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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.29 Belo Horizonte set. 2006

 

CONVIDADO DO CPP

 

Os discursos éticos de Freud

 

Freud´s ethical discourses

 

 

Vincenzo Di Matteo

Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernanbuco – UFPE. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende rastrear, no epistolário de Freud e em textos significativos de sua obra, as considerações sobre o complexo fenômeno moral; assinalar as inflexões desse discurso ético que, fundamentalmente, correspondem às várias reformulações de sua metapsicologia; finalizar com algumas conclusões que os textos analisados podem legitimar.

Palavras-chave: Moral, Ética, Cultura, Psicanálise.


ABSTRACT

The article intends to trace, in Freud´s correspondence and significative texts of his work, considerations about the complex moral phenomenon; sign up the inflexions of this ethic speech which, fundamentally, corresponds to the various reformulations of his metapsychology; finalize with some conclusions that the analyzed texts may legitimate.

Keywords: Moral, Ethic, Culture, Psychoanalysis.


 

 

O título no plural se justifica por duas razões fundamentais. A primeira decorre do fato que existem ressonâncias éticas diversas nas várias psicanálises que surgiram a partir do freudismo; a segunda, que é possível assinalar algumas inflexões também no próprio discurso ético freudiano e que – grosso modo - correspondem às várias reformulações de sua metapsicologia.

“Se sempre voltamos a Freud” – escreve Lacan (1988, p.51) – “é porque ele partiu de uma intuição inicial, central, que é de ordem ética”. É essa problemática que pretendo rastrear no epistolário de Freud e em alguns textos mais significativos de sua obra. Após uma rápida explicitação dos termos-chave, procedo à reconstrução genética dos discursos éticos de Freud.

A razão que nos leva e retomá-los é o novo quadro cultural em que vivemos, marcado pelo desencanto com o racionalismo otimista da ilustração, pelo luto decorrente da morte da utopia igualitária, pela forte ambivalência diante do fenômeno da globalização. A despeito de um provável ou proclamado envelhecimento da psicanálise freudiana (Marcuse, 1970), é necessário ou pelo menos conveniente voltarmos aos mitos trágicos de Édipo, Narciso, Eros, Ananke e Thanatos, assimilar este saber trágico da psicanálise “para se atingir o limiar de uma nova Ética, que renunciaríamos a derivar da obra de Freud por uma inferência imediata, mas que seria longamente preparada pela instrução fundamentalmente não ética da psicanálise” (Ricoeur, 1978. p. 136).

 

I. As Palavras e as Coisas: Uma Explicitação dos Termos-Chave - Ética ou Moral?

É difícil encontrar um consenso entre os próprios especialistas sobre o referente a que remetem essas duas palavras, uma de origem grega (ethos) e outra latina (mos). Freud não chega em seus escritos a tematizar uma eventual diferenças entre os dois termos. Talvez, pragmaticamente, assim como ele procedeu, em sua época, com os termos civilização e cultura (Freud, 1927, p.16), pudéssemos menosprezar as diferenças semânticas e tomar os dois termos como sinônimos. De fato, tanto a palavra ética quanto o termo moral dizem respeito às tentativas históricas – sempre precárias e provisórias – que as várias culturas empreendem para regular especialmente as relações sociais, visando uma vida boa e justa, tanto para os indivíduos como para a comunidade em seu todo. Todavia, se admitirmos que a palavra ética evoca a necessidade humana da Lei, de recriar no mundo da cultura uma regularidade instituída para viabilizar a convivência humana, sem que isso implique ser fiadora dos códigos morais que se cristalizam numa determinada comunidade histórica, então poderíamos falar de uma psicanálise freudiana que se coloca certamente do lado do desejo, mas não contra a Lei, de uma psicanálise que critica o moralismo, mas não a Ética ou pelo menos certa concepção de Ética, como aparece claramente em O Mal-Estar na Civilização. (Freud, 1930, p.167-168).

 

Ética da Psicanálise?

Essa expressão é pelo menos problemática, se não ambígua. Ao situar-se no campo das ciências da natureza, a psicanálise somente poderá se ocupar do mundo do ‘é’; não o do ‘dever ser’ onde se inscrevem os vários discursos éticos do Ocidente. Ao acentuar o determinismo do Inconsciente sobre a Consciência, do Id e do Superego sobre o Eu e ao considerar também esse último em boa parte inconsciente, parece minar os pilares da liberdade e da consciência sobre os quais assentava a teoria e a prática ética do Ocidente.

