente-essência, do ser por trás das ações, e passamos a considerar tudo enquanto um intrincado mosaico de ações, expressões, acontecimentos: linhas de força. "Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo" (Nietzsche, 1887/1999b, p. 36).

Transubjetivando: O Impessoal Disparando Diferenças

Subjetivação, diferenciação da diferença que não está constituída em algo, mas que está sempre se afirmando na força de uma ação, em um processo de agenciamento de práticas, em atravessamentos os quais, no seu encontro fluido, expressam o que denominamos indivíduo. E, aqui, indivíduo não significa mais o que não pode ser dividido em si, por constituir uma unidade fundamental do ser (identidade); mas sim, o que não pode ser dividido do que lhe envolve, do que o envolveu, enfim, de suas implicações. Pois, se para alguns ele se reduz ao ponto bem definido, onde a pedra atinge o espelho do lago, aqui ele é as ondulações a se expandirem e o leito que as rebate, o vento crispando as ondas e a água pela qual deslizam o fundo a lhes sustentar, e até onde nosso olhar alcança a dança.

Simondon (2003), por exemplo, construiu uma filosofia que não irá pensar o indivíduo enquanto átomo da matéria da existência, não partirá deste enquanto axioma para pensar o ente. Trabalhará antes com um campo de singularidades pré-individuais as quais em sua composição constituem o ser na "ação dos díspares, pela disparação" (Orlandi, 2003, p. 94). Tal compreensão de um plano virtual onde as singularidades, em sua disparação, promovem as (re)constituições do sistemaente, como um campo problemático pré-individual, constitui uma perspectiva a qual podemos denominar empirismo transcendental, onde nem tudo se resume à forma da empiria dada, mas nada para além é elemento fundador ou organizador da mesma. Trata-se da imanência simplesmente, mas habitada pela intempestividade das singularidades impessoais, que inundam o sistema-ente de metaestabilidade. Simondon demonstra o privilégio ontológico que habita a filosofia e a psicologia por, ao estudarem o princípio de individuação, sempre partirem do indivíduo dado: tratando-o como explicativo das características deste em si, sem transpassá-lo ou questionar os termos da sua ontogênese. Invertia-se a operação, erigindo princípios para explicar o formar-se partindo do já formado. "Então o indivíduo seria apreendido como uma realidade relativa, uma determinada fase do ser que supõe uma realidade pré-individual anterior a ela, e que não existe completamente só, mesmo depois da individuação" (Simondon, 2003, p. 101).

Nesta perspectiva o ser não aparece enquanto substância ou forma, mas enquanto sistema, tenso, maleável, que não pode ser circunscrito a uma identidade, pois está sempre a ultrapassar-se nos momentos de saturação problemática pelas potências impessoais do pré-individual. Não fosse assim, restar-lhe-ia apenas a saturação definitiva de um ser inanimado, como o cristal da rocha que, depois de formado, ali queda por milênios até uma ação externa lhe dilapidar desta situação.

Substância, forma, matéria, não são princípios individuadores, o princípio de individuação é a mediação, a ligação de ressonâncias que constroem um sistema ao mesmo tempo corpuscular e ondulatório. O ser vivo surge na brecha entre sistemas, como a planta que surge gerando comunicação entre o corpuscular dos elementos químicos no solo e o ondulatório dos raios cósmicos constituintes da luz do sol: a planta vive como ressonância entre estes, dispara no entremeio destas disparidades (Simondon, 2003). São diferenças que disparam em seu encontro outro distinto. Todos unidos em um sistema de comunicações permanentes, o qual ressoa segundo uma metaestabilidade própria ao ser vivo, ou seja, onde não cessa a individuação, enquanto tomar parte no devir, a partir das potências impessoais das ressonâncias meio-indivíduo, as quais estilhaçam a possibilidade de erigir uma polaridade entre estas duas categorias, pois o ente é o entre e tais polaridades findam por se transpassar.

Assim, o indivíduo institui-se enquanto relação, sistema que constrói e (re)inventa a todo momento uma interioridade ressonante em um sistema que lhe ultrapassa. Tomamos, então, "toda verdadeira relação como tendo posição de ser" (Simondon, 2003, p. 106), destituindo o privilégio do indivíduo constituído, pensando a individuação constituinte. Abrindo o pensar sobre o ser para o impessoal e suas singularidades nômades que constituem a virtualidade a diferençar e diferenciar, a potencializar o devir, deste processo que aqui denominamos subjetivação. Para Simondon (2003), portanto, o ser não teria uma unidade de identidade, mas, uma unidade transdutora (p. 110), onde está sempre a acontecer, tecendo um tecido conjuntivo de "e", um rizoma sem a interioridade da consciência identitária, ou seja, uma trama complexa e conjuntiva na qual vários sentidos se afirmam simultaneamente de modo paradoxal, sem constituir um sentido único e essencial como garantia da coerência do ente, mas sim a complexidade das relações presentes nesta trama que tece a unidade transdutora. O essencial da ontogênese é a diferença: as disparidades que geram disparações.

