SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 número3A seleção dos imigrantes e a liga brasileira de hygiene mental (1914-1945)Co-construyendo historias: a la búsqueda de hechos luminosos en los relatos familiares sobre el consumo de drogas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Interamerican Journal of Psychology

versão impressa ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. v.42 n.3 Porto Alegre dez. 2008

 

 

Abuso sexual infantil: indicadores de risco e conseqüências no desenvolvimento de crianças

 

Child sexual abuse: risk factors and consequences on development of children

 

 

Jeane Lessinger Borges1; Débora Dalbosco Dell’Aglio

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo investigou as características do contexto do abuso sexual infantil (ASI) e da revelação, as conseqüências no desenvolvimento das crianças e a presença de indicadores de risco nas famílias. Participaram 16 meninas vítimas de ASI, entre sete e 13 anos, e suas mães. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e foi aplicada a versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children (K-SADS). Foi observada a presença de indicadores de risco nas famílias (intergeracionalidade, doença mental dos pais e uso de álcool e drogas) e de uma variedade de sintomas emocionais e comportamentais nas meninas, incluindo o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Conclui-se que o ASI está associado a severas conseqüências no desenvolvimento, necessitando intervenção psicológica às vítimas e suas famílias.

Palavras-chave: Abuso sexual infantil; Indicadores de risco; Sintomas; TEPT.


ABSTRACT

This study investigated characteristics of the context of child sexual abuse (CSA) and context of disclosure, consequences on children’s development, and the presence of family’s risk factors. In this study 16 girls victims of CSA, aged between 7-13 years old, and their mothers were interviewed. Semi-structured interviews were carried out and the Brazilian version of Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children (K-SADS) was used. The presences of family’s risk factors (intergenerationality, parental mental disease, and parental substance abuse) and of wide range of emotional and behavior symptoms in the girls, including the posttraumatic stress disorder (PTSD), were observed. The CSA is associated to severe consequences on development, and psychological interventions with victims and their families are necessary.

Keywords: Child sexual abuse; Risk factors; Symptoms; PTSD.


 

 

O abuso sexual infantil (ASI) é considerado um evento traumático e pode ser um fator de risco para o desenvolvimento, devido às severas seqüelas emocionais, comportamentais, sociais e cognitivas associadas a sua ocorrência (Cicchetti & Toth, 2005; Kendall-Tackett, Williams, & Finkellor, 1993; Paolucci, Genuis, & Violato, 2001). Conforme a World Health Organization (WHO, 2004), o ASI é definido como o envolvimento de uma criança ou adolescente em atividade sexual inapropriada com um adulto, sendo que a atividade sexual é destinada à gratificação sexual desta outra pessoa. Pode variar desde atos em que não exista contato sexual (voyeurismo, exibicionismo), até diferentes atos com contato sexual sem penetração (toques, carícias, masturbação) ou com penetração (vaginal, anal e oral). Estas práticas eróticas e sexuais são impostas à criança ou ao adolescente pela força física, ameaças ou indução de sua vontade (Araújo, 2002; De Antoni & Koller, 2000; Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005).

No Brasil, o relatório do sistema nacional de combate à exploração sexual infanto-juvenil (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência [ABRAPIA], 2003) refere que, no período de janeiro de 2000 a janeiro de 2003, foram realizadas 1547 denúncias de abuso sexual. Do total de denúncias realizadas, 54% representavam casos de abusos intrafamiliares, sendo que em 42% dos casos o pai era o principal suspeito. Em relação ao perfil das vítimas, a maioria das denúncias envolveu o sexo feminino (76%) na faixa etária entre os 12 e 18 anos (47%). No estado do Rio Grande do Sul (RS, Brasil), um estudo realizado junto à Secretaria da Justiça e da Segurança (Pfeiffer & Salvagni, 2006) indicou um total de 1.400 casos de crianças vítimas de violência, no ano de 2002, sendo que em 872 casos se referiam ao ASI (62%). No ano de 2003, foram denunciados 1.763 casos de crianças vítimas de violência, que envolviam 1.166 casos de ASI (66,14%) (Pfeiffer & Salvagni, 2006). Em outro estudo, sobre a descrição do perfil das vítimas e dos abusadores em 71 expedientes judiciais, de Porto Alegre (RS), Habigzang et al. (2005) apontaram que em 80,9% dos casos as vítimas eram meninas e 19,1% meninos. Em 83% dos casos o perpetrador era um adulto familiar à criança, sendo o pai biológico (57,4%) e o padrasto (37,2%) descritos como as figuras abusivas. De um modo geral, estes dados suportam a evidência de que: (a) o ASI seja considerado um sério problema de saúde pública; (b) ocorre predominantemente no contexto familiar da vítima, caracterizando uma situação incestuosa; (c) meninas tendem a serem mais vítimas deste tipo de maus-tratos; e (d) explicita um segredo familiar, sendo em muitos casos perpetuado ao longo de anos ou de gerações, devido à dificuldade da criança e da família em romper o ciclo de violência.

A literatura tem apontado a presença de fatores de risco associada à ocorrência de ASI (Nurcombe, 2000; Putnam, 2003). Prematuridade ao nascimento, baixo nível educacional dos pais, número maior de filhos, pais separados, intergeracionalidade da violência, práticas disciplinares coercitivas, famílias "isoladas", com uma pobre rede de apoio social e a presença de alcoolismo e abuso de outras drogas têm sido considerados como fatores de risco (Flores & Caminha, 1994; Koller & De Antoni, 2004). Fatores de risco para a família incestuosa foram descritos no estudo de Habigzang et al. (2005), indicando a presença de padrasto, abuso de álcool ou drogas, desemprego, mãe passiva ou ausente, pais desocupados e cuidando dos filhos por longos períodos de tempo, dificuldades econômicas, violência doméstica e violência física conjugal como de maior prevalência nestes casos.