Por outro lado e surpreendentemente por certos aspectos, Freud nos responsabiliza pela escolha de nossas neuroses (Freud, 1913) e até por nossos sonhos (Freud, 1925). Nesse sentido, pode-se inferir que a psicanálise tanto na sua teoria quanto na sua prática clínica é portadora, se não de uma nova ética, pelo menos de um discurso crítico-descontrutivo com relação a certas crenças religiosas, filosóficas ou populares sobre as quais assentava a moral ocidental e, pelo menos indiretamente, de um discurso construtivo e propositivo, aparentemente menos exigente moralmente, mas mais honesto na medida em que leva a sério as verdades que a psicanálise ofereceu à nossa cultura para repensar sua moralidade (ou imoralidade).

Enfim, mesmo que Freud repita inúmeras vezes que a psicanálise não é uma Weltanschauung (Freud, 1933b, p.193 ss.), ou que é compatível com qualquer uma (Carta a Putnam de 8.7.1915), que não possui uma utopia, nem alimenta a ilusão da felicidade, a expressão ‘Ética da psicanálise’ também pode ser justificada a partir do fato social que houve e há por parte de muitos uma verdadeira e tríplice demanda que lhe é dirigida: a explicativa teórica, que veio ocupar o lugar das antigas religiões e de certas filosofias da existência; a terapêutico-consoladora para aliviar a dor, a angústia e a responsabilidade de existir; aquela ética para responder às duas clássicas perguntas, como devo viver, o que devo fazer? Mais especificamente, o que fazer com os nossos desejos de vida e de morte diante das interdições de nossa cultura.

As respostas a essas questões serão procuradas na obra freudiana. Mesmo assim, talvez não seja da ordem da simples curiosidade e sim da conveniência surpreender o Freud epistolar, o Freud enquanto homem, sobre o que ele pensa da moral e da ética.

 

II. O Homem Freud e a Ética

São conhecidas as ambivalências freudianas – para usar um termo politicamente correto – com relação à filosofia em geral e à ética em particular. Numa carta ao Professor de Filosofia Werner Achelis, que tinha escrito e enviado para Freud o texto “O problema dos Sonhos: Ensaio Filosófico”, encontramos um depoimento sobre Filosofia (metafísica) que nos deixa perplexos, sem saber se é expressão de honestidade intelectual ou de simples ‘bravata’.

Outros defeitos da minha natureza sem dúvida me entristeceram e me fizeram sentir-me humilde; com a metafísica é diferente: não só não tenho nenhum talento, mas tampouco nenhum respeito por ela. Em segredo – não se pode dizer estas coisas em voz alta – creio que um dia a metafísica será condenada como uma praga, como um mau uso do pensamento, como uma sobrevivência do período da Weltanschauung religiosa (Carta de 30.1.1927. Freud, 1982, p.432).

É de esperar, portanto, que a mesma hostilidade e indiferença mostrada com relação à metafísica, a reencontremos com relação à Ética, enquanto filosofia moral. Numa carta ao pastor Pfister escreve:

&[...] a ética não me diz respeito e o senhor é pastor de almas. Não quebro muito a minha cabeça em relação ao bem e ao mal, mas em geral tenho encontrado pouco de “bem” nas pessoas. A maioria é, segundo minha experiência, canalha, quer pertença aberta ou disfarçadamente a esta, àquela ou a nenhuma doutrina moral (Carta a Oscar Pfister de 9.10.1918).

Naturalmente, Freud não se considera um canalha. Numa carta a Putnam, agradecendo e comentando o livro que lhe enviara – Human Motives – nos revela sua autopercepção:

[...] me considero um ser humano muito moral. [...] Creio que, quando se trata de um sentimento de justiça e consideração pelos outros, para desgosto de fazer sofrer os outros ou de tirar vantagem deles, posso equiparar-me às melhores pessoas que conheci.[...] Quando me pergunto por que sempre aspirei a comportar-me honrosamente [...], então realmente não tenho resposta. [...] Na mocidade não senti nenhuma aspiração ética especial, e a conclusão de que eu sou melhor do que outros não me dá nenhuma satisfação reconhecível. [...] Por que eu e, incidentalmente, também os meus seis filhos adultos somos obrigados a ser seres humanos inteiramente decentes, para mim é inteiramente incompreensível (Freud, 1982, p.359-360. Carta a Putnam de 8.7.1915).

