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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Perversão e angústia - diante da angústia, não retroceder

 

Maria Mazzarello Cotta Ribeiro

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

 

 


RESUMO

Apresenta, segundo os conceitos de perversão e angústia, um estudo de caso sobre uma relação familiar em que a existência de uma desmedida agressividade no comportamento do pai para com o filho, em prol de lhe proporcionar uma educação correta, pode estar associada aos sintomas de impedimento e de angústia apresentados pelo jovem, que o impediam de exercer suas propostas de vida.Poderíamos classificar uma abordagem violenta de uma criança como atos de uma estrutura perversa ou atos de perversidade?

Palavras-chave: Perversão, Angústia, Fantasia, Divisão do sujeito, Desejo do outro.


ABSTRACT

The author developed the crucial subject of relationship within families and the existence of perversity and anxiety when disproportional aggressiveness accurs on behalf of a progenitor, father or parent, toward his son or offspring in a quest to be prevalent regarding mores or education, thus developing in the youth, an attitude, an apprehensive disposition and tension forebording the practice of his/her activies. The author asks whether would classify a violent action against a helpless child as a perverse structure in the adult or as a perverse act.

Keywords: Perversion, Anxiety, Fantasy, Divided subject, Desire from other.


 

 

"Minha alma se arrepia: quem somos no fundo, quem nos habita, que monstro é esse, muito mais antigo do que a mais antiga memória de nosso inconsciente?" Lya Luft

 

Este texto é uma tentativa de acompanhar os efeitos de atos desmedidos praticados pelo pai contra um filho em seu processo educacional, em nome de lhe dar uma correta educação. Correta implicaria em corretivos?

O contexto em que esses dados foram colhidos não nos permite construir um diagnóstico do pai, pois este não foi por mim atendido. Dele, recebi as informações por intermédio do filho, o analisando, que sob a égide de uma agressividade desenfreada do pai, com maus-tratos físicos e morais, construiu sua posição psíquica e desenvolveu o quadro de angústia que examinaremos.

O paciente, sexo masculino, com idade acima de 30 anos, é um executivo com sucesso reconhecido em sua carreira. Procurou a análise por sentir-se em pânico, chegando à paralisação diante de uma nova chance de promoção almejada e por ele planejada há muito tempo. Deveria passar por uma série de testes e entrevistas e se sentia incapacitado.

No decorrer do atendimento psicanalítico, as marcas de um difícil relacionamento com o pai, diante de uma educação arbitrária exercida sobre ele, o filho, foram sendo apresentadas. O retorno de algumas lembranças, como o violento episódio ocorrido no final da adolescência, expõe o tom do relacionamento familiar. Recorda-se de uma cena em que o pai atacava fisicamente a mãe. Ele interferiu em defesa da mãe e o pai lhe apontou um revólver, atirando contra ele, duas vezes. "Acabar com ele?", pergunta que ele faz e que guarda uma certa ambigüidade. Após longo afastamento, voltaram à convivência sem nunca terem conversado sobre este episódio. O simbólico daria conta de significar este real?

A irrupção de lembranças, assim como a construção de um sonho homossexual durante o processo analítico, poderia estar indicando retorno de material recalcado, e levou-o a uma profunda crise de angústia.

Pretendendo, neste trabalho, o estudo da perversão e da angústia, vamos situar alguns conceitos.

A perversão, a partir de Freud, foi retirada da marginalidade da condição humana quando ele afirmou que a nossa sexualidade seria perversa no seu âmago. Esta constatação não impediu que, para além de uma condição constitutiva da sexualidade, não existissem também as formas clínicas diferenciadas de perversão e de atos de perversidade.

Joel Birman, no prefácio do livro de L. A. Helsinger, usou uma expressão muito pertinente: "o estilo perverso de ser". Por estilo ele incluiu o não-reconhecimento, a não-valorização, a não-existência do outro como sujeito e, muito menos, como sujeito desejante. Sabemos que as formas de intersubjetividade e de experiência da alteridade só se constituem se o sujeito for permeado pela diferença e pelo desejo, até chegar ao reconhecimento da singularidade do Outro.

