SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número27A "técnica" da transgressão e a transgressão da "técnica" índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.24 Belo Horizonte ago. 2004

 

 

Os im-passes na instituição psicanalítica

 

Viviane Gambogi Cardoso

Grupo de Estudos Psicanalíticos (Grep)

 

 


RESUMO

Aborda o tema da transmissão da psicanálise e formação do analista, o qual tem sido intensamente debatido nas comunidades psicanalíticas sobretudo a partir das discussões impostas pelas tentativas de regulamentação da psicanálise. A partir do texto de Lacan ³Proposição de 9 de Outubro de 1967², inicia-se uma discussão sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. Aborda-se a questão do passe, cuja finalidade foi teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise. Além disso, aponta-se a substituição do rigor psicanalítico pelas regras, as quais somente afastam a psicanálise de seus princípios.

Palavras-chave: Transmissão, Formação, Passe, Final-de-análise, Rigor, Rigidez intensão, Extensão, Real.


ASTRACT

The author approaches the subject of the transmission of psychoanalysis and the analyst formation, which has been intensely debated in the psychoanalytic communities, especially from the discussions imposed for the psychoanalysis regulation attempts. From the text of Lacan³ Proposition of October 9, 1967², a discussion about the structure of a psychoanalytic institution and its impasses has had its start. The question of the pass is approached, which purpose was to theorize the emergence of an analyst in the logic of the end of analysis. Moreover, the substitution of the psychoanalytic severity for the rules is pointed out, which only move the psychoanalysis away from its principles.

Keywords: Transmission, Formation, Pass, End-of-analysis, Rigor, Rigid intensive, Extensive real.


 

 

Este trabalho é produto de um estudo em cartel sobre o tema da transmissão da psicanálise e formação do analista, o qual tem sido intensamente debatido nas comunidades psicanalíticas a partir das discussões impostas pelas tentativas de regulamentação da profissão de psicanalista.

O texto que norteia o trabalho desse cartel é a "Proposição de 9 de Outubro de 1967" de Lacan, em suas duas versões, cujo teor nos faz pensar sobre a estrutura de uma instituição psicanalítica e seus impasses. O passe foi aí proposto com a finalidade de teorizar sobre o surgimento de um analista na lógica do final de análise, o qual, após Freud, não havia sido tratado com o devido rigor. No lugar desse rigor teórico, criaram-se regras cada vez mais rígidas, padrões preestabelecidos, que longe de fazerem surgir o sujeito do inconsciente o faziam sumir, ou melhor, consumir, consumir tempo, dinheiro... Com a padronização da análise e a burocratização da instituição, poupa-se o trabalho de lidar com o real.

Vera Polo, em seu texto "Alguns apontamentos sobre a relação formação-escola", distingue, a partir de Lacan, duas maneiras de conceber esse real: a primeira, o equivaleria ao incurável do sintoma (o que se extrai da análise - o sinthome); a segunda, o definiria como o objeto a, o mais-de-gozar que não faz laço social. Portanto, estamos diante de um "osso duro de roer", que muitas vezes é substituído por um "filé" para facilitar o trabalho, ou melhor, para não dar trabalho. O resultado disso é uma estagnação e cristalização desses padrões e das posições instituídas, elidindo qualquer fundamentação ética. Lacan, na "Nota Italiana", diz que o final de análise é marcado por um saber no real, que "não é de modo algum fácil. Pois é preciso inventá-lo" (p.53), ou seja, fazer aí algo com. Sabemos que a verdade é não-toda, sempre resta algo sobre o qual não se pode dizer, sendo justamente com esse indizível que vamos lidar no final de uma análise, senão cairemos em uma infinita cadeia que nos levará a uma análise infinita. No final, o que resta é o ato.

Em sua Proposição, Lacan parte do seguinte princípio: "o analista se autoriza por si mesmo". O que se extrai de uma análise é um analista. O final da análise é marcado por essa passagem de analisante a analista. A Escola será testemunha dessa garantia não só mediante seu ensinamento, mas também por meio da instauração de uma "comunidade de experiência". A psicanálise tomada em intensão deverá ser verificada pela Escola em sua função de extensão, ou seja, de transmissão. Lacan propõe então o passe na tentativa de fazer uma mostração de que daquela análise se retirou um analista. Assim, não se exclui a garantia da Escola, porém ele diz que não é com essa garantia que o analista opera.