Vemos, portanto, que o uso do conceito subjetividade atrelado ao de subjetivação em muito se diferencia do conceito de subjetividade enquanto algo simplesmente íntimo. Pois, ao tempo em que este último apela a uma metafísica puramente temporal, referente a uma interioridade abstrata (mente, eu, consciência); a noção aqui apresentada constitui-se enquanto uma proposição espaço-temporal, constituindo-se não como discurso confessional auto-referido, mas antes como carta que acompanha o movimento das forças e suas guerrilhas de diferenciação.

Os Corpos da Prática

Os conceitos de identidade e de subjetividade atualizam no seu uso todo um instrumental epistêmico atrelado a uma determinada perspectiva ontológica que se aplica tanto ao sujeito considerado "objeto", quanto ao sujeito que perscruta. Evidentemente, tais definições onto-epistêmicas são constituídas também por uma determinada postura ética perante o que é pesquisado. Deste modo, quem olha e quem é olhado, o modo de olhar e o que se busca com tal pesquisa e/ou intervenção, são estratégias dependentes dos conceitos aqui trabalhados.

Por exemplo, tanto Platão quanto Aristóteles vêem a necessidade de seccionar-se, ao menos em algum grau, do próprio corpo: prisão que lhes impõe as fugacidades pueris e ilusórias das paixões e sensações sem os freios da harmonia racional e seu conhecimento da simetria. A carne, em seus impulsos, impede-nos de conhecer o verdadeiro para além do tempo. O corpo-prisão nos afunda em uma escuridão sensível, que pode ser vencida com a tomada da escuridão pela luz do Nous, da razão: pura inteligibilidade abstrata. A libertação do entendimento não possui um sentido restrito à utilidade, ou mesmo dominação: aqui conhecer é uma aventura moral de ascese, de tornar-se mais e melhor humano, distanciando-se das bestas irracionais e irascíveis. Do mesmo modo, nas teorias Humanistas da Psicologia (Rogers, 1977; Von Franz, 1993) vemos uma teleologia de ampliação do ser, por um processo que pode se chamar para alguns auto-atualização (Rogers, 1977) e para outros, individuação (Von Franz, 1993). Vê-se aqui a elegia da ampliação da consciência sobre as vicissitudes impostas pela concretude da vida, baseada na (auto) realização da essência do indivíduo, em prol do desenvolvimento de um humano melhor: "Ouvindo-o [ao self] tornamo-nos seres humanos mais completos" (Von Franz, 1993, p. 162).

Já em Descartes e Bacon, com o nascimento do iluminismo e da modernidade, encontramo-nos diante da exigência de formatação do corpo e sua sensibilidade segundo uma ortopedia do método, que regula os sentidos em sua empreitada do conhecer para que estes não a maculem com o que há de subjetivo. Suas singularidades devem ser deixadas de lado em prol de um sujeito epistêmico universal, este ser humano abstrato que não habita qualquer canto deste nosso mundano mundo. Um corpo universal e abstrato: corpo-filtro do mundo que deve ser moldado para o correto sentir das coisas reais em si. Corpo-filtro generalizado pelo método que o constrói no caso do Behaviorismo (Skinner, 1985) e de algumas correntes da psicologia da personalidade, como o Cognitivismo (Beck & Freeman, 1993; Hall et al., 2000), onde, o primeiro reduz e formaliza o sujeito a um conglomerado de esquemas de condicionamento positivos, negativos e de extinção do comportamento, enquanto o segundo reduz e formaliza o sujeito a uma personalidade fruto de um esquema formado por crenças fundamentais as quais se ativam em uma cadeia causal uniforme para as mais diversas situações, delimitando perfis cognitivos e transtornos. Sejam esquemas (cognitivos, afetivos, motivacionais), temperamentos, Traços, crenças centrais, sejam linhas centradas em formas ou substâncias, construídas ou inatas, tais escolas concordam na existência de um elemento integrador e organizador das percepções, pensamentos, afetos, ações, o qual sintetiza e objetiva um mundo e um sujeito segundo esta essência identitária genérica denominada personalidade, a qual, baseada em suas estruturas profundas, permite uma continuidade coerente e trans-situacional ao sujeito: "A personalidade é aquilo que dá ordem e congruência a todos comportamentos diferentes apresentados pelo indivíduo... a personalidade representa a essência da condição humana" (Hall et al., 2000, p. 32).

