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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

A "técnica" da transgressão e a transgressão da "técnica"

 

Roberto de Souza Bittencourt

Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção RJ

 

 


RESUMO

Demonstra que a técnica se sustentará na manutenção de uma posição ética trespassada pela transgressão. Utiliza considerações retiradas da física quântica, entre outras, e a presença da pulsão de morte na transmutação da ordem para a desordem, propiciadora da reconstrução, na presença da emergência do aleatório e do acaso organizador.

Palavras-chave: Inconsciente, Singularidade, Transgressão, Caos, Ética, "Presença-ausência", Indeterminação, Aleatoriedade, Pulsão de morte.


ABSTRACT

The Author intends to demonstrate that technique will be sustainded by an ethical attitude trespassed by trangression. He considers concepts from the modern physics, among others, as well as the concept of death pulse in the passage from order to disorder which nurtures reconstruction, in the presence of what is randomly revealed and the organizing unexpected.

Keywords: Unconscious, Singularity, Transgression, Chaos, Ethics, "Presence-absence", Indetermination, Randomly, Death pulse.


 

 

Não é a vida que é mortal, a morte é que é vital.
Santo Agostinho

 

Delicada a questão. Polêmico o seu tratamento.

No Gênesis está escrito que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e proibiu-o de comer do fruto da árvore do bem e do mal, que lhe daria o conhecimento de quanto mal acarreta desobedecer-lhe e do grande bem que perde aquele que transgride, quando "se abrirão vossos olhos e vós sereis como uns deuses conhecendo o bem e o mal" (Gênesis, 3, 5). A sabedoria era negada ao homem Adão que para alcançá-la transgrediu pela voz da tentação. Mas, de que homem estamos falando? Daquele ameaçado por Deus de perder a imortalidade, se transgredisse, ou do que vive após tal perda exatamente porque transgrediu? Não se pode negar que a violação do interdito é constitutiva do homem, de vez que sem ela o gozo fica restrito a Deus, rompendo-se a afirmação de que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Ou foi o homem que criou Deus à sua imagem e semelhança para garantir um pai eterno que mediasse seus ímpetos transgressores?

Ao reconhecermos que o inconsciente é marcado pelo saber-não-sabido, esse inconsciente é necessariamente violador e o ato transgressivo é que enseja o despertar do homem no reconhecimento do recalcado. É o homem do livre-arbítrio possível que se autodetermina.

"O homem que pensa é um animal degenerado", dizia Rousseau ao escrever o Discurso sobre a Desigualdade entre os Homens. Entendemos que, ao pensar, foi corrompido pela transgressão o animal nele porque só pensando ele é humano na procura de sua verdade. A vida do intelecto é uma preciosa busca da sabedoria, um extraordinário encontro do homem com suas potencialidades, com o seu devir humano de conquista do bem-estar possível (sofrimento comum?), superando a miséria neurótica pela psicanálise, ao libertar o recalcado que o mantém afastado de sua verdade pela impossibilidade de elaborá-la. Como o homem também se constitui pelo recalque, pela incidência do limite que lhe é imposto desde cedo e que o torna civilizado e obediente à ordem por ele mesmo criada, é principalmente através da transgressão que a liberdade, além do aceitável pela ordem instituída, manifesta-se, numa tentativa permanente de encontrar um equilíbrio de forças. Muitas variáveis inclinam o homem ora para a desordem, violadora da ordem, ora para a ordem, violadora da desordem, num movimento pendular e instável. A passagem pelo ponto de equilíbrio é fugaz, mas constante se torna o desejo de expor sua singularidade, afirmando-se o sujeito na constelação de outros sujeitos e possibilitando o surgimento das diferenças e semelhanças que, mutuamente, nos afastam e nos aproximam.

Esse homem, produto da ordem imposta combinada com o potencial transgressivo, viceja na obediência/desobediência que o sustenta, incessantemente motivado pelo desejo de romper barreiras, de ir além de todos os limites vislumbrados, de protestar insatisfeito com a realidade na qual está mergulhado na busca de uma compreensão mais ampla de si mesmo, dos seus sentimentos e desejos, de sua ambigüidade, das múltiplas facetas que se expressam nas flutuações de sua instabilidade, de seu inconformismo criador, no devir que constitui a vida, já que as coisas não são, elas estão, para sempre, transformando-se, transfigurando-se com a intervenção da transgressão. Nada é simplesmente o que é e o ponto em que isto acontece é o que chamamos morte.

