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Interamerican Journal of Psychology

Print version ISSN 0034-9690

Interam. j. psychol. vol.43 no.2 Porto Alegre Aug. 2009

 

 

Imagens, dinamismo sensorial e elaborações retóricas no Brasil colonial

 

Images and the five senses in sermons and celebrations in colonial Brazil

 

 

Marina Massimi1

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo analisa imagens e metáforas construídas com base na experiência sensorial em sermões e narrativas de cerimônias no Brasil colonial, elaborações retóricas destinadas à transmissão de conhecimentos e práticas junto à população pela comunicação oral e baseadas nos métodos da retórica clássica e da correspondente teoria do conhecimento (Aristoteles, Cícero e Agostinho de Hipona) A pesquisa é realizada segundo o método histórico. A hipótese é que o uso de imagens pertinentes à experiência sensorial tinha a função de impressionar os ouvintes remetendo-os a vivências do seu cotidiano (conforme o preceito retórico da accommodatio), sendo parte de um processo de elaboração do conhecimento com fundamento sensorial. Os resultados evidenciam a importante função atribuída às potências psíquicas sensoriais pela retórica utilizada no Brasil do período colonial aplicada para a construção dos sermões ou no preparo das celebrações e representações na ocasião de datas importantes da vida civil e religiosa e na elaboração de suas narrativas.

Palavras-chave: Imagens e dinamismo sensorial; História dos conhecimentos psicológicos; Celebrações, sermões e narrativas.


ABSTRACT

The article analyzes the presence of images and metaphors constructed based on sensorial experience in sermons and narratives in ceremonies in Colonial Brazil – aimed at transmitting knowledge and practice to the population through oral communication, based on classic rhetorical methods and in line with the transcripts of the corresponding gnoseological theory (Aristotle, Cicero, and Agostinho de Hipona). The research is conducted by the historical method. The hypothesis is that the images used in the sensorial experiences have the role to impress the listeners and recall everyday experiences – according to the rhetorical principle of accommodatio – leading them to a process of knowledge elaboration. Results prove the important function attributed to the psychic sensorial potencies by the rhetorical art disseminated in Brazil in the colonial period, whether when applied to sermon construction or when used to prepare celebrations and representations regarding the occurrences of civil and religious life, as well as the resulting narratives.

Keywords: Images and senses; History of psychological knowledge; Celebration, sermons and narratives.


 

 

O artigo analisa a presença de imagens e metáforas construídas com base na experiência sensorial em sermões e narrativas de cerimônias elaborados no Brasil colonial. Tais fontes eram destinadas à transmissão de conhecimentos e práticas junto à população, através da comunicação oral e eram na maioria dos casos construídas segundo os métodos da retórica clássica (Aristóteles, Cícero e Agostinho de Hipona) e conforme os ditames da teoria gnoseológica correspondente. Portanto, pode-se pressupor que o uso de imagens pertinentes à experiência sensorial se, por um lado, tinha a função de impressionar mais imediatamente os ouvintes remetendo-os a vivências do seu cotidiano – conforme o princípio retórico da accommodatio –, por outro lado, era considerado parte de um processo de elaboração do conhecimento que em todo caso teria um fundamento sensorial.

 

Os Alicerces

A teoria do conhecimento de matriz aristotélicotomista considera a experiência sensorial como sendo imprescindível ponto de partida para as elaborações cognitivas (Massimi, 2005). Por sua vez, Agostinho de Hipona, seguindo a tradição platônica, valoriza a função da imagem como veículo importantíssimo de conhecimento e desenvolve uma fina análise do dinamismo psicológico a ela pertinente. A imagem é tida como essencial na ativação da potência psíquica da memória: quando, por exemplo, olhamos uma cena, reconhecemos o objeto representado pela imagem pelo fato desta estar associada com um conteúdo armazenado na nossa memória. O filósofo afirma em O Mestre que cada um de nós retém em sua memória as imagens das coisas experimentadas pelos sentidos e contempladas pelo espírito, de modo que, ao ouvir as palavras, podemos reconhecer as coisas referidas, por meio das imagens que traz consigo. Por isto, nós podemos conhecer pela leitura dos textos, mas também pela visão das imagens: “Trazemos assim essas imagens nos recessos da memória, como uma espécie de ensinamentos das coisas anteriormente sensoriadas, e contemplando-as no espírito, em boa consciência não mentimos quando falamos” (Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 102). Na obra A Trindade, demonstra que as potências psíquicas (a memória, o afeto, o entendimento) funcionam conjuntamente e, ao discutir acerca da eficácia da imagem no dinamismo psíquico, afirma que “o que representa para o sentido corporal algum objeto localizado, representa para o olhar da alma a imagem de um corpo presente na memória” (trad. 1995, p. 346). No que diz respeito às articulações entre memória, “visão interior” e vontade, Agostinho de Hipona pondera que a imagem conservada na memória não permanecerá na medida em que a atenção do sujeito for retirada, sendo decisivo o papel da vontade que “daqui para ali leva e traz o olhar da alma para o informar e o ligar ao objeto” (trad. 1995, p. 345). No caso da vontade orientar a atenção e a memória para se concentrarem numa determinada imagem interior:

será encontrada tal semelhança entre a figura corporal impressa na memória com a expressão da lembrança, que nem a própria razão conseguirá discernir se o que vê é um corpo extrínseco, ou se é o pensamento formado em seu interior.(Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 346).