Birman assinalou um parentesco essencial entre a forma de ser da perversão e a problemática do poder, que se aplica ao caso apresentado. "O exercício do poder pressupõe uma onipotência absoluta de quem a realiza e de quem a ele se submete e nele acredita"1.

É neste viés que contextualizamos a relação desse pai com seu filho, que pode nos mostrar perversidade, traços de perversão, ou até mesmo uma estrutura perversa. Como e em que espaço imaginário esse filho entrou na conformação psíquica desse casal?

Teria havido uma cumplicidade do grupo familiar que, sustentando a bandeira de "correta educação", permitiu que esse pai atuasse no filho a agressividade que permeava suas fantasias de onipotência fálica? Aquele ser, recém-colocado no circuito pulsional do casal, teria acionado toda essa agressividade contida? Não estaria se revelando aí, nesta experiência de ser pai, sua posição instável perante a castração?

Quanto mais essa criança crescia e seu desejo se evidenciava através de qualquer demanda, menos ética se fazia presente na relação paternal. É perverso todo ato que fere a ética do outro, aniquilando-o.

Esse adulto escorado pela sua posição de chefe de família, me fez lembrar a descrição dada por L. A. Helsinger: "O perverso será portanto o 'agente' de suas próprias leis, desafiando e transgredindo não só sexualmente, mas em várias outras tendências, o ideal que não seja ele mesmo"2. E cita Freud que, decepcionado com o advento da Primeira Guerra Mundial, fala da incompatibilidade entre o suposto nível cultural elevado e os atos de crueldade, brutalidade e escassa moralidade praticados naquela guerra.

O relato desse paciente, como veremos, trouxe exemplos desses momentos na sua relação familiar. Não estaria esse pai repetindo o gozo ilimitado do pai da horda primitiva, na sua potência ilimitada sobre essa criança? E ela, por sua vez, em sua fantasia, não estaria se colocando na equação gramatical freudiana: sou batido, sou amado?

Helsinger faz uma leitura semelhante: "...reagir com agressão excessiva e com uma severidade correspondente à do super-eu é também repetir um protótipo filogenético, pois o pai pré-histórico seguramente foi terrível e bem se poderia atribuí-lo, com todo direito, a mais extrema agressividade"3.

Esse ódio represado foi ainda trabalhado por Henri Rey-Flaud, no seu ensaio "Os fundamentos metapsicológicos de O mal-estar na cultura", no qual comenta o redobramento do ódio primordial, dirigido contra a impotência do Outro em reconstituir o narcisismo do sujeito, ferido pela falta primordial. Num terceiro momento ele é então desviado para o semelhante e isto constitui a matriz do ciúme. O paciente aponta, na figura masculina desse par parental, a instalação deste movimento pulsional do ciúme quando do seu nascimento.

A escritora Lya Luft no artigo "Anjos montados em porcos"4, diante das atrocidades cometidas contra prisioneiros pelo mundo afora, diz que elas não hão de ser mais cruéis do que a secreta violência exercida contra crianças, adolescentes ou mulheres em muitos lares, apenas foram mais divulgadas.

Sabemos que a angústia, elemento constante na escuta psicanalítica, recebeu a atenção de Sigmund Freud desde o início de seus estudos. Já no "Projeto para uma Psicologia Científica", 1895, ele tenta delineá-la, a princípio, como libido transformada, aqui já se esboçando uma diferenciação entre a situação traumática e as situações de perigo.

Na leitura que Jacques Lacan faz do texto freudiano "Inibições, Sintomas e Angústia", 1925, no Seminário 10 A angústia, 1962/1963, ele introduz termos como: impedimento e embaraço, emoção e perturbação, passagem ao ato e acting-out, com os quais gostaria de trabalhar esta experiência analítica.