Outro ponto a ser destacado nos casos de ASI refere-se à falta de materialidade do fato, uma vez que na maioria destes casos não são observadas marcas físicas (Araújo, 2002; Pfeiffer & Salvagni, 2006). Nesse sentido, a avaliação das alterações emocionais e comportamentais torna-se um elemento importante à identificação dos casos. Estudos apontam a presença de uma diversidade de sintomas clínicos associados ao ASI, incluindo seqüelas emocionais, comportamentais, cognitivas e sociais (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001; Tyler, 2002). Comportamento sexual inapropriado, baixa auto-estima, sentimentos de desamparo, ódio e medo, relações interpessoais disruptivas, tendências suicidas, isolamento, fugas de casa, dificuldade de confiar no outro e estabelecer relações interpessoais têm sido descritos como as principais conseqüências (Amazarray & Koller, 1998; Kendall-Tackett et al., 1993; Tyler, 2002). Entre as psicopatologias mais associadas à ocorrência de ASI estão os transtornos de humor, transtornos de ansiedade, transtornos dissociativos, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos alimentares e o transtorno de abuso de substâncias (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001; Putnam, 2003). O Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) tem sido citado como o quadro mental mais freqüente em vítimas de ASI, sendo que sua prevalência pode variar entre 20 a 70% dos casos (Ackerman, Newton, McPherson, Jones, & Dykman, 1998; Nurcombe, 2000; Paolucci et al., 2001). O diagnóstico de TEPT é realizado após a pessoa vivenciar, testemunhar ou ter sido confrontada com um ou mais eventos traumáticos (critério A1) e reagir com intenso medo, pavor ou comportamento de esquiva (critério A2). É caracterizado pela presença de três categorias de sintomas: (a) re-experiência intrusiva (critério B); (b) evitação e entorpecimento (critério C); e (c) excitabilidade fisiológica aumentada (critério D) (American Psychiatric Association [APA], 2002). Os sintomas devem estar presentes por um período superior a um mês (critério E), após a exposição ao evento traumático, estar interferindo em diferentes áreas do desenvolvimento infantil e provocar prejuízos no funcionamento cognitivo, emocional, social e acadêmico das crianças (critério F).

Nos Estados Unidos, a presença do diagnóstico de TEPT foi de 36,3% entre as crianças abusadas sexualmente (Ruggiero, McLeer, & Dixon, 2000) e, em outro estudo, no Canadá, foi de 46% numa amostra com meninas vítimas de ASI (Collin-Vézina & Hébert, 2005). Estes dados se mostram relevantes quando comparados à prevalência da população geral, que varia entre 6% para os homens e 14% para as mulheres (Breslau, 2002). Contudo, ressalta-se que tais estudos incluem crianças vítimas de ASI em um contexto clínico, justificando uma alta prevalência. Destacam-se ainda elevadas taxas de comorbidade entre as vítimas com TEPT, em torno de 80% dos casos (Margis, 2003). Crianças vítimas de ASI com TEPT podem apresentar ainda alta freqüência de outros transtornos de ansiedade, transtornos de humor, ideação suicida, transtorno psicótico breve e TDAH (Famularo, Fenton, Kinscherff, & Augustyn, 1996). Apesar da alta prevalência de TEPT em vítimas de ASI, este não deve ser considerado uma "síndrome" específica do ASI. Conforme proposto por Kendall-Tackett et al. (1993), no Modelo Multifacetado do Trauma, mais do que um quadro específico, em geral, observa-se a heterogeneidade dos sintomas emocionais e comportamentais em crianças vítimas de abuso sexual. Estes autores ainda mencionam que algumas crianças podem ser assintomáticas e que os sintomas podem variar de acordo com o período de desenvolvimento.

Algumas variáveis podem funcionar como mediadoras do impacto do ASI ao ajustamento psicológico da criança, como, por exemplo, o tipo de abuso, duração, idade de início, vínculo com o abusador, presença de ameaça e a exposição a múltiplos eventos estressores (Heller, Larrieu, D’Imperio, & Boris, 1999; Nurcombe, 2000). Crianças com maior número de sintomas tinham abusador mais próximo, alta freqüência dos episódios de abuso, longa duração, uso de força, abuso sexual com penetração (Kendall-Tackett et al., 1993). A presença de segredo foi um fator de risco para o desenvolvimento de Depressão e Ansiedade em crianças vítimas de ASI (Ackerman et al., 1998), e proximidade com abusador, duração e severidade do ASI foram positivamente correlacionadas com mais sentimentos de culpa (Quas, Goodman, & Jones, 2003). Em contrapartida, variáveis como gênero, nível socioeconômico, tipo de abuso, idade de início, relação afetiva com o abusador e a freqüência do abuso não foram consideradas mediadoras dos efeitos do ASI (Paolucci et al., 2001). Especificamente, em relação ao desenvolvimento de TEPT, se por um lado, maior freqüência e duração do ASI e idade de início tardia contribuíram para maior severidade do TEPT (Ruggiero et al., 2000), por outro lado, idade de início do abuso e a severidade não foram fatores capazes de predizer o desenvolvimento de TEPT (Ackerman et al., 1998). Desta forma, os dados não são conclusivos sobre a direção das características específicas do abuso na sintomatologia do ASI.

Alguns fatores de proteção têm sido associados a uma resposta positiva após a exposição ao ASI. A presença e a qualidade dos fatores de proteção foram ressaltadas como mais importantes para a saúde mental do que a quantidade de fatores de risco (Hanson et al., 2006; Jonzon & Lindblad, 2004). O contexto da revelação do abuso parece ser um importante fator para os efeitos psicológicos do ASI (Elliott & Carnes, 2001; Jonzon & Lindblad, 2004), sendo que crianças que receberam suporte materno apresentaram um ajustamento psicológico mais adaptativo do que as crianças sem suporte (DiLillo & Damashek, 2003; Pintello & Zuravin, 2001).

Reação familiar positiva frente ao abuso, suporte materno, vínculo afetivo com um cuidador não-abusivo e a presença de uma rede de apoio social e afetiva têm sido apontados como fatores de proteção aos efeitos do ASI (De Antoni & Koller, 2000; Lynskey & Fergusson, 1997; Pintello & Zuravin, 2001; Spaccarelli & Kim, 1995). Nesse sentido, a interação de fatores de risco e fatores de proteção, no nível individual, familiar e social, pode aumentar ou minimizar o efeito das conseqüências do ASI, direcionando um melhor ou pior ajustamento psicológico (De Antoni & Koller, 2000; Masten & Garmezy, 1985; Pesce, Assis, Santos, & Oliveira, 2004). A interação destes fatores tem sido considerada como um aspecto central nos processos de resiliência, ou seja, uma adaptação positiva dentro de um contexto de significativa adversidade (Luthar, Cicchetti, & Becker, 2000). Nessa concepção, "adaptação positiva" refere-se às capacidades individuais (ou do grupo familiar) para enfrentar adversidades, "ser transformado por elas, mas conseguir superá-las" (Pinheiro, 2004, p. 68). Embora o ASI esteja associado a múltiplas conseqüências ao desenvolvimento infantil, algumas crianças vítimas tendem a apresentar uma maior capacidade de superação e um melhor ajustamento psicológico.