Afinal, não basta tatear o empírico para deste, produzir saber. Com o corpo-filtro, experimentar não fala mais de multiplicar tentativas de encontro de efetividades, mas, sim o adotar um modo específico (científico), considerado correto para ao correto conhecimento se chegar. O método torna todos os indivíduos iguais na aventura do conhecer, disciplinando sua experiência, evitando a influência de fatores conativos, afetivos, etc., os quais se admitem estarem presentes na produção de saber, mas aos quais se acredita ser possível anular pelas regras auto-impostas do método. "Pois, o nosso método de descoberta das ciências quase que iguala os engenhos e não deixa muita margem para a excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas e demonstrações" (Bacon, 1620/1999, p. 92).

Deste modo, o indivíduo republicano e laico pode se constituir enquanto membro de uma comunidade universal sem que suas diferenças possam abalar a coerência unívoca do contrato entre todos firmado. Partem assim, para um projeto de dominação da natureza, inclusive das suas, em prol do desenvolvimento da sociedade, aguçando seus instrumentos de controle e previsão sobre os fenômenos naturais, para melhor realizarem o ideal progressista técnico-científico. Este é o caso, por exemplo, dos testes Psicométricos, nascidos e mantidos com o objetivo de esquadrinhar as características humanas em conceitos claros, operativos e verificáveis, de modo à melhor prever e controlar as capacidades deste homem, seja com fins terapêuticos, técnico-científicos ou mercantis.

No entanto, em Nietzsche, serão demonstradas as cores desta vontade pelo geral, desta estética da translucidez que se crê sem tintas. Aqui, o corpo não é prisão, muro, ou filtro a ser domesticado em prol da verdade, mas sim um abismo invertido que nos lança e desfaz no mundo, em suas forças com as quais ressonamos. O corpo é uma pluralidade de vontades de potência em conexão com os fluxos de forças do mundo em uma alternância de arranjos, sem uma essência por trás das forças, pois, estas mesmas são o ser. Corporizoma, não completamente dividuado do mundo, diferencia-se a si e ao mundo, transformando-os. Corpo que não nega ou aparta sua subjetividade, mas sim, afirma sua singularidade móvel e sua parcialidade perspectivista.

O corpo em Nietzsche é ele mesmo um turbilhão de forças em constante embate estratégico tendo, cada linha de força, seu próprio pensar, sentir, querer. Estas entram em diferentes arranjos de dominação, aos quais usualmente atribuímos uma unidade essencial centrada na consciência, mas que formam redes descentradas de organização. Cada corpo é uma inscrição temporária em constante modificação, das diversas lutas pontuais que ocorrem em seu contexto, transbordando ao próprio indivíduo; que não somente jamais é um, como tampouco possui fronteiras delimitadas. Assim, na práxis da psicologia da diferença, não somente os procedimentos terão de ser reinventados para cada encontro entre singularidades, como tais intervenções não se voltarão a um indivíduo, já que para os olhos desta prática este não pode assim ser objetivado.

Parece cada vez mais se intensificar o paradoxo ao pensarmos que o corpo é abertura para o mundo - e não fechamento. Ao invés de nos separar do mundo, ele nos permite fazer parte dele: o habitar, o impressionar e impor nossa existência que é uma existência conectada. É a potência de deslocamento do paradoxo, que jamais cessa de ir entre um lado e outro findando com estas oposições, acabando com os limites e cisões: "O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas" (Deleuze, 1975, p. 3).