Um tempo depois de iniciado o processo psicanalítico, o paciente chegou angustiado diante do término abrupto do namoro, pela namorada. Não se reconhecia nas descrições dele, feitas por ela para justificar seu rompimento, principalmente que ele não lhe reconhecia os desejos, seus pontos de falta.

Perfilaram-se várias namoradas com términos também abruptos diante da mostração, por iniciativa delas, de um desejo não contabilizado por ele.

Após um desses encontros desencontrados, justamente porque o objeto causa de desejo não se encontra ali onde é procurado, ele teve um sonho: "estava numa relação sexual com uma mulher, e quando ela se volta para ele, ele vê um homem".

Pânico e horror se instalaram ao constatar prazer na cena homossexual e não repulsa, como esperava ter.

A idéia de ser homossexual se instalou, o perturbava dia e noite. Lutava contra ela, mas as fantasias eróticas com homens insistiam em ser construídas.

Da inibição que a princípio se manifestou, ele desenvolveu um impedimento: tornou-se impotente. A inibição é o resultado da introdução de um outro desejo diferente daquele que a função que está inibida já satisfaz. O paciente apresentando uma incompetência - impotência para realizar a entrevista revelava um outro desejo aí interferindo, mostrando a inundação do imaginário no simbólico.

Neste ponto ocorreu-me utilizar o Seminário A Angústia, por meio do quadro esquemático que ali é desenvolvido.

 

 

Na linha da dificuldade de ação vemos a inibição, como ponto de partida, se acentuando até o embaraço. Aí é o encontro com a barra do Outro sobre o sujeito, desenvolvendo uma angústia mais leve. Nesta operação de divisão, representada pela barra, instaura-se o objeto "a" como causa.

No sentido vertical acompanhamos o movimento do quantum de afeto, indo da inibição, passando pela emoção, chegando à perturbação. Esta é o estado máximo do "fora de si". Com o mesmo enfoque, observa Maria Anita Carneiro Ribeiro, "é deixar aparecer o objeto 'a', é o sujeito sair de si no sentido de sair do seu próprio corpo enquanto sujeito e deixar aparecer algo desse objeto 'a', seja sob a forma de uma pura fúria", como foi o apresentado por esse paciente em alguns momentos, "seja pelo debate de um ataque histérico"5. No mesmo sentido, temos as colunas do sintoma e do sujeito. O sintoma desenvolvido foi um impedimento quando houve um desencontro do afeto, momento em que, citação de Lacan, "as cavilhas não se encaixaram nos buraquinhos"6.

Estar impedido, etimologicamente, quer dizer: impedicare, cair na armadilha. Uma captura narcísica. Pela interferência de algo fora da cadeia de significantes, o sujeito tomou conhecimento não da função impedida, ser potente, mas da sua divisão. Irrupção de um afeto, a angústia.

A partir do sintoma da impotência o paciente poderia ter algumas saídas. Pela captura narcísica, poderia fazer uma passagem ao ato, tirando-lhe a possibilidade de simbolização.

Pelo acting-out, "que é o que se produz sempre por um fato que vem de outro lugar que não da causa sobre a qual se acaba de agir"7, há uma tentativa de afastar a angústia iminente. Mas, esta se lhe impôs, revelando uma invasão do real no imaginário do corpo.

Lacan faz uma diferenciação entre ato, acting-out e passagem ao ato, que não encontramos em Freud. "Um ato é uma ação, digamos, na medida em que se manifesta o próprio desejo que teria sido feito para inibi-lo"8. "O ato é sempre um ato significante, que permite ao sujeito tranformar-se a posteriori. O acting-out é uma demanda de simbolização que se dirige ao outro. É um disparate destinado a evitar a angústia. E a passagem ao ato é um 'agir inconsciente' de um ato não simbolizável pelo qual o sujeito descamba para uma situação de ruptura geral, de alienação radical. Ele se identifica com o objeto 'a' excluído, rejeitado de qualquer quadro simbólico"9.