Sobre os alicerces da transgressão foi construída e tem se movido a psicanálise em ruptura permanente com o estabelecido até por ela mesma, numa trajetória renovável e renovada que a mantém viva. Suas vertentes teórico-clínicas, fundamentadas tradicionalmente nos conceitos de inconsciente, sexualidade infantil e recalque, violaram o padrão até então vigente. O saber psicanalítico, subversivo, marginal, sem teto nem chão confortáveis, dá-se pelo seu inacabamento.

É característica do pensamento ocidental o anseio de interpretar, de tudo traduzir, intervindo, a partir dos próprios referenciais, na crença do homem de haver apreendido o ser do objeto da interpretação. O que efetiva-mente se torna possível de acontecer é uma adequação de fragmentos de uma estrutura em relação à outra, de modo a se perder o sentido efetivo na estrutura original. A suposta compreensão reduz o incômodo real e, na ânsia do conhecimento, somos conduzidos à destruição dos objetos, seguida de sua recriação possível, à semelhança da desconstrução/construção analítica. A interpretação psicanalítica já é, por si mesma, a expressão de uma violação ao transgredir o manifesto pelo seu olhar, pela sua escuta do latente - a verdade do sujeito, ao atentar para a escuta do não dito. Só desta forma o trabalho terapêutico pode se dar na interpretação dos sonhos, dos atos falhos, nas associações livres e nos vínculos e respostas transferenciais.

De 1911 a 1915 Freud publicou seis trabalhos sobre questões da técnica psicanalítica, discutindo seus contextos teórico-clínicos e propondo normas e advertências. Curiosamente, no entanto, Freud não publicou nenhum texto consistente e amplo sobre regras da técnica psicanalítica de aplicação clínica. Ao invés disto, em carta a Ferenczi de 1928, Freud diz textualmente: "Recomendações sobre a técnica, que escrevi há muito tempo, era essencialmente de natureza negativa" (Figueiredo & Coelho Jr. apud Freud, 2000, p. 12) e continua: "tudo aquilo de positivo que alguém deveria fazer deixei ao tato [...] infelizmente o resultado foi que os analistas obedientes não perceberam a elasticidade das regras que propus e se submeteram a elas como se fossem tabus" (idem, p. 15). Privilegiaram as regras colocando o analisando em segundo plano.

Os dogmas, assim como as técnicas, estão a serviço do recalque, equivalendo à proibição de sentir e de pensar livremente. Pensar não é sair da caverna nem muito menos substituir a incerteza das sombras pelos contornos nítidos das próprias coisas. É, ao contrário, entrar no labirinto, aceitar perder-se nas galerias que escavamos, andando em espirais até que este movimento abra fendas por onde se possa passar para a posição do novo, sempre recriado, cuja instabilidade é gerada pela constante interrogação sobre sua origem. O instituído que se apresenta como tal de maneira definitiva, à semelhança de alguém sustentado pela experiência num mundo dinâmico, mutável e globalizado como o atual, configura-se como força de alienação. Enquanto a ordem sociocultural, norteada pela educação, pelo Estado e pela religião, pretende homogeneizar, uniformizar e conformar o homem, a psicanálise, cuja proposta subversiva se volta para a emergência máxima possível da singularidade, é transgressiva, afrontando as questões da ordem repressora. O neurótico nada mais é do que um mal-educado, quando se submete ou quando se rebela sem a possibilidade de saber de si, o que é indispensável para perceber onde está o limite da imposição moral, ora a serviço da contenção da vida, ora de sua expansão. A turbulência supereuística que a transgressão provoca pode estar movida pela tentativa de fazer emergir o singular, até então impedido de afluir.

Tato e elasticidade, sinônimos de timing e citados anteriormente, evadem-se de qualquer norma posta a priori, visando propiciar a ousadia necessariamente transgressora. A presença da criatividade leva à construção pelo analista de seu método de trabalho em cada caso e em cada momento do processo de cura analítica. Há inúmeros testemunhos de que a chamada técnica freudiana era muito rica, vivaz, flexível, não ortodoxa, engajada e expressiva nas relações terapêuticas que estabelecia. Não havia, na abordagem clínica de Freud, engessamento de procedimentos, constrangedoramente uniformizadores, com o conseqüente distanciamento do analista do analisando no setting e fora dele, desprezando as experiências versáteis de cura analítica na sua característica de singularidade e especificidade multivariada. Os limites do engajamento serão determinados pela evolução do processo analítico trespassado pela transgressão e mantida a ética, que busca a verdade do sujeito e não cria padrões de verdade para ele.