Este, portanto, é o corpo-cartógrafo no conhecer: "Um conceito não é a priori nem a posteriori, mas a presenti" (Simondon, 2003, p. 109). Logo, não se trata de abstração dedutiva, nem de indução redutora, mas sim pensar o conhecer através da transdução (Simondon, 2003). A dedução simplifica as possibilidades do que há, reduzindo-as a partir de um crivo abstrato formado por princípios ou leis que pressupõe uma determinada realidade harmônica aos mesmos. Sendo isto o que ocorre com a psicanálise e alguns humanismos citados, onde pré-existem determinadas categorias de classificação estrutural ou de fim teleológico do sujeito, a partir dos quais se deve enquadrar a compreensão do mesmo. Já a redução pela indução ocorre ao perscrutar o empírico a partir de um crivo metodológico que opera agrupando semelhanças em conjuntos que excluem a diferença que escapa a estes: o desvio da curva normal. Como no Cognitivismo-comportamentalista e na Nosografia Psiquiátrica, onde se constroem, a partir da empiria e do método experimental, diversas unidades gerais simplificadoras da sintomatologia: as personalidades, os esquemas e os transtornos. A transdução, por sua vez, é um propagar-se rizomático e contingencial que é, ao mesmo tempo, perspectiva epistêmica e modo ontogenético. É esse arranjar-se, de uma resolutibilidade parcial, imanente às derivações das tensões problemáticas do sistema, que apontam a um potencial mutagênico virtual que integra a disparidade ao invés de excluí-la dos dados ou modelá-la segundo um padrão abstrato.

Estratégias da Igualdade e da Diversidade

Assim, como existem diversos modos de ontogênese nesta perspectiva da subjetividade, existem também diversas lógicas, éticas e estéticas: "A classificação das ontogêneses permitiria pluralizar a lógica como um fundamento de pluralidade." (Simondon, 2003, p. 116). E é exatamente no que tange a abarcar a diversidade que este posicionamento mostra sua maior peculiaridade prática.

A identidade, partindo de uma perspectiva cientificista voltada ao controle e previsão generalizáveis, se utiliza de estratégias de simplificação que se fundamentam na melhor definição (mais objetiva e operacional) de um padrão de igualdade em um fenômeno. Agrupa igualdades a partir de critérios de semelhança já dados ou encontrados no campo, para com estes obter um retrato ordenado que seja mais efetivo, na obtenção de categorias identitárias gerais, as quais, por sua vez, melhor sirvam para práticas de previsão e controle o mais simples e generalizáveis possíveis. Simplifica com padrões de igualdade as singularidades do sujeito e do social, dividindo-os e enquadrando-os nos esquadros gerais de estruturas, personalidades, transtornos, quadros sintomatológicos, etc. Sendo tal operação o que possibilita a criação de práticas que possam ser expressas como técnicas e manuais, pois, encontram-se baseadas em teorias formalizadas e generalizáveis que buscam a identificação dos fatores causais dos fenômenos em questão (crenças básicas, conflito edipiano, etc.). Tal formatação teórica em busca dos parâmetros científicos foi e é fundamental ao desenvolvimento de intervenções facilmente reproduzíveis e que se efetivem com sucesso em uma larga média populacional.

Já o conceito de subjetividade busca a ampliação da complexidade dos fenômenos, cartografando suas diferenças, caprichos, peculiaridades. Vislumbrando este, não de modo isolado, substancializando-o e formatando-o como um "à parte", um "si mesmo"; pelo contrário, investigando nestes as linhas que o levam para além de si. A rede de condições de possibilidade das mais variadas escalas e tipos, às quais constituem e reinventam os sujeitos a cada instante. Subjetividade, não no sentido de referente a aquilo que é particular a um "si mesmo", mas sim, subjetividade enquanto tentativa de apreender aquelas linhas fugidias que transpassam e constituem os fluxos produtores do nosso mundo vivido. Aquilo que é menor e mutável, que se encontra invisibilizado por representações gerais, tampões da diversidade, como as definições de normal e patológico.

Segundo este modo, as práticas de que pode precaver-se o pesquisador e o profissional perante o campo, são flexíveis e deslocáveis, permitindo sua reinvenção diante da pergunta colocada naquele momento. Os conhecimentos e intervenções decorrentes destas práticas não servem a generalizações perante outras experiências, e tampouco à simplificação de procedimentos e intervenções. A produção a partir desta perspectiva serve à complexificação de um dado campo de atuação e pesquisa, visibilizando outros arranjos que lá também estão dando novas ferramentas para aproximar-se da singularidade do acontecimento em questão.

 

Referências

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Received 30/06/2006
Accepted 14/09/2007

 

 

Luis Artur Costa. Psicólogo. Mestre pelo Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Tania Mara Galli Fonseca. Psicóloga. Mestre e doutora em Educação pela UFRGS. Pós-doutora pela Universidade de Lisboa. Atualmente é professora titular da UFRGS.
1 Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Social e Institucional, Rua Ramiro Barcelos, 2600, Sala 13, Santana, Porto Alegre, RS, Brasil, CEP 90035-003. E-mail: lartur@cpovo.net