Considerando tais aspectos, este estudo investigou as características do contexto do abuso e do contexto da revelação de casos de meninas vítimas de ASI, assim como a presença de sintomas emocionais e comportamentais, TEPT e comorbidades psiquiátricas nestas meninas. Além disso, foram investigados indicadores de risco à ocorrência do ASI presentes nas famílias das participantes.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo exploratório 16 meninas vítimas de abuso sexual intra e/ou extrafamiliar, com idades de sete anos e oito meses a 13 anos e seis meses (M=9,68; SD=1,58) e suas mães e/ou cuidadores legais. As meninas tinham uma escolaridade média de terceira série do Ensino Fundamental, estudavam em escolas públicas e residiam em Porto Alegre (62,5%) ou municípios da região metropolitana (37,5%), do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A amostra é de conveniência, sendo que as participantes se encontravam em atendimento em três serviços públicos especializados a situações de maus-tratos infantis: um serviço interdisciplinar de triagem inicial e de notificação dos casos de abuso sexual; um serviço de atendimento psicológico às vítimas de violência (ambos pertencentes a um hospital público); e um centro de pesquisa e de atendimento psicológico para casos de abuso sexual num município da região metropolitana de Porto Alegre (RS - Brasil). Este estudo faz parte de um projeto maior de pesquisa, em que foi desenvolvida uma parceria entre o Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - Brasil, e os três serviços públicos de atendimento à criança vítima de ASI.

Foram utilizados como critérios de inclusão: ser vítima de abuso sexual intra ou extrafamiliar; o abuso ter ocorrido há mais de um mês; estar no máximo na segunda sessão de avaliação psicológica e/ou atendimento psicoterápico; e contar com a presença de um familiar não-abusador ou cuidador legal, responsável pela participante, que participasse da pesquisa. O tempo mínimo de um mês após o abuso foi utilizado como critério, tendo em vista que para a avaliação do TEPT é necessário o tempo de um mês após a exposição ao evento estressor, de acordo com o DSM-IV-TR (APA, 2002). Nenhuma participante estava fazendo uso de medicação psicotrópica no período da coleta de dados.

Instrumentos e Procedimentos de Coleta de Dados

Avaliação do ASI. Para este estudo foi adotada a definição de ASI proposta pela WHO (2004), que considera o abuso de forma ampla, incluindo contatos sexuais com e sem penetração. A coleta de dados foi realizada, em todos os casos, num período entre um mês e quatro meses, após a revelação do ASI, totalizando três sessões de coleta de dados, sendo duas sessões de entrevistas com as mães e/ou cuidadores e uma entrevista com a menina.

A entrevista de avaliação do abuso sexual com a criança foi realizada pela equipe técnica dos locais, por psicólogos e assistentes sociais, mediante denúncia policial e/ou no Conselho Tutelar. Após esta avaliação, a equipe e a pesquisadora realizavam discussão dos casos em que o ASI era confirmado, observando se os mesmos se enquadravam nos critérios de composição da amostra. A partir disto, as mães e/ou cuidadores legais das meninas eram encaminhados para um primeiro contato com a pesquisadora, quando eram explicados os objetivos da pesquisa e, diante da concordância em participar do estudo, um próximo contato era agendado.

Na primeira sessão de coleta de dados, com a mãe e/ou cuidador responsável, foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foi realizada uma entrevista semi-estruturada, de forma individual, com o objetivo de investigar os indicadores sociodemográficos das participantes (idade, escolaridade, cidade de origem) e questões referentes à saúde mental (transtornos psiquiátricos e neurológicos, uso de medicações). Além disso, características do ASI (idade do primeiro episódio, tempo de exposição, presença de ameaça, proximidade afetiva com o abusador e encaminhamentos legais sobre o caso) e do contexto da revelação (para quem a criança revelou pela primeira vez o abuso, reação da família e presença de suporte familiar após a revelação) foram avaliadas. Ainda foi investigada a presença de indicadores de risco à ocorrência do ASI (intergeracionalidade do AS, violência doméstica, abuso de substâncias dos pais, transtornos psiquiátricos na família e separação dos pais).

Avaliação Clínica. Para avaliação de sintomas comportamentais e emocionais, associados à exposição ao ASI, foi elaborada uma versão adaptada da lista de sintomas proposta por Flores e Caminha (1994). Para cada sintoma, foi solicitado à mãe que respondesse sobre a ocorrência de cada sintoma na menina (na segunda sessão de coleta de dados). Nesta sessão, também foi avaliada a presença de sintomas e/ou do diagnóstico de TEPT, através da versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged-Children, Kiddie Sads - K-SADS-PL (Brasil, 2003), que consiste em uma entrevista clínica diagnóstica, baseada nos critérios do DSM-IV, para verificar e registrar episódios psicopatológicos, passados ou correntes em crianças e adolescentes. A versão brasileira da Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia Epidemiological version for School-Age - K-SADS-E (Mercadante et al., 1995), baseada no DSM-III, foi utilizada para a avaliação das comorbidades psiquiátricas. A aplicação destes instrumentos foi realizada com a mãe e/ou cuidador responsável. Com as meninas foram aplicados apenas os critérios de TEPT, propostos pelo K-SADS-PL, em uma entrevista individual (na terceira sessão).

Questões Éticas. Este estudo foi submetido e aprovado junto aos Comitês de Ética do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi solicitada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, obtido junto aos pais e/ou responsáveis legais pelas meninas, atendendo à Resolução nº 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia e a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde. Ainda, foi solicitada a cada menina a concordância em participar da pesquisa, assegurando-lhe sigilo e confidencialidade dos dados. As participantes foram claramente informadas de que sua participação no estudo era voluntária e poderia ser interrompida em qualquer etapa. Com as meninas, foi explicado que a participação na pesquisa envolveria responder uma entrevista sobre sintomas de ansiedade e uma lista de eventos estressores. Não foi realizada nenhuma entrevista a fim de abordar as características do ASI, diretamente com a criança, buscando evitar dano psicológico diante de um novo relato da menina sobre esta experiência e/ou de revitimilizá-la.