A proposta freudiana é a de que se ofereça um espaço, um tempo e um suporte para as emergências psíquicas na forma de associações livres, recordações e repetições, vínculos e respostas transferenciais, canalizadas pela atenção flutuante, esta última enraizada no lugar da conjugação da indiferença com a solicitude inespecífica, como ao acaso, indispensável para o registro do aparentemente irrelevante e daquilo que se escuta dele, para a recriação do novo por elaborações, desligamentos e novas ligações de representações.

Numa ampliação de sua proposta, Freud seguramente defende uma entrega do analista ao seu próprio inconsciente, ao supor que a sua implicação pessoal no processo de cura - em termos afetivos e intelectuais - era uma necessidade, revelada pela relativa perda de controle de si, tirando proveito disto para suas intervenções. Daí a proposta freudiana de reciclagem da análise do analista a períodos mais ou menos regulares objetivando novas elaborações a partir da ampliação da possibilidade de saber o seu saber-não-sabido.

Conceber o aqui e agora multideterminado em que se sobrepõem, se interpenetram, se confundem, se ocultam e se revelam tempos, lugares e personagens variados, em termos de um imbricamento do diálogo transferencial, leva a questão de técnica no setting para o patamar da ética, lastreada pelo amor de transferência que confere ao analista um poder de intervir em momentos precisos ensejando operações de desligamento e de reinvestimento libidinal. A ética deve ser mantida, enquanto as ditas técnicas podem e devem variar ilimitadamente. Instaurado o clima transferencial, produz-se um campo transubjetivo de ecos e ressonâncias - um terceiro analítico no dizer de Ogden (1996) - no qual ambos os protagonistas habitam e a partir do qual falam preservando cada qual uma reserva de investimento libidinal de maneira que cada um construa e cultive suas reservas para nutrir o campo transubjetivo do entre, no entrelaçamento das polaridades, onde se instala a riqueza da intervenção transgressora do analista. Este campo/local é fugídio, articulado de maneira diferente a cada momento, não instituído como lugar, mas como latência, mantendo o que lhe é próprio, ou seja, a mobilidade constante, a tensão produtiva presente no entrejogo das polaridades suplementares que constituem a linguagem expressa. É o espaço onde ocorre o movimento e o entre-cruzamento de linguagens, afetos e desejos inconscientes.

Quando o campo se fecha em demasia as figuras se tornam repetitivas. Um segundo olhar, assim chamado por Baranger para caracterizar um olhar de reserva, de fora do campo, que fala do campo enquanto tal, pode conduzir à reabertura do processo cujo fechamento foi ocasionado pela resistência do analista em face de um abuso de implicação manifestado, por vezes, por interpretações que se confundem com o desejo do analista de preservar o status quo da relação ou por intervenções prepotentes, absolutistas e pretensiosamente capazes de prover explicações para todos os enigmas. Uma fala que parte de uma crença de que há um sujeito independente de um objeto, uma verdade que emana de uma consciência absoluta e que se afirma como explicativa, na certeza de possuir a apreensão total de um fenômeno, reduzido a um único sentido. Neste momento, ao ser explicativo, o analista perde o poder da ambigüidade da linguagem e dos seus paradoxos, passando a rotular, a qualificar os fenômenos. O que passa a ser desejado, nesta transgressão do analista, é a não mudança do presentâneo. A ética foi maculada. Ao reinstalar-se a linguagem na ambigüidade própria da relação analítica, onde algo se mostra e algo se oculta, onde a fala amplia o horizonte de possibilidades de um movimento ao invés de limitá-lo a uma só direção. Reabre-se o aqui e agora para a sua multivocidade constitutiva pois é dela que se faz a temporalidade da cura, na sucessão dos instantes de amor.

A meta se mantém sempre a mesma: criar e preservar reservas de si para, numa presença reservada e implicada e nas ausências, instalarem-se os espaços desobstruídos, propícios à ação da criatividade no processo de cura, liberadas as questões da técnica de qualquer sabor/saber formalista, disciplinador e supereuístico. Portanto, a técnica, ao invés de se sustentar num código, se sustentará na manutenção de uma posição, de um lugar onde o manejo de uma sutil dialética de presença e ausência conduz o processo terapêutico. A interrupção dessa a dialética pela invasão transgressora do campo transubjetivo por uma presença sem ausência ou pelo abandono do campo por uma ausência sem presença configura um atravessamento danoso, prejudicial ao processo. O analista, tendo saído do seu lugar, interrompeu a análise e neste caso a psicanálise é que foi transgredida.