O autor cita casos de “pessoas que, seduzidas ou atemorizadas perante uma representação por demais viva de coisas visíveis, ergueram exclamações repentinamente, como se realmente participassem dessas ações ou se com elas sofressem” (Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 346). A memória para Agostinho de Hipona é o lugar da consciência de si mesmo, pois somente por ela podemos conhecer a nossa experiência psíquica. Sendo que “o que representa para o sentido corporal algum objeto localizado, representa para o olhar da alma, a imagem de um corpo presente na memória”, a imagem elaborada através dos sentidos, deve imprimir-se na memória do sujeito para permanecer: “pois a alma impregna a memória com elas (ndr: imagens) mediante o sentido corporal” (Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 355). A partir do material contido na memória, a imaginação pode construir imagens infinitas, conforme a direção que a vontade imprimir nela. O filósofo investiga também a influência da palavra ouvida sobre a imaginação e a memória e descreve o dinamismo da articulação entre sentidos, palavras, imaginação e memória. Para compreender o que ouvimos, sempre precisamos do recurso das imagens contidas na memória, as quais por sua vez são derivadas da experiência sensorial do mundo: “O sentido recebe a imagem do objeto que percebemos. E a memória recebe-a do sentido, o olhar daquele que pensa, recebe-a da memória” (Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 357-358). A vontade exerce um papel essencial na articulação das relações entre objetos, experiências sensoriais, memória e palavras:

a vontade, assim como associa o sentido ao objeto . . . assim também associa a memória ao sentido e o olhar do sujeito que pensa à memória. E a mesma vontade que harmoniza e associa essas realidades, também pode as desunir e separar. (Agostinho de Hipona, trad. 1995, p. 357-358).

Agostinho de Hipona propõe o seguinte exemplo: através de “um simples movimento do corpo, desassocia os sentidos do corpo das coisas sensíveis”, evitando que o sentido se associe às coisas sensíveis e assim “não experimentarmos alguma sensação” (trad. 1995, p. 357- 358).

Agostinho de Hipona descreve quatro diversas modalidades de produção da imagem no dinamismo psíquico, nascendo uma da outra: “da figura corporal observada, nasce a imagem produzida no sentido do observador. Desta se origina outra: a que é produzida na memória. E desta nasce a que se forma no olhar mental daquele que pensa” (trad. 1995, p. 359). Portanto, são duas as visões da imagem: a do vidente e a do pensante. Para que haja a segunda, é necessário que surja na memória – a partir “da visão do sentido, certa semelhança, para a qual a visão da alma se volte ao pensar, tal como a vista se volta para os objetos para olhá-los” (Agostinho de Hipona, trad. 2002, p. 360). Segundo Bolzoni (2002), a partir da concepção psicológica de Agostinho, desenvolveu- se na oratória medieval, especialmente destinada a auditórios populares, um procedimento para a criação de imagens eficazes para construir metáforas.

Esta tradição fundamenta o recurso às imagens nos discursos dos pregadores brasileiros que no período colonial destinam-se a auditórios normalmente analfabetos.

Juntamente com a teoria de Agostinho de Hipona, outro referencial filosófico e teológico que norteia o emprego da imagem na arte oratória e na formação dos pregadores brasileiros é constituído pelos tratados do pregador espanhol Luís de Granada (1504-1588). A presença destas obras era quantitativamente difundida no Brasil da época – conforme levantamento realizado em arquivos e bibliotecas (Massimi, 2005). No Memorial de la vida cristiana, há uma parte dedicada ao conhecimento de si mesmo na qual se aborda o ser humano em todas as suas dimensões (corpóreas, psíquicas e espirituais). Considerações acerca dos cinco sentidos e das atividades sensoriais ocupam uma parte relevante do texto, devido à importância que lhes é reconhecida pelo autor. Este inclusive assinala que os sentidos do corpo humano são mais perfeitos do que os sentidos dos animais, por remeter o sujeito a um horizonte de significados articulados pelo juízo e, portanto, pelas potências cognitivas: “. . . los sentidos tienen sus juicios para sentir las cosas que les pertencen” (Granada, 1945, p. 259-260). Granada, em suas exposições, demonstra-se muito atento aos conhecimentos médicos (seguindo a tradição acima referida) e por isto nós também faremos referências a alguns destes conhecimentos elaborados pela tradição médica da época, inspirada na filosofia aristotélico-tomista de que a obra do médico Jean Fernel (1497-1558) é documento exemplar. Com efeito, a atenção a processos psicofisiológicos no âmbito de áreas hoje aparentemente alheias era muito viva na época considerada, sendo recíproca a troca de conhecimentos entre medicina e retórica. Jean Fernel afirma na introdução à sua extensa e conhecida obra de fisiologia (1554/ 2001) que, sendo a Medicina uma arte destinada à saúde integral do homem, quem a pratica deve conhecer todas as ciências e artes, inclusive às destinadas ao treino do raciocínio e do discurso, como a retórica e a gramática (Fernel, 1554/2001). A aliança entre medicina e retórica fundamenta-se também na longa tradição da Medicina da Alma, que promoveu na história da cultura ocidental um amplo intercâmbio incluindo a utilização de termos médicos para designar fenômenos espirituais. Nesta ótica, podemos melhor entender o significado do recurso às metáforas sensoriais e, portanto, ligadas á corporeidade, para designar fenômenos de natureza espiritual (Massimi, 2005). Os sentidos são tidos como a principal fonte de conhecimento médico e, nessa perspectiva, o estudo de seu funcionamento é especialmente valorizado por Fernel, inspirado na teoria do conhecimento aristotélica. Segundo tal concepção, resumida por Fernel, cada um dos cinco órgãos sensoriais é a matéria da forma que é a sensação específica (1554/2001). Os dados recebidos são transmitidos pelos sentidos externos aos sentidos internos: estes compõem em seu conjunto a alma sensitiva (senso comum, imaginação e fantasia, memória, faculdade cogitativa). Desencadeiase assim um processo que implica a elaboração cognitiva dos mesmos (ou seja, a distinção dos diversos estímulos e da avaliação e apreensão de seu significado obtida retendo as impressões sensoriais, formando imagens representativas e armazenando-as na memória), o movimento dos afetos e o posicionamento da vontade. A gnoseologia aristotélico-tomista fundamenta a concepção difundida na cultura ocidental da Idade Moderna de que a base sensorial é necessária para a compreensão inclusive de realidades transcendentes (Massimi & Santos, 2005).