Mas, o que horrorizou o paciente não foi a cena vivida no sonho e sim o afeto, o prazer experimentado no gesto homossexual. Isto não encontrava ancoragem nos seus significantes, mas pode ser entendido na afirmação lacaniana: "A angústia é um afeto. O afeto não está recalcado, está desamarrado, segue à deriva. Nós o encontramos deslocado, louco, invertido, metabolizado, mas não recalcado. O que está recalcado são os significantes que o amarram"10.

Havia uma enunciação freqüente. "Eu sou uma criança, não sou esse adulto que você vê". Qual o sentido desta afirmação insistentemente repetida? Para onde ela apontava? Ela surgia sempre que a angústia atingia seu grau máximo.

O desejo a se anunciar pelo sonho, esse afeto desamarrado, a insistente afirmação de que ele era uma criança, nos remeteram a um momento anterior. Ele tinha razão. Não tratávamos, ali, de um adulto, mas de uma criança. "A angústia é o que não engana. Ela aparece justamente na perda de uma significação. É a manifestação de um lugar no Outro, de uma coisa outra que se manifesta como tal"11, ela "se manifesta, desde a primeira abordagem, como vinculada, de uma forma complexa, ao desejo do Outro. (...) A função angustiante do desejo do Outro está ligada ao fato de que não sei qual objeto 'a' eu sou para esse desejo"12. Seu ponto máximo é quando o sujeito funciona como o objeto "a" que tampo-na a falta no Outro.

Aqui retomamos Freud quando definiu a angústia como sinal de perigo, de perigo vital, distinto do efeito de uma situação traumática. É a percepção de que se está ligado ao Outro por alguma coisa: justamente a qualidade de se ser seu semelhante. O perigo angustiante é, ao final, de que a falta falte.

Suas certezas sobre seu lugar e função no mundo, assim como as bases, que ele considerava "claras", dos relacionamentos parentais, sociais e afetivos começaram a vacilar com o avanço do processo psicanalítico. Lacan preconiza, ainda nesse estudo, que não haveria ensino analítico se não houvesse vacilação.

À impotência se soma a diminuição do desejo sexual e ele chega a dizer que sem isto ele preferia a morte, a exemplo do relato de Freud sobre o paciente turco, atendido por um colega, que disse: "Saiba, Herr, se aquilo acabar, a vida não vale mais nada"13, relatado no Caso Signorelli.

Um dia esse paciente, ao despir-se para o banho, é capturado pela sua imagem no espelho. É invadido novamente por desejos homossexuais. A angústia se acentuou, afastou-se de amigos, dos familiares e tentou afastar-se da atual namorada que, no entanto, insistiu em ficar com ele.

Refugiou-se na religião dizendo que se for esta a sua missão no mundo, para resgatar alguma dívida, ele aceitaria a homossexualidade. Ele se renderia a ela. Seria um acting-out? Porém, esta saída não acuou sua angústia.

Tornou-se mais adoecido. Recordou episódios da infância em que o pai exercia sobre ele um abuso de autoridade. Exigia-lhe o desempenho de algumas tarefas com a perfeição de um adulto, e sempre lhe recriminava por incompetência-impotência e lhe imprimia castigos severos e brutais. Esses atos não seriam a expressão de um comportamento perverso desse adulto, objetivando a criança, anulando-a como sujeito, levando-a ao limite das suas súplicas e não atendê-las, na sua busca de um gozo ilimitado do poder? "Uma criança não tem condições de dizer não ao adulto perverso"14.

De um lugar de submissão, servidão e dejeto foi construída uma fantasia como resposta à pergunta a este grande Outro. Que quer você de mim? Que quer você em relação a esse lugar do Eu? É algo suspenso entre o desejo e a identificação narcísica. A angústia tem a mesma estrutura da fantasia, como aprendemos no fim do parágrafo inicial do Seminário A Angústia. Têm os mesmos elementos: a falta no Outro, sujeito dividido e objeto "a". Têm a mesma estrutura, mas não a mesma fórmula. Ambas são conseqüências da pergunta sobre o desejo do Outro, embora com funções diferentes.