Critérios de Análise dos Dados. Os dados foram analisados qualitativamente, através da análise de conteúdo (Bardin, 1977) das entrevistas semi-estruturadas. As categorias "Contexto do Abuso", "Contexto da Revelação" e "Indicadores de Risco" foram construídas a priori, a partir dos dados de literatura (De Antoni & Koller, 2000; Koller & De Antoni, 2004; Kristensen, 1996). A presença de sintomas e o diagnóstico de TEPT foram avaliados a partir da entrevista clínica e do K-SADS, além da lista de sintomas (Flores & Caminha, 1994). No K-SADS, para avaliação do TEPT, foram considerados dois critérios: (a) a presença de diagnóstico atual do transtorno, sendo que se optou em estabelecer a data do último abuso sexual sofrido como ponto de corte; e (b) presença de TEPT no momento passado, que se refere à etapa anterior ao abuso. Para as comorbidades psiquiátricas também foi avaliado o tempo presente e passado através dos critérios diagnósticos (K-SADS-E).

 

Resultados

Contexto do Abuso

Esta categoria envolve as características da situação abusiva, descrevendo o contexto onde esta ocorreu, os abusadores, o tipo, a idade de início, a duração e a presença de ameaças. Em 87,5% dos casos (n=14), o ASI foi perpetrado por alguma pessoa afetivamente próxima às meninas, sendo que os principais abusadores identificados foram: padrastro (n=4), tio (n=4), avô (n=3), pai (n=2) e primo (n=1). Em um caso, a menina foi violentada por um tio paterno e por um vizinho. Dos 16 casos, apenas um se refere a abuso extrafamiliar (um vizinho).

A idade de início do ASI variou entre três anos e 13 anos (M=7,16 anos; SD=2,35 anos) e o tempo de duração variou entre episódio único e quatro anos, com tempo médio de um ano. O tipo de ASI identificado nos casos estudados variou de toques e carícias (n=7) à penetração vaginal, anal e oral (n=9). Ressalta-se que em muitos casos houve uma sobreposição destas práticas sexuais, e um agravamento do tipo de abuso ao longo do tempo, isto é, inicialmente com toques e carícias até o abuso com intercurso completo.

Foi observada a presença de ameaças em sete casos (43,8%) e do uso de recompensas por parte do abusador (dinheiro, presentes, balas, retirar filme na locadora) em cinco casos (31,3%). De um modo geral, ameaças de morte (à menina, à mãe ou a outro familiar), desqualificação do relato da menina ("se tu contar ninguém vai acreditar em ti") e a presença de um contexto de terror (amordaçar a boca da menina para ela não gritar, deixar uma arma próxima à cama, enquanto abusava da menina, ou ainda "eles vão tirar você da tua mãe e levar para um abrigo") caracterizavam os episódios de abuso, fazendo que o segredo se mantivesse ao longo do tempo.

Contexto da Revelação

Esta categoria aponta características presentes no momento da revelação do ASI, enfocando as estratégias utilizadas pelas meninas, a primeira pessoa a tomar conhecimento do fato e a reação da família (principalmente da mãe). Diferentes maneiras foram encontradas pelas meninas para revelarem as situações abusivas, tais como relato oral ou escrito, bem como comportamento de fuga da casa. De um modo geral, as meninas revelaram o abuso a uma figura afetiva, na maioria das vezes a própria mãe e avós. Em nove casos, a mãe foi a primeira pessoa a tomar conhecimento do abuso. Diante deste fato, foram constatados dois tipos de comportamento: a) em 62,5% dos casos (n=10) as mães acreditaram no relato de suas filhas e promoveram ações protetivas, bem com realizaram denúncia em algum órgão institucional competente (delegacia, conselho tutelar e hospital); e b) 37,5% dos casos (n=6) apresentaram sentimentos de ambivalência e de descrédito frente ao relato das filhas, não providenciaram suporte de proteção e/ou buscaram preservar o vínculo afetivo com o suposto abusador. Em um caso, a menina revelou o abuso para a avó materna e relatou que "Minha mãe não me ama, ama mais ele do que eu", diante da atitude da mãe em não acreditar em seu relato e permanecer convivendo com o companheiro (abusador).

Sintomatologia e TEPT

Esta categoria diz respeito à sintomatologia observada no comportamento das meninas deste estudo. Além disso, refere-se ao diagnóstico de TEPT e demais comorbidades de transtornos psicológicos, avaliados pela entrevista clínica K-SADS-PL. Entre os principais sintomas observados pelas mães e/ou cuidadores estão:) dificuldade de concentração (n=11); b) medos (n=9); c) choro freqüente (n=9); d) pesadelos (n=7); e) comportamento sexualizado (n=7); e f) enurese (n=7).

O diagnóstico de TEPT atual foi observado em 10 dos 16 casos investigados (62,5%). A presença de sintomas de TEPT foi encontrada em todas as participantes, apesar de que em seis casos não preencheram os critérios diagnósticos do DSM-IV. Todavia, estas participantes apresentaram elevados sintomas, o que poderia ser descrito como TEPT parcial. Em apenas um caso foi observada a presença de TEPT no momento passado da história de vida da menina, provavelmente relacionada à violência física sofrida e ao testemunho de violência doméstica.

A análise da freqüência dos sintomas de TEPT atual, conforme as três categorias do transtorno do DSM-IV (revivência, evitação e hiperexcitabilidade fisiológica), apontou que a excitabilidade fisiológica aumentada (Critério D), particularmente sintomas de insônia, irritabilidade, dificuldade de concentração e hipervigilância, foi mais prevalente neste grupo de meninas (M=3,50; SD=1,83). A média do critério de revivência (Critério B) foi de 2,5 sintomas (SD=1,00) e do critério de evitação e entorpecimento (Critério C) foi de 2,7 sintomas (SD=1,10). Ainda, foi identificada a presença das seguintes comorbidades psiquiátricas ao TEPT, no momento atual da vida das participantes: Transtorno de Ansiedade de Separação (n=4), Transtorno de Ansiedade Generalizada (n=5), Depressão Maior (n=4), Distimia (n=3), Fobia Social (n=2) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (n=1). Dois casos apresentavam Transtorno de Ansiedade de Separação no momento passado.