 

Sentidos, Imagens e Palavras

Com base nestes alicerces, os pregadores atuantes num universo cultural que, como o brasileiro colonial, era marcadamente caracterizado pela oralidade, faziam uso amplo de recursos retóricos como imagens sensoriais, metáforas – chegando freqüentemente a acompanhar as palavras com a apresentação de imagens sagradas esculpidas, ou pintadas, apropriadas para impressionar os sentidos dos ouvintes o mais vivamente possível, para em seguida atingir a memória, suscitar afetos e alcançar entendimento e vontade. Obtinham desse modo assimilação cognitiva pelos ouvintes das doutrinas transmitidas em seus sermões e modificação das condutas pessoais e sociais, em plena conformidade aos objetivos visados pela oratória sagrada.

Escolhemos para a análise algumas peças de oratória e algumas narrativas de celebrações elaboradas por pregadores e escritores pertencentes a diversas ordens religiosas e todos eles atuantes no Brasil colonial. Evidenciaremos nesses documentos a presença das imagens e metáforas empregadas para evocar experiências sensoriais: acústicas (sons, elementos musicais), visuais (luz e escuridão, cores), olfativas, táteis e referentes ao paladar; e buscaremos entender as funções delas no contexto do percurso argumentativo e persuasivo do sermão.

Os Olhos e a Visão da Luz

Nos sermões pregados no Brasil, o recurso a imagens visuais é constante. Tomamos alguns textos de pregadores franciscanos: a oratória desenvolvida por esta Ordem religiosa tem aspectos peculiares que favorecem o recurso freqüente às imagens e aos apelos sensoriais, conforme assinalam os estudos recentes da já citada Bolzoni (1995, 2002). Os Frades Menores e os Capuchinhos, cuja prioritária dedicação, nos primeiros séculos de sua história, era a pregação no meio popular (e não alfabetizado), desenvolveram métodos retóricos especialmente adequados à comunicação em sociedades caracterizadas pela cultura oral que valorizavam o recurso a imagens do mundo natural e cotidiano para facilitar a compreensão. Nesta tradição, mesmo em sua vertente erudita, recorre-se ao uso dos elementos figurativos para poder agir sobre o público e permitir a construção de imagens interiores visando assim influenciar e modelar as faculdades da alma (intelecto, memória e vontade). Dentre os sermões pregados pelos franciscanos no Brasil, são conhecidos os de frei Antônio de Santa Maria Jabotão, popularmente frei Jabotão, atuante na Bahia e Pernambuco. Estas peças, alguns delas proferidas na presença da imagem esculpida dos santos celebrados, são repletas de alegorias e metáforas. O sermão dedicado a Santo Amaro, proferido em 1739 na Bahia, abre-se com a imagem alegórica da festa do “triunfo” (Pinelli, 1985) que, inventada pelos imperadores romanos para exaltar suas vitórias, com muito maior razão deve ser celebrada na Igreja na ocasião da memória (vitória) de seus santos (heróis). Por isto, Jabotão recorre a uma imagem bíblica tirada do livro do Apocalipse, que retrata um Anjo gigantesco descendo do Céu com fulgor semelhante ao fogo e pisando com o pé esquerdo na terra e com o direito no mar. Na descrição deste Triunfo metafórico, são muitas as referências à qualidade de objetos, sendo estas destinadas a estimular os sentidos, em primeiro lugar a vista. A referência ao triunfo dos antigos imperadores e a evocação dos sinais da humana grandeza (ouro e púrpura, ricos adornos) serve apenas como efêmero vislumbre da “misteriosa representação” (Jabotão, 1739/1758, p. 3) do triunfo divino retratada pelo livro do Apocalipse: aqui o homenageado é um “Anjo formoso e forte” (1739/1758, p. 3) que desce à terra com “alarde” e com os pés como “colunas de luz” (1739/1758, p. 4) “resplandecentes de fogo”. O autor utiliza-se com freqüência dos termos “significar”, “representar, representação” para indicar que uma personagem é figura de outra; uma coisa é figura de outra. Arco e estandarte são qualificados de “formosos” e “vistosos” (Jabotão, 1739/1758, p. 4); as colunas, “fortes” e “resplandecentes”. No discurso, os significados existenciais de tais qualificações são introduzidos aos poucos: quanto à força das colunas, se diz que “com a sua fortaleza nos sustentai” (1739/1758, p. 6) e “com o resplandecente de seu fogo, nos dai a luz” (1739/1758, p. 6). Para explicar o motivo da glorificação (triunfo) do Santo celebrado, o pregador estabelece uma comparação entre os “resplendores” (Jabotão, 1739/ 1758, p. 15) dos demais santos (que são qualificados resplandecentes como flores: “lírios, ou açucenas”) e o resplendor da glória de santo Amaro, que é “como estrela do céu”. O pregador amplifica “a percepção” da luminosidade introduzindo a imagem da estrela centauro, a mais luminosa de todas. A luz e a percepção visual da luminosidade são tomadas assim como critérios de comparação para ilustrar as “excelências” do Santo e justificar seu triunfo.

