SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número27Narcisismo e adolescência: as (im)possibilidades de aprenderPerversão e angústia: diante da angústia, não retroceder índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Repressão e recalque do impulso agressivo: o caso de um menino em tenra idade com anorexia

 

Maria Inês de Araújo Luksys

Sociedade Psicanalítica da Paraíba - SPP

 

 


RESUMO

Apresenta alguns aspectos da experiência psicanalítica de uma criança com anorexia e outras dificuldades. Constata-se que as falhas iniciais de adaptação do meio ambiente às suas necessidades de bebê converteram-se em padrão de relacionamento entre a casa e o paciente. A continuação de falhas de adaptação vem interferindo no desenvolvimento desejável de outras áreas de seu processo maturacional, além de sua sexualidade oral. Caracterizam-se principalmente pela repressão de sua capacidade de experimentar o impulso agressivo espontâneo, o que por seu turno serve ao propósito de manter a ação do recalque.

Palavras-chave: Anorexia, Impulso agressivo, Repressão, Recalque, Falha de adaptação, Necessidade, Ambiente, Winnicott.


ABSTRACT

This paper presents some aspects of the psychoanalytic experience of a boy in tender age with anorexia and other difficulties. It is observed that the environment's initial failures of adaptation to his needs while a baby became a pattern of relationship between his home and himself. The continuity of adaptation failures has been interfering with the desired development of other areas of his maturational development, besides of his oral sexuality. These failures are mainly characterized by suppression of his capacity to experience the spontaneous aggressive impulse, which in its turn serves the purpose to maintain the repression´s action.

Keywords: Anorexia, Aggressive impulse, Suppression, Repression, Adaptation failure, Need, Environment, Winnicott.


 

 

Já havia ouvido falar sobre Paulo. Uma vez a colega que o encaminhou comentara que o filho de uma outra colega de trabalho demonstrava ter alguma dificuldade de desenvolvimento. Ela tentava influenciar a mãe de que era preciso levá-lo a um profissional sem, contudo, obter êxito. Mas depois que o obteve, em aproximadamente seis meses de tratamento, alguns avanços no que tange às atividades e funções de ego se tornaram percebíveis, para meu contentamento e satisfação dos pais, apontando para a possibilidade do caso avançar mais substancialmente, não fora a interrupção do tratamento por iniciativa da mãe. A resistência à observação da colega agiu também no tratamento que eu iniciara com seu filho.

Paulo chega ao meu consultório com a idade de dois anos e três meses. Tem um irmão com cinco anos. Os pais o trazem e fazemos uma sessão a quatro. A mãe, apesar de esquiva, é quem mais fala. Tem o hábito de falar por alto sobre as dificuldades do filho, na presença deste. A ênfase da queixa é posta na dificuldade da criança em comer, como se para os pais, tudo o mais exibido pelo seu quadro clínico fosse secundário e sem importância. A ênfase na alimentação bem pode ser conseqüência do incômodo sofrido pelos pais por estarem tão enredados nos fatos que constituem o conjunto do problema. Indo do controle excessivo sobre os "movimentos" da criança, passando pela atitude ansiosa de mudança de sua conduta alimentar - tanto insistindo quanto desistindo de insistir por algum tempo -, até às dificuldades na esfera da sexualidade do casal parental.

Paulo é um menininho anoréxico. Recusa alimentar-se. Abre exceção apenas para o cuscuz, o inhame e um arrozinho de leite, feito com arroz da terra. Este último com o passar dos meses era por vezes também rejeitado. O máximo que faz é tocar nos alimentos. Nas primeiras sessões, Paulo estendia um olhar comprido para as coisas do setting. Observei nele a ausência de um impulso forte além do simples olhar que, combinado a uma motilidade ativa, o levasse a apropriar-se do objeto. Dependia dos pais para procurar na caixa de brinquedos os objetos de seu interesse, comumente um carrinho, com portas móveis, no interior do qual introduzia e retirava pedacinhos de papel, que a princípio fingíramos ser uvas. Gostava também de um caminhão em cuja carroceria costumava acomodar o carrinho. Voltando à área da alimentação, o paciente apresenta ingestão satisfatória também de biscoito cream cracker. O único que aceita, e carrega sempre na mochila. Toma água em abundância: Ah! Doutora Inês, água ele toma muita", o que pude verificar durante as sessões, além do aumento de seu ventre, que exibe espontaneamente quando o assunto é falado. Eleger alguns alimentos para comer e ingerir muita água são comportamentos que se intercambiam no quadro clínico de anorexia, segundo D. Marcelli1.