Numa certa etapa do processo analítico uma cena é recordada: "Quando criança quebrou uma louça, machucando-se. O pai, colérico, ao mesmo tempo em que lhe lava o sangramento, batia-lhe para que aprendesse a se comportar e lhe exigia que não chorasse para que sua mãe não tomasse conhecimento do fato". Que fato? A quebra da louça ou sua cólera sobre ele? Nesse momento, reedita um pensamento: "Que seu pai desapareça! Que lhe aconteça algo que acabe com ele!". Mas de quem é esse desejo? Foi assim que ele interpretou o desejo do pai sobre ele, aniquilá-lo, sem misericórdia! Associa a isto o ciúme que ele pensa que o pai tinha dele com a mãe, razão das constantes atitudes paternas agressivas e impiedosas para com ele.

"Desapareça e acabe com ele", para uma criança, seriam equivalentes ao desejo de morte? Que coisa poderia ser tão poderosa a ponto de causar um desgosto tão grande a esse pai, que ele sucumbisse, que o aniquilasse, senão a homossexualidade do filho, seu primogênito? Esse seria um dos lados da moeda, e o outro, como ele tentou atendê-lo?

Entre os tios, chama-lhe a atenção os gêmeos, irmãos do seu pai. Metaforicamente eles representam uma moeda com duas faces. Um deles é homossexual, e é tratado com todo desdém e humilhação pelo pai do paciente. Ao outro seu pai dedica toda sua bondade e amor, e desconsidera seu comportamento desonesto, característica veementemente negada pelo pai do paciente.

Após estas considerações, voltamos ao vivido no sonho. A teoria nos alerta: um significante recalcado, um afeto desamarrado, uma ligação deslocada para uma outra representação. O afeto, originariamente ligado ao pai, foi deslocado para um parceiro sexual. Ao mesmo tempo em que sendo homossexual "lhe mataria de desgosto", ao pai, também lhe ganharia o amor, não importando seu comportamento, já que seu pai tinha um amor incondicional a um dos gêmeos, não lhe importando seu comportamento. O par gemelar lhe serve como anteparo para a ambivalência vivida com o pai: amor e ódio.

As namoradas com as quais teve episódios de angústia, como uma queda em dominó, lhes mostravam traços do pai. Elas seriam reedições desse pai infantil do qual esse filho não conseguia se desprender, afogando-se em sua captura narcísica sempre que esses objetos "a" se lhe apresentavam.

Uma fantasia de ser incompetente, incapaz, mantendo-se como o falo da mãe, e por isto mesmo, impotente, veio para encobrir a angústia diante de um desejo de morte ao pai. A esse pai agressor, que se coloca como instrumento de seu gozo, acentuando sua divisão. A esse pai imaginário que lhe rouba o lugar do sucesso e o mantém atado a um lugar de fracasso, ameaçado de morte.

O quadro do início recebeu a seguinte complementação:

 

 

No Seminário 8, A Transferência, Lacan diz que "o desejo é um remédio para a angústia", e ainda, "a angústia se produz topicamente num lugar definido por i(a), eu-ideal e também em Freud, no lugar do eu (moi) não há sinal de angústia, senão, na medida em que se refere a um objeto de desejo, objeto que perturba o eu-ideal, i(a), que se origina na imagem especular"15.

Raúl Courel também localiza a angústia segundo esses patamares. Discorre sobre dois modos dela se distribuir. Um, quanto à função do objeto, como angústia de castração, um sinal de que o desejo está próximo. E um segundo diz respeito ao ideal, à idealização da função do pai.