O sermão proferido no ano de 1750, no Recife, no convento franciscano e dedicado às exéquias do rei D. João V, utiliza-se de efeitos sensoriais visuais para induzir nos ouvintes o afeto da dor pela morte do soberano e o entendimento da função do rei no corpo político – como era comum neste gênero de sermões de exéquias – (Pécora, 2001). Parte-se da descrição dos elementos da pompa fúnebre para explicitar o que cada um deles pretende significar. O pregador coloca-se a si mesmo como espectador da cena e inicia o sermão pelo retrato da arquitetura efêmera que na época costumava- se construir para as celebrações deste tipo (Pinelli, 1985): na “urna funesta” colocada no interior do “Mausoléu fúnebre” (Jabotão, 1750, p. 102), se divisam alguns objetos: um cetro arrancado, uma coroa caída, figuras de uma soberania defunta. Estes objetos os quais “percebe a nossa vista” (Jabotão, 1750, p. 102) remetem a um significado que não pode ser induzido pela matéria de sua composição, nem pelo sentimento de tristeza que despertam. Numa aparente contradição (o cetro símbolo do poder aparece arrancado e a coroa caída por terra), eles apontam para a presença de “sombras entre as luzes; de raios entre as trevas; de silêncios entre as falas” (Jabotão, 1750, p. 102). Para compreender o que está acontecendo, porém, é preciso de algo mais: o discurso (as “vozes”) do pregador – que poderá expor de modo articulado o significado evocado por aqueles objetos. Colocam-se aqui, no próprio movimento retórico do sermão, a função, o alcance e os limites dos elementos sensoriais na teoria do conhecimento barroca: estes têm impacto sensorial e afetivo no destinatário e provocam nele um questionamento racional (levando-o a perguntar-se: diante do objeto: do que se trata?), questionamento que somente poderá ser resolvido no âmbito do discurso e do entendimento. Os sentidos são elementos auxiliares num processo de conhecimento que visa realizar-se re-apresentando ao destinatário seu objeto. O elo entre os sentidos, os afetos e o entendimento é constituído pela memória: é pela memória que todos podem se aperceber da falta de uma pessoa falecida. A memória não tanto e apenas das palavras quanto das obras e das ações do sujeito. Uma vez introduzidos os ouvintes neste trabalho da memória, o pregador deixa de lado o discurso metafórico para ir diretamente à consideração dos atos memoráveis do falecido, apelando, portanto, à memória e ao entendimento: “faremos muito por levantar o pensamento ao mais alto, a que puder subir sua capacidade, para ponderar, meditar, ou contemplar as ações mais notáveis do nosso Monarca” (Jabotão, 1750, p. 108).

Jabotão, em vários passos de seus sermões, cita os tratados do já nomeado médico aristotélico Jean Fernel: a intenção de produzir efeitos envolventes dos sentidos externos e internos – conforme os ditames do aristotelismo – parece de fato inspirar a articulação das metáforas na construção retórica.

A percepção visual das cores, um dos tópicos mais estudados por Fernel, é evocada pelas palavras dos pregadores. O emprego da cor preta é recurso sensitivo para significar luto e dor, conforme citado por Gervasio de Rosário, Provincial dos Franciscanos no Brasil, em narrativa das cerimônias fúnebres ocorridas em Olinda pelo falecimento de Dom João V: “O sentimento se inculcava intenso pela negridão das baetas com que se cobriam e enlutavam os Túmulos” (1755, p. 5). No exórdio da narrativa, frei Gervasio coloca um contraste tipicamente barroco estabelecendo uma relação de sentido entre duas circunstâncias que aconteceram na cidade de Olinda, no mesmo dia, 22 de outubro de 1750: no meio dos preparativos para os festejos do aniversário do soberano, a chegada do navio anunciando a sua morte. O narrador comenta que quando o gosto pela festa chegara ao maior excesso, “havia de encontrar um sumo desprazer” (Rosário, 1755, p. 3). Ao fornecer vários exemplos desta polaridade que parece marcar toda humana existência, Rosário introduz uma metáfora sensorial, afirmando que “a luz, quando quer acabar, então resplandece mais: e o final mais certo de se extinguir, é o excessivo auge de seu resplendor. Em fim, sempre o remate do gosto foi exórdio da pena” (1755, p. 3). A impressão sensorial mais eficaz é aquela despertada pelas luzes baixas, a diminuição da luz simbolizando o desfalecer da glória humana e o apagar-se da vida do Rei: “para se significar melhor, com a diminuição do luzimento, o excesso da nossa magoa: pois é certo, que quanto menos estrelas se descobrem no Céu, maiores sombras cobrem a terra” (Rosário, 1755, p. 5). Outros elementos decorativos, utilizados na cerimônia e citados pelo narrador, são destinados a evocar imagens sensoriais que estimulem afetos de tristeza e de perda: dentre eles, os ciprestes: seja pela cor verde escura (que “a natureza lhes deu por representação da melancolia”), seja pelo costume de plantá-los nos cemitérios, seja pela forma comprida que lembrava os túmulos egípcios (as pirâmides) “em que a magoa gravou os seus efeitos” (Rosário, 1755, p. 6). Em suma, “pelo fúnebre ornato dos Túmulos se descobria o intenso, e excessivo do sentimento” (1755, p. 6).

Por outro lado, na ocasião de exéquias de um membro da realeza e de uma nação cristã, a cerimônia não poderia desconsiderar o destino imortal da existência humana bem como a soberania exercida pelo falecido: estes significados são introduzidos por elementos materiais destinados a evocar a representação da realeza e da imortalidade. A estimulação sensorial correlata, esta também de natureza visual, se obtém pela impressão de força dada pelas construções efêmeras, pelo luzir do ouro e da prata dos enfeites, mas também pela grande quantidade e pela refinada qualidade dos materiais utilizados na decoração. O uso de metal, ou gemas preciosas, para ornamento de lugares, objetos e imagens sagradas tem na tradição da igreja católica uma importante função evocativa: o prazer sensorial abre para a contemplação das realidades transcendentes.