A fórmula encontrada para Paulo ser suprido com a qualidade e a quantidade de alimento requerida para sua idade é através da comida liqüidificada e dada na mamadeira, desde que ocorreu seu desmame, tardiamente, quando ele tinha um ano e nove meses. Até aqui tudo bem, se considerarmos o grande contingente de crianças que continuam usando a mamadeira durante um espaço maior de tempo. Acontece que o paciente a toma dormindo. Mamar à noite, com o objeto amoroso dormindo foi o modelo que o meio lhe proporcionou até a época do desmame. Dormia entre os pais e a mãe, dormindo de lado, deixava-lhe o peito à sua disposição para que o buscasse quantas vezes o quisesse durante à noite. Para o paciente, o arquétipo da experiência da correspondência do objeto amado durante as mamadas noturnas foi esse estar dormindo. Supomos que, ao ser alimentado dormindo, Paulo não percebe que come, não tem a experiência do gosto, da textura e do prazer do alimento. Falta-lhe também a experiência do prazer advindo das trocas afetivas proporcionadas pelo ambiente de refeições com os pais e com o irmão. Este, diferentemente de Paulo, alimenta-se de tudo, embora o alimento lhe seja dado na boca. Resolver a questão específica da alimentação, e de imediato, foi o interesse capital dos pais para trazer e manter Paulo no tratamento.

Como sabemos, um sintoma não é isolado, não se sustenta por si só, e tampouco surge do nada. Também sabemos que é através do trabalho feito sobre o material que constitui o seu entorno que temos a esperança de poder chegar até ele. Paralelamente a não se alimentar apropriadamente em estado de vigília, o paciente tem um precário desenvolvimento da linguagem. Fala poucas palavras e sem pronúncia clara. No consultório, a princípio, não apresentava desenvoltura na locomoção e no manuseio dos objetos. Das três funções maternas2, apontadas por Winnicott, como necessárias ao bebê para um bom início do desenvolvimento de sua personalidade, acredito ter sido aquela à qual dá o nome de "manipulação do bebê e do corpo do bebê" (handling), onde ocorreu a principal falha de adaptação do ambiente às necessidades psicofísicas do paciente, em conexão com seus sintomas atuais. Desde cedo Paulo passou por experiências que são exemplo de dificuldades de adaptação do meio relacionadas ao seu manuseio e que deixaram comprometida sua oralidade. Aos sete dias de nascido se engasga e sufoca deitado no berço, após ter sido alimentado ao peito, necessitando de respiração boca a boca feita pela mãe. Aos quinze dias de vida Paulo engasga tomando água, que lhe estava sendo dada pelo pai. Não fora a proximidade de sua residência do hospital, dizem seus genitores, a criança teria morrido, tão grave foi o acontecimento; já chegou todo roxo e o médico lhes dissera que uns minutos a mais e a criança não teria resistido.

De acordo com a teoria, o desempenho da função de manuseio implica uma simbiose psicossomática, sugerindo a idéia de que a pessoa que cuida do bebê o faz como se os dois, mãe-bebê, formassem uma unidade3. Outras ocorrências simultâneas a essa dificuldade vêm contrariar outro aspecto do ideal teórico dos cuidados maternos iniciais ao bebê de Winnicott, qual seja, nesta fase a mãe é o adulto alerta, atento, que coloca todo seu tempo à disposição para o atendimento de todas as suas necessidades. O pai, nesse começo de vida do paciente, é quem está cuidando do filho, e depois a mãe tem o hábito de dormir enquanto ele mama. Numa sessão individual com o pai, seguida por uma também individual com a mãe, pergunto-lhe se ele se sentiu responsável pelo acontecimento. Respondeu que não, sem fazer qualquer conexão com o fato de a mulher, pelo menos na sessão comigo, o ter culpado pela situação. Apenas demonstrou pesar ao falar que, se não fora chegarem logo ao hospital, "eu teria perdido o meu menino".

A coleção de imprints traumáticos para a experiência da sexualidade oral do paciente, cujos rastros contribuíram para formação de sua anorexia, é completada pelo seu desmame intempestivo, imposto por razões externas ao "desejo" de ambos. Os mamilos da mãe inflamaram a ponto de não haver mais possibilidade de continuar aleitando-o. Essa mãe, com dificuldades de privar-se dos prazeres advindos do ato de amamentar o filho, não encontrou no marido a interdição necessária para ajudá-la a prover o desmame do filho na época correta e de modo apropriado. A interdição veio de seu corpo. Ao corte externo de seu aleitamento, Paulo acrescentou o corte na sua ingestão diurna de alimentos, a qual vinha se realizando com sucesso, embora a mãe não lhe oferecesse o alimento na forma de sólidos.