A tarefa árdua e quase impossível que cabe ao analista é a de ser/estar e não ser/estar ao mesmo tempo. É a intimização1 (intimidade analítica constituída de implicação e reserva) sem intimidade, que desconhece e destrói as reservas do analista e do analisando. É a ética da acolhida serena do que sucede e pode surpreender. O que pode ser oferecido ao analisando pelo analista é a sua progressiva ausência. Tudo que fazemos é estar lá a fim de não estar. Tal ausência progressiva se constrói na e pela presença intermitente e, mais ainda, na presença reservada que em tudo se assemelha à mãe suficientemente boa, ou melhor, aquela que "dá para o gasto" descrita por Winnicott, que seria aquela cuja presença, sustentando uma ausência progressiva, é a condição da emergência da vida psíquica para o outro. É preciso deixar que as coisas aconteçam a seu tempo e a seu modo, renunciando ao controle e às previsões, insistindo, sustentando e suportando um processo de cura ao longo das turbulências de seu percurso, ficando contestada para o analista a impaciência, o excesso de determinação terapêutica, o açodamento na formulação e administração das interpretações, a intervenção que visa provocar, com antecipação, recordações, as posturas sedutoras, zombeteiras e depreciativas, todas transgressões visivelmente violentadoras da relação analítica, então interrompida.

Somos contrários às normas disciplinadoras que ainda hoje permeiam parte dos discursos e práticas psicanalíticos. Como foco central da análise reconhecemos a alteridade, posição ética subjacente a todos os procedimentos.

Na contemporaneidade observamos uma crise de paradigmas cuja origem remonta ao questionamento continuado de pressupostos universalistas, estruturalistas e deterministas que detinham a hegemonia na explicação do humano.

O culto à certeza absoluta, baseado no princípio da não-contradição, dominado pela cultura da causalidade, da analiticidade e do determinismo, supunha a existência de causas determinadas produtoras de uma ação. O reducionismo presidia o estabelecimento da verdade e da ordem, mantendo o pensamento imune à contradição e preservado uno. Uma ordem sem interlocução. O indeterminismo em ciência, coroado pelo princípio da incerteza de Heisenberg, nos leva a considerar a impossibilidade de determinar as condições iniciais como garantia de acesso à desejada certeza das condições finais, ficando derruído o edifício das certezas definitivas e acabadas.

Previsibilidade, estabilidade, determinismo e racionalidade são ilusórios, até certo ponto, no nível macro. Tais pressupostos ficaram fortemente abalados desde a emergência do aleatório. O reducionismo redundou em fracasso e foi definitivamente banido assim como o respectivo vínculo da não-contradição, ratificando e convalidando a teoria psicanalítica desde o momento em que foi constatado que, no domínio dos constituintes da matéria, dois bósons podem ocupar ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço. O fim das certezas nos mostra que a direção do futuro para o passado passa a não reproduzir exatamente a direção do passado para o futuro, como acontece com a memória encobridora.

Remontando à invenção da psicanálise, sabemos que ao constructo freudiano originário, de um todo ordenado de causalidade e determinismo, que se opunha ao caos, um cosmo subjetivo constituído de uma ordem com suas cadeias e leis, o próprio Freud (1920) nos fala que, além desta ordem, há o que não está no lugar da ordem, que não é fruto do recalque, que não pertence ao inconsciente, que em suma não é linguagem, o que está para além de todo e qualquer princípio, qualquer organização, qualquer lei. É um além da representação que pode ser entendido a partir da introdução do conceito de pulsão de morte.

Ao princípio da ordem, do simples e do linear, porque pré-determinado, entrelaça-se o princípio do caos, da desordem, o princípio do não princípio, a flutuação das pulsões ao acaso. Aquilo que não tem lei, que não pode ser redutível às séries associativas causais, introduz neste universo a complexidade, iniciando-se uma era de dúvidas e descrédito com relação ao racionalismo fechado em si.

O reducionismo sempre mitificou a ordem, a ausência de contradição. A pressuposição da vigência de desordens ou caos, intermesclando-se com ordens e organizações, abalou tal posição. Com uma diferença fundamental; não se trata aqui de ordens e de desordens fechadas, mas de ordens e de desordens se interpenetrando mutuamente, ou se comutando entre si iterativamente. Ordens e desordens, como as faces não mutuamente excludentes de realidades; sistemas determinísticos lineares podendo manifestar um comportamento inteiramente caótico, impossibilitando previsões de futuro, bem como articulações seguras com o passado, devido a presença do aleatório. Caos é o impensável, enquanto ordem nada mais é do que o fugaz sonho do homem. "A matéria no equilíbrio é cega; nas situações de não-equilíbrio ela começa a enxergar" (Prygogine & Stengers, 1984).