Uma concepção análoga, que aborda o elemento “sensitivo como acesso ao racional”, perpassa também o sermão fúnebre proferido por Manoel Ângelo de Almeida, pregador da Ordem do Carmo, da Bahia. Na ocasião das exéquias do Bispo de Pernambuco, José Fialho, celebradas em Olinda, frei Manoel Ângelo de Almeida (1742) utiliza-se da imagem do sol e evoca os efeitos da intensidade de sua luz para referir-se ao brilho espiritual da vida do falecido. No argumento que justifica o uso desta metáfora, o pregador enfatiza o fato de que, no percurso do conhecimento, não há solução de continuidade entre o nível sensorial, o afetivo e o racional, numa clara referência à doutrina aristotélicotomista: “hão de ser sensitivos e racionais, porque hão de ver, hão de ouvir, hão de examinar, hão de sentir, e muitas vezes hão de sentir-se” (Almeida, 1742, p. 14).

Olhos, visão e estímulos luminosos são empregados também num sermão do jesuíta Lourenço Ribeiro, dedicado a Santo Antônio e pregado na capela do cárcere da Bahia no ano de 1643. A metáfora da luz é aplicada à pessoa de santo Antônio, padroeiro daqueles presos, “luz” para eles: o sermão pretende demonstrar a eficácia desta iluminação singular. O primeiro argumento pilar para a construção da metáfora é que a luz está em toda parte, sem exceção de pessoas nem de lugares, difundindo seus raios para todos; assim também o santo pode ser invocado indistintamente por todos os presos, inocentes ou culpados que sejam, “para os bons ilustrando a verdade de sua inocência, e para os maus, manifestando-lhes os erros do seu procedimento” (Ribeiro, 1643, p. 5). A munificência desta luz é ressaltada pelo fato de alcançar os lugares mais escuros, onde as pessoas padecem grave opressão e vivem fragilizadas e desprezadas, tal como é a prisão. Nesta parte do sermão, o pregador coloca, uma questão ligada à concepção da luz proposta pela filosofia natural (a física da época): “se as trevas são negação da luz, como se diz que nas mesmas trevas aparece a luz com luzimento?” (Ribeiro, 1643, p. 7). Esta vivência perceptiva, numa aparente condição de impossibilidade, visa realçar o fato paradoxal de que Santo Antônio é luz para quem vive nas trevas: os presos, ao contemplarem a imagem do santo, podem chegar a ter a verdadeira “visão”, a saber, o verdadeiro conhecimento de si mesmos. Trata-se, portanto, de uma experiência perceptiva paradoxal que introduz um metafórico enxergar- se a si mesmo na luz da verdade. Neste sermão, luz, visão e olhos metaforizam, através da polaridade tipicamente barroca da relação entre contrários, a possibilidade de que as trevas, a cegueira, a ignorância e o desconhecimento de si mesmo que caracterizam a vida dos presos num cárcere, sejam superados pela presença iluminadora do santo.

A escolha da metáfora da luz da aurora e do sol para definir a vida de um homem santo e amigo de Deus é recorrente em outros sermões. Por exemplo, na oração fúnebre pronunciada por Antônio de Oliveira (1745), na Bahia, na ocasião do falecimento de Manoel Botelho, irmão do Bispo da cidade, a metáfora do Sol e a referência à experiência visual da sua luminosidade empregada ao longo da oração para referir-se àquela esta existência notável, facilita aos ouvintes o entendimento do valor de sua biografia. Na ocasião daquelas mesmas exéquias, foi elaborada também A relação sumária dos fúnebres obséquios que se fizeram na cidade da Bahia, em 1745, por João Borges de Barros, cônego da Sé, descrevendo as celebrações fúnebres ocorridas quando da chegada da notícia do falecimento do ilustre parente. A narrativa evidencia o recurso a experiências sensoriais para induzir, nos moradores da cidade de Salvador, o sentimento de um luto ocorrido em local tão distante. As sensações visuais são estimuladas pela apresentação de artefatos e arquiteturas efêmeras: um “suntuoso e magnífico Mausoléu” (Barros, 1745, p. 9) quadrado e alto, onde “ardiam inumeráveis luzes . . . colocadas todas em castiçais de prata”. A luz de “vinte e quatro tochas, que em soberbas tocheiras circulava pelo pavimento” com seus reflexos constituía-se numa muda linguagem, quase que “outras tantas línguas que sem a confusão de Babel, inquietamente narravam quanto mais mudas mais eloqüentes, o ardentíssimo afeto de sua excelência reverendíssima” (Barros, 1745, p. 10). Os estímulos visuais solicitam os espectadores a mobilizar as potências psíquicas da visão e da atenção: “A brilhante pompa das luzes, a esquisita riqueza do ornato, o engenhoso capricho da contextura, tudo dava muito que ver, e examinar ás atenções mais curiosas” (Barros, 1745, p. 19). O impacto sensorial do aparato proporciona a “idéia” de um “elegantíssimo espetáculo para os olhos”, complementado por outros sinais, evocando já o nível do entendimento e proporcionando assim um passo ulterior no percurso do conhecimento do acontecimento objeto da celebração.