Indicadores de Risco na Família

Esta categoria envolve a presença de indicadores de risco na família associada à ocorrência do ASI. Em quatro casos foi observada a intergeracionalidade do ASI, pois as mães destas meninas também tinham história de abuso sexual na infância. Em todos os casos, os abusadores das filhas eram os mesmos das mães, sendo todos afetivamente próximos às vítimas. Particularmente, num caso, a mãe e suas duas filhas foram abusadas sexualmente por um mesmo abusador (cunhado da mãe), cuja idade de início do abuso foi aos sete anos de idade para todas elas e a forma como estes ocorreram foram muito semelhantes (primeiro toques e carícias e, após determinado tempo, com intercurso sexual completo). Ressalta-se que, neste caso, na época em que a mãe era criança a família manteve o abuso em segredo e não protegeu a mãe deste abusador. Esta mãe, ao tomar conhecimento do abuso da primeira filha, ficou imobilizada e também não conseguiu tomar nenhuma atitude de proteção, apesar de acreditar no relato da filha. Após, quando a segunda filha relatou a mesma situação, então, esta mãe conseguiu denunciar o abusador e afastá-lo de suas filhas.

A história de vida destas mães ainda foi caracterizada pela presença de outras formas de violência, incluindo abuso físico e abandono (n=10), indicando a intergeracionalidade destes tipos de violência. Ainda observou-se a presença de conflitos conjugais (n=5), entre os pais e/ou mãe e companheiro, destas meninas, principalmente devido às constantes agressões físicas e verbais. Pais com algum transtorno psiquiátrico (n=9), principalmente transtornos de humor, de ansiedade e psicose, bem como o uso de álcool e drogas (n=5). A trajetória de vida das meninas foi caracterizada por rupturas de vínculos afetivos, seja pelo rompimento do contato emocional com a figura de cuidado (n=3), pela separação dos pais (n=5) ou pela morte de um dos pais (n=4). Também foi observada a exposição das meninas a outros tipos de maus-tratos, incluindo abuso físico, psicológico, negligência e abandono (n=11).

 

Discussão

Este estudo apontou as características do contexto e da revelação de casos de meninas vítimas de ASI, bem como sintomas emocionais e comportamentais associados a sua ocorrência. Além disso, investigou a presença de indicadores de risco na família que podem aumentar a vulnerabilidade da criança ao ASI.

Em relação ao contexto do abuso, observou-se que a maioria dos casos de ASI ocorreu dentro da própria família (87,5%), o que pode indicar que este é o principal contexto de ocorrência de ASI, corroborando os resultados de outros estudos (Habigzang et al., 2005). A exposição ao ASI intrafamiliar pode ser ainda mais prejudicial à criança vitimada, pois envolve quebra de confiança com as figuras parentais e/ou de cuidado, que, a princípio, deveriam promover segurança, conforto e bem-estar psicológico (De Antoni & Koller, 2002).

Foram também observadas a presença de ameaças e a pouca idade das vítimas, nos episódios de ASI avaliados. De acordo com Araújo (2002), estes fatores tornam mais difícil para a criança conseguir revelar a situação abusiva, pelo medo de ser desacreditada, punida e/ou afastada de casa. Para Kellogg e Menard (2003), medo do abusador, medo de provocar confusão, de não acreditarem em seu relato, medo dos efeitos na família e no que pode acontecer ao abusador são as razões mais freqüentes para que as crianças não revelem o abuso. A idade precoce de início do abuso, observada nos casos estudados, pode ter contribuído para uma maior duração do ASI (de até quatro anos). Crianças menores podem ter mais dificuldade em compreender a situação abusiva em que são introduzidas pelo adulto perpetrador, devido à imaturidade emocional da criança e à presença de atos menos severos e intrusivos (Pfeiffer & Salvagni, 2006). Os abusos mais severos, em geral, ocorrem quando o abusador já conseguiu envolver a criança dentro de seu jogo de sedução e coação (Araújo, 2002; Habigzang et al., 2005).

Os achados deste estudo indicam que a maioria das mães acreditou no relato de suas filhas. Tal resultado corrobora a preposição de que as mães não-abusivas frequentemente acreditam no relato das crianças frente à revelação do ASI (Elliott & Carnes, 2001; Jonzon & Lindblad, 2004). Ressaltando este ponto, Pintello e Zuravin (2001) argumentam que dois componentes são importantes para o suporte materno, após a revelação do ASI: (a) acreditar no relato da criança; e (b) providenciar ações de proteção. Estes componentes, apesar de serem complementares, são independentes. Sugere-se que a presença de uma história de vida marcada por um padrão de abandono e negligência, na família de origem da mãe; a falta de suporte familiar após a revelação, o abuso de substâncias da mãe e a dependência financeira dos companheiros abusadores podem ser considerados preditores para a falta de suporte materno nas situações de ASI (Elliott & Carnes, 2001; Leifer, Kilbane, & Grossman, 2001). Desta forma, é importante compreender que estas variáveis podem influenciar a reação da figura materna, após a revelação do abuso, principalmente em mães com sentimentos ambivalentes frente ao relato de suas filhas e que apresentam dificuldades em tomar ações protetivas. O suporte materno pode ser um importante fator de proteção no bem estar psicológico das crianças vítimas de ASI (DiLillo & Damashek, 2003; Pintello & Zuravin, 2001).

Uma variedade de sintomas clínicos, incluindo medo, choro, comportamento sexualizado e enurese, foi observada nos casos investigados. Estudos anteriores dos efeitos do ASI no desenvolvimento infantil destacaram a presença destes sintomas como as principais alterações emocionais e comportamentais de crianças abusadas sexualmente (Kendall-Tackett et al., 1993; Tyler, 2002). Estes dados podem fornecer elementos importantes à avaliação de casos e/ou suspeitas de abuso, indicando que a presença deste quadro sintomatológico pode ser um forte indicativo de ASI. Todavia, a heterogeneidade dos sintomas e as psicopatologias em crianças vítimas de abuso sexual impedem uma visão simplista do tipo causa-efeito (Putnam, 2003). A literatura sobre as conseqüências do ASI direciona seus principais achados ao Modelo Multifacetado do Trauma (Kendall-Tackett et al., 1993), indicando que a variedade de resultados negativos ao desenvolvimento seria mais apropriada do que uma síndrome específica do ASI (Paolucci et al., 2001; Tyler, 2002).