A perda do objeto de satisfação para Paulo pode ter sido acompanhada de um forte sentimento de culpa por ter "danificado" o peito da mãe. O que não é improvável se considerarmos que o arranjo materno de aleitá-lo enquanto ela dormia privou o filho da experiência de atacar o seio tão desejado e poder continuar atacando-o, pela aquiescência para continuar a fazê-lo, percebida no rosto de uma mãe que sobrevivesse e não retaliasse ao seu ataque, e que por isso lhe inspirasse confiar na existência de um mundo bom. No caso, o desfrute da sua oralidade pelo gosto dos alimentos e da fala como meio de comunicação privilegiado entre as pessoas. A culpa de Paulo encontra adubo no pai, no modo como este usa as palavras, na entonação de voz e na expressão facial ao referir-se à condição da mulher à época: "Coitadinha, os mamilos dela chega a ficar pendurados". Paulo me olha de um jeito perscrutador como se quisesse saber se eu comungaria a opinião de seus genitores, tornando-me nesta questão em mais um algoz para manutenção de sua culpa. Que possíveis significações podem ter para Paulo a ocorrência dos mamilos inflamados e as palavras do pai? Que o prazer oriundo da alimentação é perigoso, machuca e ameaça a integridade física da mãe? Que ter prazer e promover dor/prazer na mãe se aproxima de uma prática sadomasoquista?

Procurava, em ocasiões propícias, ajudar o paciente a ir diminuindo a culpa e levantando o véu do recalque: "Sabe, Paulo, às vezes você pode ficar pensando que machucou a mamãe e que ela pode ter ficado com raiva de você (...) mas, nem precisa se preocupar porque mamãe gosta muito de você". Ou "às vezes você tem uma saudade danada de quando era bem pequenininho e gostava muito de tomar leite no peito de mamãe". Após uma dessas intervenções ele vai até a mãe e toca-lhe os seios. Ela diz que na semana que passou ele lhe levantou a blusa, coisa que não fazia há muito tempo.

Pude verificar uma forte ação repressiva sobre o paciente, resultante de uma obsessividade de seu meio familiar, levada a efeito mais pela figura paterna, que lhe impede a expressão natural da agressividade. Alguns exemplos: o paciente, quando trabalhando com tinta, ouve seu pai dizer: "Paulo, vou trazer o seu avental". Sempre limpando ou pondo em ordem as coisas do setting usadas pelo filho. Especificando a marca do fabricante da bolacha cream cracker que eu me comprometi a trazer na próxima semana para lanchar com Paulo, e a mãe retrucando e dizendo "É qualquer uma". A cena quando o paciente derruba água no chão ao tentar servir-se no copo de plástico do consultório. O pai reclamando severamente, e ele duro, envergonhado, com medo e fazendo bolhas de saliva na boca ("Espumando" de ódio?). A cena paciente brincando, possivelmente, de matar a todos nós no setting, e ao dirigir-se ao pai, este jogar-lhe um beijo, numa flagrante dissonância com o ímpeto e a fantasia da criança. Os dados de verbalização dos pais, que sugerem que em casa o clima não é diferente. Da necessidade de uma assepsia ambiental para proteger o paciente, meses antes, de riscos devido a uma baixa de imunidade, o casal parece manter na agenda uma "assepsia" de caráter mais geral, em que tudo é controlado, ordenado e limpo. Quem sabe se para sustentação e asseguramento de um ideal parental rígido, cuja motivação intra-subjetiva e intersubjetiva de seus genitores desconheço.