Em suma, os olhos e sua função sensorial bem como os estímulos proporcionados por objetos particularmente luminosos como sol, lua, estrelas, tochas, lâmpadas, dão origem a metáforas exemplificativas de momentos importantes da existência e expressivas da qualidade paradoxal e bipolar da condição humana e de seus dinamismo dialético. A importância atribuída à visão, nos docu- mentos analisados, encontra respaldo na concepção de Luís de Granada: a visão, o principal dos sentidos externos, permite que “todo este mundo visible, cuan grande es, entre en nuestra ánima por esta puerta de los ojos” (1945, p. 258). Partindo do pressuposto de que a vista das coisas requer “espécies y imagines de las cosas” (1945, p. 258), Granada explica o processo visual pela teoria aristotélica das espécies: “todas las cosas visibles, que son las que tienen color ó luz, producen de si en el aire sus imágines y figuras, que los filósofos llaman especies; las cuales representan muy al próprio las mismas cosas cuyas imágines son” (1945, p. 258). Assim, todas as imagens visíveis produzem no ar imagens e espécies que chegam aos olhos e representam ali as coisas a serem vistas: “No podriamos ver las estrellas estando tan apartadas de nuestra vista, si ellas no imprimiesen sus especies y imágines en nuestros ojos, para que mediante ellas fuesen vistas” (Granada, 1945, p. 257). Granada descreve o processo neurológico da visão: do cérebro (onde se localiza o senso comum), os espíritos animais descem pelos nervos até os olhos que são assim “informados” por aquelas espécies e imagens das coisas. As características anatômicas dos olhos propiciam a fisiologia da visão: os três humores (cristalino, humor roxo e humor azul) contidos neles permitem armazenar na pupila do olho as espécies e imagens provindas dos objetos externos. Por este percurso, espécies e imagens das coisas externas entram pelos nervos chegando até o senso comum.

O Ouvido e os Sons

Na narrativa já citada de Frei Gervásio do Rosário acerca das exéquias do soberano Dom João V, a comunicação da lutuosa notícia à cidade ignara é realizada por apelos auditivos: o toque dos sinos anuncia a morte do rei, sendo que a “viveza dura” do bronze é mais enfática na comunicação do que as explicações dos discursos: “em casos semelhantes de tanta dor, e tão excessivo pesar, só línguas de bronze, e vozes de metal podem dizer com viveza dura, o que o sensível, por amortecido, ou desmaiado, não sabe explicar” (1755, p. 4). Análogo uso do som dos sinos para indicar eventos lutuosos encontra-se na já citada Relação sumária dos fúnebres obséquios que se fizeram na cidade da Bahia, de Barros: a morte de Manoel de Mattos Botelho foi anunciada “pelos enternecidos dobres de tantos sinos assim de umas como de outras igrejas, regulares e seculares distinguindo-se os da catedral tanto no doloroso como no extenso, porque nos três dias imediatos não cessaram de dobrar” (1745, p. 7). O som dos sinos cujos toques fúnebres são repetidos ao longo de três dias tem o efeito de evocar de modo imediato o sentimento da dor. Ao descrever as cerimônias ocorridas naquela circunstância na Catedral da Sé, Barros relata que “quatro coros de excelente musica em que se acharão os melhores Orfeus desta Corte, elevavam e suspendiam os sentidos e as potências, com tão ajustado e atrativo concerto das suas vozes” (1745, p. 20) e que no fim do sermão proferido pelo pregador jesuíta Alexandre Cabral, seguiu-se “um solemníssimo responsório acompanhado dos enternecidos dobres de todos os sinos da Igreja da Misericórdia e da catedral” (p. 21). O aparato cerimonial parece ter surtido os efeitos desejados, sendo que Barros conta que o povo acorria na Catedral para “ver, ouvir e admirar” (1745, p. 21).

O ouvido é, portanto, a segunda potência sensorial evocada com freqüência na cena barroca das cerimônias lutuosas ou alegres do Brasil colonial. Granada define o ouvido como o segundo sentido exterior em ordem de relevância; descreve a fisiologia da sensação acústica bem como a anatomia da orelha perfeitamente ordenada a suas funções de receptor e armazém do ar movido pelo som:

dentro de los oídos está una vejiguita que llaman miringa, llena de aire, que es como un atabalico, y llegando alli el sonido de la voz, ó de cualquira outra cosa, hiere este órgano, y com esto se causa el oir. (1945, p. 258).

Fernel (1554/2001) afirma que o instrumento principal do ouvido é um determinado tipo de ar muito sutil contido nas orelhas desde o nascimento e embrulhado numa membrana situada no fundo do órgão, ponto de chegada dos nervos auditivos provenientes do cérebro: o ar circula através desses, transmitindo ao cérebro o estímulo acústico recebido.

O Olfato e os Cheiros

Na já citada narrativa, Barros descreve o emprego de cheiros para estimular êxtase, no cerimonial de exéquias:

Nem a este primeiro sentido (a visão) teve o terceiro (o olfato) que invejar, pois com quanto podia deliciar a sua potência, concorreu nesta ocasião a Panchaya e a Cornucopia; sendo todo este admirável objeto uma éxtase de vida, e uma quinta essência do olfato. (1745, p. 20).