A angústia, por seu próprio estatuto, está nas origens do sujeito humano, me permitindo aqui uma redundância para sujeito. Ela, colocada na posição mediana entre o gozo e o desejo, não lhes faz mediações. Além do gozo e aquém do desejo, não poderia haver cura analítica a não ser a partir da atenção à angústia. "Ela designa muito provavelmente o objeto, se posso dizer, o mais profundo, o objeto último, a coisa"16. Sua estranha ambigüidade aponta o caracter de não se dirigir a um objeto, mas não é sem objeto. Este lhe é causa, é anterior a qualquer aparecimento da angústia, porque ele advém justamente no momento do reconhecimento do desejo do Outro, da sua falta, concomitante à instalação da divisão do sujeito. Por isto ela não se dirige a um objeto, ela é causada por um objeto, inicial. A angústia aparece antes de toda articulação como tal da demanda do Outro.

Lacan inclui no estudo sobre a angústia a cessão do objeto e informa que o seu primeiro momento está no trauma do nascimento. É o momento da emergência no mundo, daquele que será o sujeito.

Cessão do objeto pode ser compreendida num duplo sentido: do ceder e do corte. É quando o sujeito cede, se entrega à situação, e, o objeto "a" aparece no lugar do sujeito. Numa confrontação radical traumática, o sujeito cede à situação. Não é que ele vacile, nem que se submeta, mas ele faz uma cessão. O desmame é um segundo momento de cessão do objeto. O seio não lhe falta fisiologicamente, a criança cede esse seio, que é como uma parte de si mesma. Os jogos infantis de prender e soltar o objeto são um exercício do se dar conta de si mesmo, como objeto. É deparar-se com o corte, irremediável.

Para terminar, transcrevo uma definição da angústia dada por Lacan em 1956-57, no Seminário 4, A Relação de Objeto. "... a angústia por mais evanescente que seja aparece cada vez que o sujeito, por mais insensivelmente que isso ocorra, está desligado de sua existência, e onde, por pouco que seja, ele se percebe como estando a ponto de ser retomado em algo, que vocês poderão chamar, segundo as ocasiões, imagem do outro, tentação, em suma, esse momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está e um tempo em que ele vai ver algo no qual não poderá jamais se reconhecer. É isso a angústia"17.

 

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1 BIRMAN, Joel. A racionalidade do tempo nos impasses do sujeito, p. 11-26. In O tempo do gozo e a gozação, de HELSINGER, Luis Alberto, 1996, p. 19.
2 HELSINGER, Luis Alberto. O tempo do gozo e a gozação, 1996, p. 76.
3 Idem, p. 101.
4 LUFT, Lya. Anjos montados em porcos. Revista Veja. 19/maio/2004, p. 20.
5 RIBEIRO, Maria Anita Carneiro. Seminário Estruturas Clínicas e os Matemas - A angústia. 1º semestre 2003, p. 1, Lição XXIV.
6 LACAN, Jacques. Seminário 10. A angústia. Lição I. 1962-1963, p. 22, "Publicação do Centro de Estudos Freudianos do Recife".
7 Idem. Lição XXIV, p. 365.
8 Idem. Lição XXIV, p 361.
9 ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise, 1997.
10 LACAN, Jacques. Seminário 10, a angústia, lição I (1962-1963), p. 22.
11 Idem. Lição XXIII, p. 340.
12 Idem. Lição XXV, p. 367.
13 FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana, 1901, ESB v. VI, p. 21.
14 JORGE, Marco Antonio Coutinho. Seminário SRI e os Quatro Conceitos Fundamentais, desenvolvido no CPMG, 2003/04. (Anotações pessoais).
15 COUREL, Raúl. Psicoanálisis en el campo del goce, I994, p. 96. Los Ensayos.
16 LACAN, Jacques. Seminário 10, a angústia, Lição XXIV, p. 354 (1963-1963).
17 Idem. O seminário, livro 4: a relação de objeto. (1956-1957), p. 108. Transcrição livre.

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