Particularmente, uma alta prevalência de TEPT foi encontrada nos casos investigados (62,5%), com um predomínio maior dos sintomas do critério D. Este resultado suporta a evidência de que o TEPT pode ser descrito como a psicopatologia mais freqüentemente associada aos casos de ASI (Ackerman et al., 1998; Kendall-Tackett et al., 1993; Ruggiero et al., 2000). Pode-se então sugerir que os sintomas do critério D são um componente central do TEPT, uma vez que estes podem estar associados à avaliação cognitiva constante de perigo, fazendo com que a vítima mantenha-se em alerta aos estímulos do ambiente. Apesar disso, não está claro se maior excitabilidade fisiológica é uma evidência de TEPT ou se faz parte de outros quadros psicopatológicos (Kendall-Tackett et al., 1993), uma vez que diferentes queixas psicossomáticas são freqüentes em crianças que apresentam Transtornos de Ansiedade e de Humor. Desta forma, estudos indicam a necessidade de uma maior discussão sobre a sobre-posição de sintomas de TEPT, como, por exemplo, do critério D em outros transtornos, o que poderia prejudicar a validade descritiva do quadro (Breslau, 2002; Câmara Filho & Sougey, 2001).

Alta comorbidade do TEPT foi encontrada nos casos investigados, sendo associada a outros transtornos de ansiedade, transtornos de humor e TDAH, corroborando a literatura do TEPT (Ackerman et al., 1998; Famularo et al., 1996). Estudos ainda indicam uma prevalência maior de transtornos internalizantes (ansiedade e depressão) em meninas e mulheres vítimas de ASI (Briere & Elliott, 2003; MacMillan et al., 2001), o que poderia estar associado à atribuição interna de culpa e vergonha (Banyard, Williams, & Siegel, 2004). Nesse sentido, pode-se compreender que o TEPT é um fator de risco para diferentes psicopatologias, e a presença de comorbidades pode cronificar um resultado negativo ao desenvolvimento.

Indicadores de risco na família, incluindo intergeracionalidade do ASI, conflitos conjugais, doença mental em um dos pais e uso de álcool e drogas, foram apontados neste estudo. Famílias incestuosas são caracterizadas pela presença de estilo parental negligente, história de doença mental, abuso de substâncias, intergeracionalidade e multidirecionalidade da violência doméstica (Dixon, Hamilton-Giachritsis, & Browne, 2005; Hanson et al., 2006; Koller & De Antoni, 2004). Estudo de revisão sobre os indicadores de risco apontou, entre outros aspectos, que (a) a reprodução das experiências de violência na infância; e (b) a presença de conflitos familiares e uso de álcool como importantes variáveis explicativas para a ocorrência de maus tratos infantis (Gomes, Deslandes, Veiga, Bhering, & Santos, 2002).

Ressalta-se a importância de analisar os fatores de risco intrafamiliares dentro de uma perspectiva mais compreensiva, a qual inclua os demais contextos de desenvolvimento humano, nos casos de trauma na infância (Zavaschi et al., 2006). A interação de fatores de risco e de proteção pode contribuir para uma maior vulnerabilidade individual, familiar e social ou para um processo de resiliência, mesmo diante de um contexto de adversidades (Koller & De Antoni, 2004). Nesse sentido, a falta de fatores de proteção poderia ser mais importante para a ocorrência de ASI, em famílias violentas, do que a presença de fatores de risco (Hanson et al., 2006).

A quebra de vínculos afetivos na infância, observada nos casos investigados, pode ter contribuído para a ocorrência do ASI. Em decorrência destas rupturas, as meninas foram expostas a um risco maior para a ocorrência do ASI, seja pela entrada de um novo companheiro da mãe (com comportamento violento) no ambiente familiar, por ficarem mais horas sob os cuidados do pai ou ainda por serem cuidadas por outros familiares e/ou por uma família substituta, que não as protegeram. De acordo com Cicchetti e Toth (2005), crianças vítimas de ASI podem apresentar dificuldade na regulação do afeto e no estabelecimento de relações de apego seguro. Nesse sentido, estas crianças tendem a desenvolver apego ansioso e evitativo, devido à interação afetiva ambivalente estabelecida com seus cuidadores (Alexander et al., 1998). Este modelo interno de funcionamento pode estar presente nas relações interpessoais estabelecidas na adolescência e na vida adulta, o que pode contribuir para a revitimização ou ainda para a intergeracionalidade do ciclo de violência intrafamiliar (Banyard et al., 2004; DiLillo & Damashek, 2003). Em contrapartida, a presença de apego seguro pode ser caracterizada como um fator de proteção, fortalecendo uma adaptação mais positiva (Heller et al., 1999).

 

Considerações Finais

Os resultados deste estudo indicam que o ASI é um fator de risco para uma variedade de seqüelas emocionais e comportamentais. Dificuldade de concentração, medos, choro freqüente, pesadelos, comportamento sexualizado e enurese podem ser considerados sinto mas de ASI e, nesse sentido, ser investigados na perícia psíquica destes casos. Uma alta prevalência de TEPT foi encontrada nesta amostra, suportando a evidência de que este é o transtorno mental mais comumente encontrado em vítimas de ASI. Ressalta-se, contudo, que algumas crianças não desenvolvem psicopatologias. Na mediação do impacto do ASI, variáveis da criança, do contexto familiar e social podem se constituir como fatores de proteção e, desta forma, podem mitigar os efeitos negativos da violência, possibilitando uma adaptação mais positiva. Sobretudo, destaca-se a importância da participação das mães no processo terapêutico, tendo em vista as repercussões do suporte materno no bem estar psicológico da criança.

Algumas limitações metodológicas podem ser destacadas no presente estudo. O número pequeno de participantes, a escolha da amostra por conveniência e a característica de ser um estudo transversal não possibilitam uma maior discussão e generalização dos resultados. Os resultados podem estar enviesados devido ao tamanho pequeno e a heterogeneidade da amostra, uma vez que foi observada uma grande variação no que se refere à presença de sintomas de TEPT, idade de início e duração do ASI. Nesse sentido, novos estudos com um número maior de participantes, com amostra randomizada e acompanhamento longitudinal dos sintomas e quadros psicopatológicos podem fornecer conhecimento específico da evolução e/ou remissão dos sintomas. Destaca-se ainda que os sintomas observados nestas meninas foram avaliados através de informações da mãe e/ou cuidador responsável. Pine e Cohen (2002) ressaltam que uma maior valorização dos sintomas e conseqüências pode ser observada pelos pais devido a seu próprio sofrimento psíquico e, portanto, as respostas dadas por estes podem estar enviesadas. Finalmente, pesquisas com meninos vítimas de ASI também podem contribuir para uma maior discussão sobre a variável gênero nestes casos, uma vez que diferenças e similaridades têm sido citadas na literatura sobre as características do abuso e de suas seqüelas (Banyard et al., 2004).