Frei Manoel da Madre de Deus Bulhões, destacado pregador e Provincial da Ordem do Carmo, atuante na região da Bahia, foi chamado para proferir o sermão da festa de abertura da nova Igreja dedicada a São Pedro, construída pela Irmandade dos Clérigos de São Pedro, na cidade de Salvador, no ano de 1716, no dia da festa de São Pedro. O motivo do sermão é constituído pelo versículo do Cântico dos Cânticos assim traduzido pelo pregador “as vinhas florescentes deram o seu cheiro” (Bulhões, 1716, p. 5). Já no tema comparece a referência ao sentido do olfato. A imagem da vinha e da vide é utilizada pelo autor ao longo do sermão num tríplice sentido metafórico: a primeira vide é imagem do bispo de Salvador Sebastião Monteiro da Vide que preside aquela cerimônia (utilizando-se aqui a sinonímia dos termos vide e Vide); a segunda vide é imagem de São Pedro objeto da celebração do dia; a terceira vide é a imagem do Santíssimo Sacramento que torna Cristo presente naquela igreja. Cada um dos sujeitos simbolizados pela metáfora da vinha é qualificado por um cheiro particular: o sermão estruturado em três partes, cada uma delas tratando do cheiro específico de um tipo de vide entre as três que compõem a vinha. Já no início do discurso, Bulhões (1716) alerta que no sermão interpretará cada cheiro como metáfora de alguma realidade espiritual: o da primeira vide é metáfora das obras; o da segunda é metáfora da santidade; o da terceira é metáfora da doutrina. Passa, depois, a ilustrar cada uma das metáforas: o cheiro da primeira vide destaca-se pela “suavidade”, entendida como qualidade espiritual metaforizada em termos de qualidade sensorial pelo cheiro. O cheiro da segunda é a santidade. O cheiro da terceira vide é a doutrina. Ao cheiro das três vides acompanhase ao perfume das flores, que metaforizam os serviços prestado pela Irmandade de São Pedro, cuja fragrância “é como de um campo cheio de flores, e frutos” (Bulhões, 1716, p. 32). Trata-se de diversos serviços e, portanto, de diversos cheiros: “o cheiro de oliveira” cuja fragrância evoca a liberalidade das esmolas e da caridade dos irmãos; o “cheiro da viola” (1716, p. 32), metaforizando a humildade; o “cheiro das rosas” (p. 32) simbolizando a limpeza e a pureza.

Os apelos ao olfato são muito fortes no Barroco: por ser, entre os cinco sentidos, o mais incerto e duvidoso quanto à captação dos estímulos, é tido como mais apto para refinar a contemplação sensível e excitar a potência imaginativa e a memória. Segundo o cientista italiano do século XVII, Lorenzo Magalotti (citado por Jori, 1998), a experiência olfativa envolve a parte ativa da alma racional que mobiliza o sentido na direção do que ela mesma escolhe. A associação entre qualidades sensoriais olfativas e virtudes espirituais que caracteriza o sermão de Bulhões (1716) pode ser relacionada à afirmação de Magalotti, acerca do fato de que a experiência olfativa, por sua indeterminação, é a mais apta para remeter a significados espirituais e místicos. Tais significados são evocados sem a mediação dos afetos e sim pelo trabalho dos sentidos internos da imaginação e da memória. Trata-se em suma do que Husserl definiria como dimensão hilética, ou seja, o fato de que dados sensíveis constituem-se matérias para as formações intencionais (Bello, 2004). Luís de Granada (1945) descreve em pormenores a anatomia e a fisiologia do olfato: as narinas servem também para a evacuação do humor fleuma que, expelido pelo cérebro, passa por uma espécie de cano estreito que chega até elas.

O Tato e os Toques

Nos aparatos fúnebres do Brasil colonial, o sentido do tato é mobilizado e acoplado ao sentido da vista pelo uso de determinados tecidos como o veludo preto, com o objetivo de suscitar a tristeza: “e algum houve, que com o preto veludo quis testemunhar, ou o mais fino de sua magoa, ou o mais denegrido de sua pena” (Rosário, 1755). No já citado sermão de 1716, Bulhões refere-se às qualidades táteis (dureza, consistência firmeza) inerentes à imagem da pedra, para explicar a origem do nome Pedro. Bulhões retoma a imagem apocalíptica (Capítulo 4, v.2) de Pedro assentado num trono e de cor semelhante a duas pedras preciosas: o sardio (variedade da pedra calcedônia) e do jaspe – símbolos da Igreja. Bulhões relaciona as cores das duas pedras às do corpo de Cristo e afirma que “o jaspe representa são Pedro” (1716, p. 25). Uma imagem referente a elementos do mundo material (neste caso, as pedras preciosas) é utilizada no discurso, para evocar qualidades sensoriais (força, solidez), que por sua vez remetem a qualidades e efeitos espirituais (fidelidade à autoridade de Pedro e de seus sucessores, os Papas, na Igreja católica).

A dimensão hilética da matéria é evocada também na narrativa de frei Bento da Apresentação em 1769. O escritor, religioso franciscano, narra as grandes celebrações ocorridas na vila de São Francisco de Sergipe na ocasião do casamento do príncipe português Dom Pedro com a Princesa Dona Maria. A dimensão hilética da pedra e do metal é evocada quando o escritor justifica a necessidade do relato da festividade, utilizando-se da analogia entre o diamante e a festa. Assim como o diamante não polido não mostra sua preciosidade, também a festa se não for narrada pode ficar no esquecimento. O trabalho do narrador ao elaborar o texto é comparado com a lapidação do duro diamante: “os golpes de buril que o pule e aperfeiçoa” (Apresentação, 1769, p. 1-2).

O tato é tido pelos médicos como um sentido fundamental e essencial para o conhecimento da complexão psicossomática dos seres humanos: é pelo tato que se percebe o calor, o frio, a umidade e a secura, que são as características determinantes dos quatro temperamentos. Assim, Luís de Granada disserta sobre o tato: “Por meio deste sentimos as quatro primeiras qualidades dos elementos que são: frio e calor, úmido e secura. E também sentimos o duro e o mole, o áspero e o liso” (1945, p. 259). Não ocupando um lugar específico, estende-se pelo corpo inteiro, “por ser necessário para que o animal reconheça o que é nocivo e o que é proveitoso, fuja de um e busque o outro”. O órgão do sentido do tato “é o conjunto de nervos que espalha-se pelo corpo inteiro” (Granada, 1945, p. 259).