O analista advindo dessa passagem é a queda, o dejeto, mas não qualquer um. Daí ser somente o analista, não qualquer um, que se autoriza por si mesmo. Para tanto, não basta se saber dejeto para o outro, há que se entusiasmar com a transmissão. Lacan, na "Nota Italiana", diz ainda que se não houver entusiasmo, "...pode ser que tenha havido análise, mas analista, não há nenhuma possibilidade" (p.52). Assim, tornar-se analista é se dispor à transmissão com todos os seus percalços, dentro ou fora de uma instituição psicanalítica.

E quanto ao ensino da psicanálise? Pode-se pressupor a existência de um enodamento entre o ensino e a transmissão representados no círculo de Euler. A zona de interseção entre estes dois campos, criada a partir desse nó, aponta para uma estrutura de corte. É dessa estrutura que se extrai o estilo, com o qual o analista opera e pode inventar, ir além da cola, da identificação com os ideais. A Escola de psicanálise encampa esses dois registros, do ensino e da transmissão, pois ela apresenta uma parte formal, de ficção, e outra real, de pura falta, partes que se mesclam para deixar cair o objeto a, objeto causa de desejo.

Segundo Lacan, o ensino da psicanálise não pode ser um saber prédigerido. E faz a seguinte pergunta em "Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder": "Como ensinar aquilo que a psicanálise nos ensina?" Marco Antônio Coutinho Jorge, em seu artigo "Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica", comenta que a afirmação contida nessa pergunta é a de que há um ensino que se passa no âmbito da experiência psicanalítica, o que levou Lacan a dizer que toda análise é didática. Assim, se o ensino também se dá aí, há que se levar em conta a transferência e, conseqüentemente, o sujeito suposto saber que a concebe. Freud diz que o que se aprende na transferência jamais se esquece.

Na Proposição, em sua primeira versão, encontramos uma longa explanação sobre o surgimento do sujeito suposto saber. A implicação de um significante a outro qualquer no matema da transferência tem como efeito o sujeito. Assim, o sujeito é o significado da pura relação significante, ou seja, ele está aí suposto sob a barra (sub-posto). O saber também não é menos suposto que o sujeito e representa a sua própria cadeia inconsciente.

 

 

O analista ocupa uma função ternária com a introdução desse significante qualquer. O saber sobre o inconsciente implica um empreendimento do analisante. Ao analista cabe colocar-se como puro desejo de saber. Ele não pode se identificar com o sujeito suposto saber. O lugar do não-saber é central, pois permite o deslizamento da cadeia de significantes e torna possível a emergência do saber do Outro. É com o não-saber que o analista opera.

No final de análise, o analisante se sabe pura falta e puro objeto. Com o passe, Lacan quer provar se realmente surgiu o desejo do analista, ou seja, se no momento da destituição subjetiva "advém o desejo que permite ocupar o lugar do desser, justamente por querer de novo operar o que implica de separação (.....) o agalma" (p.15). Ele tenta romper com a hierarquia das posições preestabelecidas, questionando a passagem de analisante a analista. Foi uma maneira que encontrou para lidar com o real do final de análise e sua operação na instituição. Porém, o passe do inominável acaba muitas vezes por se confundir com o passe da nomeação. O AE, assim denominado aquele que fez o passe, se equivaleria ao S(A barrado), porém se a nomeação prevalecer no passe, se não houver o passe proposto, este poderá retroceder ao I(A). Foi o mesmo que sucedeu com os analistas da IPA que, na ânsia de seguir cegamente os passos de Freud, colaram no pai ideal. Lacan dissolveu o passe, e com isso nos "passou" um impasse que continua até hoje rondando os porões da psicanálise.

 

Bibliografia

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 937p.        [ Links ]

LACAN, J. Nota Italiana, p.50-53. In: Documentos para uma Escola II- Lacan e o Passe. Publ. da Letra Freudiana - Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano XIV, n.0'.        [ Links ]

LACAN, J. Proposição de 9 de Outubro de 1967 - 1a versão, p.7-19. In: Documentos para uma Escola II- Lacan e o Passe. Publ. da Letra Freudiana - Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano XIV, n.0'.         [ Links ]

LACAN, J. Proposição de 9 de Outubro de 1967 - Proposição sobre o psicanalista da Escola, p. 29-42. In: Documentos para uma Escola- Publ. da Letra Freudiana- Escola, Psicanálise e Transmissão, Rio de Janeiro, ano1, n.0.        [ Links ]

JORGE, M. A. C. Jacques Lacan e a estrutura da formação psicanalítica. (inédito)         [ Links ]

POLO, V. Alguns apontamentos sobre a relação formação-Escola. Belo Horizonte, abr. 2002.         [ Links ]

Creative Commons License