Os indicadores de risco à ocorrência do ASI, aqui identificados, devem ser compreendidos dentro de uma perspectiva dinâmica e complexa, sem uma visão reducionista. No entanto, a identificação destes indicadores pode direcionar trabalhos de intervenção junto a esta população. Sugere-se, ainda, o fortalecimento de fatores de proteção, tais como, os vínculos afetivos com um cuidador não abusador e a ampliação da rede de apoio social destas famílias, que possam atuar como mediadores do impacto da situação de abuso vivenciada. O fornecimento de suporte psíquico nestes casos pode contribuir para diminuir os efeitos psicossociais que a violência sexual produz nas crianças, nos adolescentes e nas famílias. Nesse sentido, esses serviços de saúde podem funcionar como uma rede de apoio social a essas famílias, que muitas vezes encontram-se fragilizadas, sendo que o foco do atendimento psicológico não deve ser apenas a criança, mas também sua família.

 

Referências

Ackerman, P. T., Newton, J. E. O., McPherson, W. B., Jones, J. G., & Dykman, R. A. (1998). Prevalence of post traumatic stress disorder and other psychiatric diagnoses in three groups of abused children (sexual, physical, and both). Child Abuse & Neglect, 22(8), 759-774.         [ Links ]

Alexander, P. C., Anderson, C. L., Brand, B., Schaeffer, C. M., Grelling, B. Z., & Kretz, L. (1998). Adult attachment and longterm effects in survivors of incest. Child Abuse & Neglect, 22(1), 45-61.         [ Links ]

Amazarray, M. R., & Koller, S. H. (1998). Alguns aspectos observados no desenvolvimento de crianças vítimas de abuso sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(3), 559-578.         [ Links ]

American Psychiatric Association. (2002). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (4. Rev. ed.). Washington, DC: Author.         [ Links ]

Araújo, M. F. (2002). Violência e abuso sexual na família. Psicologia em Estudo, 7(2), 3-11.         [ Links ]

Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência. (2003). Relatório anual do sistema nacional de combate à exploração sexual infanto-juvenil. Rio de Janeiro, RJ: Autor.         [ Links ]

Banyard, V. L., Williams, L. M., & Siegel, J. A. (2004). Childhood sexual abuse: A gender perspective on context and consequences. Child Maltreatment, 9(3), 223-238.         [ Links ]

Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. São Paulo, SP: Martins Fontes.         [ Links ]

Brasil, H. H. A. (2003). Desenvolvimento da versão brasileira da K-SADS-PL (Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia for School Aged Children Present and Lifetime Version) e estudo de suas propriedades psicométricas. Tese de Doutorado não-publicada, Curso de Pós-Graduação em Psiquiatria e Psicologia Médica, Universidade Federal de São Paulo, SP.         [ Links ]

Breslau, N. (2002). Epidemiologic studies of trauma, posttraumatic stress disorder, and other psychiatric disorder. Canadian Journal of Psychiatry, 47(10), 923-929.         [ Links ]

Briere, J., & Elliott, D. M. (2003). Prevalence and psychological sequelae of self-reported childhood physical and sexual abuse in a general population sample of men and women. Child Abuse & Neglect, 27(10), 1205-1222.         [ Links ]

Câmara, J. W. S., Filho, & Sougey, E. B. (2001). Transtorno de estresse pós-traumático: Formulação diagnóstica e questões sobre comorbidade. Revista Brasileira de Psiquiatria, 23(4), 221-228.         [ Links ]

Cicchetti, D., & Toth, S. L. (2005, April). Child maltreatment. Annual Review of Clinical Psychology, 1, 409-438.         [ Links ]

Collin-Vézina, D., & Hébert, M. (2005). Comparing dissociation and PTSD in sexually abused school-aged girls. Journal of Nervous and Mental Disease, 193(1), 47-52.         [ Links ]

De Antoni, C., & Koller, S. H. (2000). Vulnerabilidade e resiliência familiar: Um estudo com adolescentes que sofreram maus-tratos intrafamiliares. Psico, 31(1), 39-66.         [ Links ]

De Antoni, C., & Koller, S. H. (2002). Violência doméstica e comunitária. In M. L. F. Contini, S. H. Koller, & M. N. S. Barros (Eds.), Adolescência e Psicologia: Concepções, práticas e reflexões críticas (pp. 85-91). Rio de Janeiro, RJ: Conselho Federal de Psicologia.         [ Links ]

DiLillo, D., & Damashek, A. (2003). Parenting characteristics of women reporting a history of childhood sexual abuse. Child Maltreatment, 8(4), 319-333.         [ Links ]

Dixon, L., Hamilton-Giachritsis, C., & Browne, K. (2005). Attributions and behaviours of parents abused as children: A mediational analysis of the intergenerational continuity of child maltreatment (Pt. II). Journal of Child Psychology and Psychiatry, 46(1), 58-68.         [ Links ]

Elliott, A. N., & Carnes, C. N. (2001). Reactions of nonoffending parents to the sexual abuse of their child: A review of the literature. Child Maltreatment, 6(4), 314-331.         [ Links ]

Famularo, R., Fenton, T., Kinscherff, R., & Augustyn, M. (1996). Psychiatric comorbidity in childhood post traumatic stress disorder. Child Abuse & Neglect, 20(10), 953-961.         [ Links ]

Flores, R. Z., & Caminha, R. M. (1994). Violência sexual contra crianças e adolescentes: Algumas sugestões para facilitar o diagnóstico correto. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 16(2), 158-167.         [ Links ]

Gomes, R., Deslandes, S. F., Veiga, M. M., Bhering, C., & Santos, J. F. C. (2002). Por que as crianças são maltratadas? Explicações para a prática de maus-tratos infantis na literatura. Cadernos de Saúde Pública, 18(3), 707-714.         [ Links ]

Habigzang, L. F., Koller, S. H., Azevedo, G. A., & Machado, P. X. (2005). Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: Aspectos observados em processos jurídicos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 341-348.         [ Links ]

Hanson, R. F., Self-Brown, S., Fricker-Elhai, A., Kilpatrick, D. G., Saunders, B., & Resnick, H. S. (2006). The relations between family environment and violence exposure among youth: Findings from the National Survey of Adolescents. Child Maltreatment, 11(1), 3-15.         [ Links ]

Heller, S. S., Larrieu, J. A., D’Imperio, R., & Boris, N. W. (1999). Research on resilience to child maltreatment: Empirical considerations. Child Abuse & Neglect, 23(4), 321-338.