O Paladar e os Sabores

O apelo ao paladar encontra-se na Merenda eucarística, sermão do jesuíta Manoel Craveiro pregado em Salvador em 1665, em que o sacramento eucarístico é metaforizado pelas carnes a serem consumidas na refeição: “Chama-se este Senhor em as Divinas Letras metaforicamente Galinha, Codorniz, Perdiz, Vitela, Cordeiro, Cabrito, Cervo, Veado e Águia. Em metáfora destas carnes nos oferece hoje sua carne sacramentada” (Craveiro, 1665, p. 3). A seguir, o pregador descreve os diferentes tipos de carne, preparados em forma de pratos apropriados para as condições dos consumidores: o prato de carne de galinha é recomendado para os enfermos, pois “a carne da galinha (diz Galeno) é carne temperada de bom gosto, de melhor nutrição, e como salutar, gera sempre bons humores” (Craveiro, 1665, p. 4). Para o preparo deste manjar, Craveiro sugere: “Tempera- se a galinha para se comer com gosto: com açafrão, e coentro”, sendo que o açafrão, que deve ser moído e pisado, simboliza a mortificação e a paciência, e o coentro significa o esquecimento (do mundo) porque faz perder a memória, a quem o come em demasia (1665, p. 5).

Indica a seguir outros tipos de carne: codorniz e perdiz, “carnes temperadas e gostosas, substanciais, nutritivas” cujo consumo é aconselhado aos “convalescentes, que hão mister de criar forças” (Craveiro, 1665, p. 7). A salsa recomendada:

para ser mais saborosas: é azeite, vinagre, sal, e pimenta. O azeite é a misericórdia, isto significa a Sagrada Escritura, o vinagre é o que deram a beber a Cristo em sua cruz. O sal significa a paz, e amizade. E a pimenta por ser cálida significa o amor. (Craveiro, 1665, p. 10).

O azeite e o vinagre tornam a comida mais saborosa, ao passo que o “sal universalmente é o gosto das iguarias, sem sal não se acha gosto, por isto o sal é a primeira coisa que se deve pôr na mesa” (Craveiro, 1665, p. 11). A pimenta é quente, podendo assim “representar o amor, que de sua natureza é fogo”. O pregador assegura que este prato “além de lhes dar forças, lhes acautelará muito gosto” (1665, p. 11). O terceiro prato é de carne de cordeiro e cabrito, “tenras, gostosas, e mimosas, e nutritivas, comem-se ordinariamente assadas” (Craveiro, 1665, p. 12). O acompanhamento recomendado são “alfaces amargosas”, as quais ressaltam o sabor daquelas carnes. O quarto prato é de carnes de vitela “gostosa, e cheirosa, e de muita nutrição” (1665, p. 16), sendo que “para a vitela ser gostosa há de levar sua mostarda” que metaforiza a fé “de suavíssimo gosto” ao paladar (Craveiro, 1665, p. 18). O quinto prato é de cervo e veado, “carne forte, e robusta, de digestão dificultosa, há mister estômagos robustos, e esforçados” (Craveiro, 1665, p. 19), devendo ser temperada com uma salsa preparada com os “pés deste cervo e veado” (metaforizando a virtude da obediência e do serviço).

Na conclusão do sermão, Craveiro afirma a prioridade do sentido do paladar sobre o da vista: “Primeiro se gosta, o que se ama, e depois se vê o que se gosta: Gustate et videte”, visando afirmar a doutrina do conhecimento afetivo de Agostinho de Hipona: “Comei todos, e tomai bem o gosto e o sabor a este Manjar delicioso, e faça-vos bom proveito” (1665, p. 20).

Granada (1945) refere-se ao gosto como ao sentido pelo qual sentimos os sabores das coisas, devido a dois nervos localizados no meio da língua e que se ramificam nela por toda a sua extensão. Descreve a língua como sendo úmida e cheia de poros: através destes entram nela todo gênero de sabores que chegam aos nervos e causam o gosto.

 

Conclusão

A análise evidenciou a importante função atribuída às potências psíquicas sensoriais pela arte retórica difundida no Brasil no período colonial, seja quando aplicada à construção do sermão, seja quando utilizada para a montagem de celebrações e representações referentes a acontecimentos da vida civil e religiosa (festivos ou lutuosos que sejam) e para a elaboração das narrativas deles decorrentes. A ênfase na base sensorial do conhecimento, de matriz aristotélica, fundamenta o recurso amplo a imagens (reais ou imaginárias) e metáforas destinadas a evocar vivências. Vimos que as capacidades evocativas das imagens foram amplamente descritas e explicadas por Agostinho de Hipona, cuja doutrina tornara-se na cultura ocidental um dos alicerces para fundamentar e justificar o uso delas nos mais diversos contextos e circunstâncias. Portanto, não se trata da mera introdução de elementos eruditos ou estéticos, mas o apelo à dimensão sensorial visa atingir os destinatários de modo amplo e marcante, remetendo-os imediatamente para horizontes de sentido afetivos, cognitivos e motivacionais. Não há solução de continuidade entre o cognitivo- motivacional e a sensibilidade: a antropologia unitária aristotélico-tomista proporciona uma visão do processo do conhecimento e do dinamismo psicológico nele implicado em que sons, luzes, textura de panos e de materiais, sabores e cheiros destinam-se a um sujeito concebido não apenas como meramente passivo, e sim como um ativo receptor que elabora os dados pelos sentidos internos, armazena-os na memória, representa-os pela imaginação, valoriza-os pelo juízo, é afetado emocionalmente por eles e decide mobilizar-se pela vontade.

 

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Received 30/10/2007
Accepted 30/11/2008

 

 

Marina Massimi. Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil.

1 Endereço para correspondência: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Av. Bandeirantes, 3900, Cidade Universitária, Ribeirão Preto, SP, Brasil, CEP 14040-901. Tel.: (16) 3602 3802. E-mail: mmassimi3@yahoo.com