O conceito de pulsão de morte correspondendo a uma força de carência, a uma ação do nada, como uma bomba de vácuo ou um buraco negro, abre a pulsão de vida ao devir que se determina no movimento mesmo em que vai existindo, provocando a inserção de uma nova ordenação instável. Sendo a satisfação libidinal polimorfa, é própria do homem, resultando da série complementar. Nesta vige o aleatório, seja na carga genética, na sua história pessoal e no ambiente em que está circunscrito o homem, o que impõe ser entendido dentro da teoria da complexidade. A pulsão libidinal funciona com a desordem servindo-se dela, tolerando-a e combatendo-a, simultaneamente, numa relação ao mesmo tempo antagonista, concorrente e complementar. A dicotomia da pulsão representa uma situação sensível do organismo, a angústia. Esta divisão da pulsão nos deixa diante de um panorama caótico. Apesar dos esforços - princípio da constância - para equalizar e ordenar este quadro inordenável e conseqüentemente não passível de equalização, a vida humana se encaminha para ser vivida em um campo de radical instabilidade, turbulência, probabilidade e acaso organizador. E é a partir do reconhecimento destas condições que exercemos o nosso trabalho, instável e turbulento por excelência e sujeito à utilização de variados parâmetros aleatórios no aqui e agora transgressor, na ausência de um modelo e de uma técnica rigorosamente predeterminada, isto é, num sentido caótico assim definido como um comportamento imprevisível e generativo de certos sistemas, especialmente vivos, que proporcionam novas e diferentes ordenações. No setting psicanalítico não pode haver uma técnica fechada desde que não há teoria no e do singular. Os universais psicanalíticos são vividos segundo a série complementar de cada um e o que a psicanálise visa é o núcleo do ser que a civilização descaracteriza. Lidamos com singularidades e fortuidades, características estranhas ao ideário social de harmonia normativa.

Ninguém duvida que a sociedade civilizada representa uma camisa-de-força para o homem que só tem duas maneiras de rompê-la: pelo crime e pela arte, transgressões aparentemente antagônicas que, no entanto, convergem e completam-se na prática psicanalítica. Nela, metaforicamente, o crime comporta todo o aparato de promoção da desconstrução do analisando pela transgressão violadora do seu discurso, no desejo privilegiado do analista de que o analisando, ao analisar, incline-se para o vazio, no sentido do vácuo quântico definido como espaço repleto de partículas e antipartículas virtuais, que aparecem e desaparecem em frações de milionésimos de segundo. Tudo sai e tudo volta ao vácuo quântico, pois ele é a fonte originária de tudo que existe e possa existir na ordem do ser que conhecemos. Com episódios de caos presentâneos, ação da pulsão de morte, pura indeterminação que reabilita a desordem e, através do acaso organizador, o analisando se vê diante da possibilidade do tornar-se uma nova organização, mantida a instabilidade. A arte se manifesta no ato de proceder a análise sem o pré-concebido e determinado no aqui e agora pluralista da emergência do ato analítico, na criação e recriação em que a objetividade não é produzida e sim o seu aspecto subjetivo de vez que a objetividade não é um produto científico auto-evidente. O simples fica excluído desse encontro pela complexidade de cada qual dos presentes na singularidade única do encontro, jamais repetido. A arte é capaz de atender à necessidade do imanente e à aspiração do transcendente. A transcendência está no amor e na transgressão. "O pensamento e a linguagem são para o artista instrumentos de uma arte", disse Oscar Wilde (Guaspari apud Oscar Wilde, 2000, p. 18).

Como o inconsciente defende o todo, evidenciando o desejo de totalidade no fruir humano pela via do narcisismo, o caos significa uma abertura permanente às possibilidades intrínsecas do homem de poder alterar, criando e recriando seu ser, de vez que o inconsciente mantém no ser o não-ser. Assim, ao invés de termos apenas ordem, temos também o caos que é, na verdade, a própria condição da tarefa analítica, fundada na pulsão de morte. Esse caos, resíduo do que não pode ser ordenável, penetrando na ordem, disjuntando-a e desintegrando-a é que vai dar origem à criação na presença de Eros. O ato psicanalítico ou ato de criação é uma transgressão. A relação analítica, sustentada pelo lugar ocupado pelo analista, na sua postura ética, não é transgressora. A transgressão se dá quando o analista sai de seu lugar interrompendo o processo de cura. Neste caso, a psicanálise é que foi transgredida.

 

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1 Neologismo criado por Katthrin Kemper.

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