Jonzon, E., & Lindblad, F. (2004). Risk factors and protective factors in relation to subjective health among adult female victims of child sexual abuse. Child Abuse & Neglect, 30(2), 127-143.         [ Links ]

Kendall-Tackett, K. A., Williams, L. M., & Finkellor, D. (1993). Impact of sexual abuse on children: A review and synthesis of recent empirical studies. Psychological Bulletin, 113(1), 164-180.         [ Links ]

Kellogg, N. D., & Menard, S. W. (2003). Violence among family members of children and adolescents evaluated for sexual abuse. Child Abuse & Neglect, 27(12), 1367-1376.         [ Links ]

Koller, S. H., & De Antoni, C. (2004). Violência intrafamiliar: Uma visão ecológica. In S. H. Koller (Ed.), Ecologia do desenvolvimento humano: Pesquisa e intervenção no Brasil (pp. 293-310). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Kristensen, C. H. (1996). Abuso sexual em meninos. Dissertação de Mestrado não-publicada, Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.         [ Links ]

Leifer, M., Kilbane, T., & Grossman, G. (2001). A three-generational study comparing the families of supportive and unsupportive mothers of sexually abused children. Child Maltreatment, 6(4), 353-364.         [ Links ]

Luthar, S. S., Cicchetti, D., & Becker, B. (2000). The construct of resilience: A critical evaluation and guidelines for future work. Child Development, 71(3), 543-562.         [ Links ]

Lynskey, M. T., & Fergusson, D. M. (1997). Factors protecting against the development of adjustment difficulties in young adults exposed to childhood sexual abuse. Child Abuse & Neglect, 21(12), 1177-1190.         [ Links ]

MacMillan, H. L., Fleming, J. E., Streiner, D. L., Lin, E., Boyle, M. H., Jamieson, E., et al. (2001). Childhood abuse and lifetime psychopathology in a community sample. American Journal of Psychiatry, 158(11), 1878-1883.         [ Links ]

Margis, R. (2003). Comorbidade no transtorno de estresse pós-traumático: Regra ou exceção? Revista Brasileira de Psiquiatria, 25(Supl. 1), 17-20.         [ Links ]

Masten, A. S., & Garmezy, N. (1985). Risk, vulnerability, and protective factors in developmental psychopathology. In B. B. Lahey & D. E. Kazdin (Eds.), Advances in Clinical Child Psychology (pp. 1-52). New York: Plenum Press.         [ Links ]

Mercadante, M. T., Asbahr, F., Rosário, M.C., Ayres, A. M., Ferrari M. C., Karman, L., et al. (1995). K-SADS: Entrevista semi-estruturada para diagnóstico em Psiquiatria da Infância: Versão epidemiológica. São Paulo, SP: PROTOC.         [ Links ]

Nurcombe, B. (2000). Child sexual abuse I: Psychopathology. Australian and New Zealand Journal of Psychiatry, 34(1), 85-91.         [ Links ]

Paolucci, E. O., Genuis, M. L., & Violato, C. (2001). A meta-analysis of the published research on the effects of child sexual abuse. Journal of Psychology, 135(1), 17-36.         [ Links ]

Pesce, R. P., Assis, S. G., Santos, N., & Oliveira, R. V. C. (2004). Risco e proteção: Em busca de um equilíbrio promotor de resiliência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 20, 135-143.         [ Links ]

Pfeiffer, L., & Salvagni, E. P. (2006). Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência. Jornal de Pediatria, 81(Supl. 5), S197-S204.         [ Links ]

Pine, D. S., & Cohen, J. A. (2002). Trauma in children and adolescents: Risk and treatment of psychiatric sequelae. Biological Psychiatry, 51(7), 519-531.         [ Links ]

Pinheiro, D. P. N. (2004). A resiliência em discussão. Psicologia em Estudo, 9, 67-75.         [ Links ]

Pintello, D., & Zuravin, S. (2001). Intrafamilial child sexual abuse: Predictors of postdisclosure maternal belief and protective action. Child Maltreatment, 6(4), 344-352.         [ Links ]

Putnam, F. W. (2003). Ten-year research update review: Child sexual abuse. Journal of American Academic Child and Adolescent Psychiatry, 42(3), 269-278.         [ Links ]

Quas, J. A., Goodman, G. S., & Jones, D. P. H. (2003). Predictors of attributions of self-blame and internalizing behavior problems in sexually abused children. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 44(5), 723-736.         [ Links ]

Ruggiero, K. J., McLeer, S. V., & Dixon, J. F. (2000). Sexual abuse characteristics associated with survivor psychopathology. Child Abuse & Neglect, 24(7), 951-964.        [ Links ]

Spaccarelli, S., & Kim, S. (1995). Resilience criteria and factors associated with resilience in sexually abuse girls. Child Abuse & Neglect, 19(9), 1171-1182.         [ Links ]

Tyler, K. A. (2002). Social and emotional outcomes of childhood sexual abuse: A review of recent research. Aggression and Violent Behavior, 7(6), 567-589.         [ Links ]

World Health Organization. (2004). Comparative quantification of health risks: Global and regional burden of diseases attributable to selected major risk factors: Vol. 2. Child sexual abuse (chap. 23). Geneva, Switzerland: Author. Retrieved March 10, 2007. from http://www.who.int/publications/cra/chapters/volume2/1851-1940.pdf         [ Links ]

Zavaschi, M. S. L., Graeff, M. E., Menegassi, M. T., Mardini, V., Pires, D. W. S., Carvalho, R. H., et al. (2006). Adult mood disorders and childhood psychological trauma. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(3), 184-190.        [ Links ]

 

 

Received 27/04/2007
Accepted 31/10/2007

 

 

Jeane Lessinger Borges. Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Débora Dalbosco Dell’Aglio. Psicóloga. Mestre e doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela UFRGS. Atualmente é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRGS e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Adolescência.
1 Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 115, Santana, Porto Alegre, RS, Brasil, CEP 90035-003. E-mail: jelessinger@ig.com.br