As falhas iniciais de adaptação ao bebê podem converter-se, em algumas famílias, em padrão de relacionamento do meio com a criança. Com Paulo, a má adaptação às suas necessidades psicoafetivas orais encontrou continuidade na esfera do exercício da musculatura e da agressividade muscular, contemporâneas às suas pulsões anais. Tomo deliberadamente neste caso a idéia de um ambiente que repetidamente falha em adaptar-se às necessidades do filho como o equivalente de ações repressivas, que coíbem a iniciativa da criança para viver experiências espontâneas de seu desenvolvimento. Ensaiar os passos para servir-se e tomar água tem sua importância para a exercitação da motricidade e da coordenação de movimentos mais finos numa criança de dois anos, além da aquisição da independência. O investimento repressor do casal parental sobre Paulo contribui para a existência de um círculo vicioso em que: o RECALQUE (da pulsão e do impulso agressivo) é mantido e intensificado pelo estímulo da REPRESSÃO pelo ambiente - impossibilitando-o de encontrar substitutos para sua pulsão e, por isso, dando continuidade à ação do RECALQUE. Nesse clima repressor, o pai ou proíbe ou dorme na sessão para não proibir. Numa dada sessão em que Paulo lambuzava mãos, cotovelos e antebraços com a tinta, ficou evidente que isso era demais para aquele pai. Eu me dirijo para Paulo e digo: "Teu pai tá dormindo. Ele não gosta dessa bagunça, e por isso dorme". A mãe de seu lugar dá uma risadinha confirmando. Esse pai me dá a impressão de ser possuidor de fortes traços obsessivos e narcísicos, como também de estar vivendo a reatualização de seus conteúdos edípico-fraternos, na sua relação com a mulher e os filhos.

Os avanços aos quais me referia no começo deram-se em dois campos. Do lado de Paulo, em menininho mais espontâneo, indo direto para os brinquedos e até querendo, após uma das sessões, chutar minha perna porque não queria ir embora. Falando algumas novas palavras e construindo pequenas frases, embora poucas. Tendo encontrado o prazer de lidar com a cola e as tintas, por ter superado o desagrado que o afastava delas. A primeira vez que ele entrou em contato com a cola, teve uma reação muito forte de prazer, em que produzia sons e risos nervosos e bolhas de saliva nos lábios. A partir daí, numa espécie de resistência do recalque, passou a ter receios de apropriar-se dela. Punha o dedinho no tubo mas não ousava apertá-lo para fazer jorrar a cola. E mesmo que eu colocasse a cola num depósito, ele só a triscava e logo queria lavar as mãos. Por diversas ocasiões intervi associando a cola, líquido branco, pingando de um tubo-protuberância, ao leite e seios maternos. Da parte dos pais, os avanços se apresentam pela iniciativa de levá-lo à praia, a segunda vez em sua vida, apesar de morarem numa cidade banhada pelo mar. Por terem-no levado ao Habib's e a freqüentar a escola.

Olhando o caso retrospectivamente, pergunto-me se houve participação minha nessas mudanças. Ou se elas não seriam efeito do processo natural de crescimento do paciente. Em meio a estas interrogações recorro a Winnicott para entender melhor os acontecimentos, lembrando que ele diz que o que está dado enquanto tendência no indivíduo só se realiza se houver a participação de um ambiente facilitador. Estaria o ambiente familiar tornando-se mais facilitador para as necessidades do paciente, pelo uso que, acredito, os pais também fazem do objeto-analista da criança? Penso não ser à toa que a mãe costumava perguntar no início das sessões: "É para falar sobre Paulinho?" Sobre o quê, de si mesma, esta mãe estaria querendo falar?

Apesar disso, os pais passam a idéia de contarem com uma certa auto-suficiência, sugerida por um certo grau de distanciamento de mim, o mesmo que pude observar entre eles. Se este for o caso, bastaria um pouco de ajuda e a constatação de algumas pequenas mudanças em andamento, tanto no filho quanto na economia psicoafetiva familiar, para o surgimento de um "nós, e Deus, damos conta do serviço"? Os pais são evangélicos. Mas, até "quanto", me pergunto, quando penso na profundidade e volume das dificuldades do menininho Paulo. A mãe se justifica com dificuldades financeiras para sua retirada do tratamento, o que não deixa de ser verdade. Mas foi justamente quando, no processo, ela começou a falar sobre sua ferida na vida sexual do casal, que não quis mais, quem sabe, pagar o preço para agüentar continuar mexendo nela.

 

Bibliografia

MARCELLI, D. Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 1988.        [ Links ]

SAFRA, G. Momentos mutativos em psicanálise - uma visão winnicottiana. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1995.        [ Links ]

WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação, Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.        [ Links ]

 

 

1 MARCELLI, D. Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra, 1988, p. 106-109.
2 Holding (segurar com os braços - acrescentaríamos com os braços 'físicos e psíquicos'), handling (manipulação, manuseio, lidar com o corpo) e apresentação do objeto (da realidade), cf. WINNICOTT. A integração do ego no desenvolvimento da criança (1962), In: WINNICOTT, D.W., O ambiente e os processos de maturação, 1990, p. 58-59.
3 SAFRA, G. Momentos mutativos em psicanálise - uma visão winnicottiana, 1995, p. 112.

Creative Commons License