Alguns anos mais tarde, Freud parece ter encontrado uma razão pela obrigação da ‘decência’. Antes de criticar duramente o mandamento do amor ao próximo, em O Mal-Estar na Civilização, numa carta a Romain Rolland que apelida de ‘apóstolo do amor à humanidade’, assim se expressa:

Eu mesmo sempre advoguei o amor à humanidade, não por sentimentalismos ou idealismo, mas por motivos sensatos, econômicos: porque, em face dos nossos impulsos instintivos e do mundo como é, fui forçado a considerar esse amor tão indispensável para a preservação da espécie humana quanto, por exemplo, a tecnologia (Freud, 1982, p.420 Carta a Romain Rolland de 29.1.1926).

Numa outra cartinha endereçada ao mesmo destinatário, em 19.01.1930, Freud (1982, p.456-457) admite que “a psicanálise também tem sua escala de valores, mas seu único objetivo é a harmonia enaltecida do Ego, que se espera que consiga ser o intermediário entre as exigências da vida instintiva (o “Id”) e as do mundo exterior, entre, portanto, a realidade interna e externa”.

Por esses breves depoimentos, é legítimo inferir que se há uma preocupação ética que perpassa a obra freudiana, ela não deve ser procurada no homem Freud, mas em sua prática clínica. É o confronto com o sofrimento humano, especialmente de tipo neurótico, que o leva a tornar-se um advogado de defesa de seus clientes diante da cultura, ao mesmo tempo em que os responsabiliza pela sua neurose. O discurso ético, portanto, se articula sempre e necessariamente com a questão do sujeito na sua relação com a cultura. Se isso for verdade, é possível esperar que, na medida em que vai se radicalizando o descentramento do sujeito operado pela psicanálise, será possível assinalar as repercussões na esfera ética tanto individual quanto coletiva.

 

III. As Inflexões no Discurso Freudiano sobre o Sujeito e a Ética - Da Clínica dos Começos à Moral Sexual ‘Civilizada’

A preocupação com o tema da ética já se encontra no Projeto (1895a) onde nos deparamos com uma breve afirmação que, de uma maneira direta ou indireta, será retomada várias vezes nos escritos em que Freud aborda questões ético-morais: “[...] o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais” (grifo do autor). (Freud, 1895a p.422)

Essa primeira intuição vai se articulando inicialmente com a clínica dos começos e com a construção teórica do ‘aparelho psíquico’ para dar conta dela, conhecida como primeira tópica. Por essa descrição, que encontra sua primeira descrição psicológica no cap. VII da Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900) e culmina com o artigo metapsicológico sobre O Inconsciente (Freud, 1915a), há, antes de tudo, um descentramento do sujeito da consciência e do eu para o inconsciente, o que evoca uma divisão do sujeito de caráter estrutural porque se encontra não apenas na experiência da psicopatologia (neuroses), mas também na atividade psíquica do homem normal (sonhos e atos falhos).

Nessa primeira tópica, porém, o descentramento ainda não é tão radical, porque afinal o conflito se dava entre as pulsões sexuais reguladas pelo princípio de prazer e as pulsões do eu, de autopreservação, regidas pelo princípio de realidade. Essas pulsões possuem certa autonomia com relação às sexuais para garantir a manutenção do indivíduo. Fome e amor seriam na linguagem dos poetas os representantes dessas duas forças em conflito. Desde o início, portanto, a neurose revela um conflito “massivamente de ordem moral” (Lacan, 1988, p.49). A oposição princípio do prazer x princípio de realidade, processo primário x processo secundário é menos “da ordem da psicologia do que da ordem da experiência propriamente ética” (Ibidem, p.49). Segundo Lacan (1988, p.51), na evolução da metapsicologia freudiana se encontra “o rastro de uma elaboração que reflete um pensamento ético”.

Será sua prática clínica, porém, que o levará a denunciar a responsabilidade e a incoerência da cultura ao exigir de seus membros uma moral sexual incompatível com a estrutura e o funcionamento do psiquismo humano. A crítica, já presente nos escritos do final do século XIX (Freud, 1898), encontra sua forma mais acabada no texto de 1908, Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna, quando confronta as exigências morais da cultura com a história da sexualidade descrita alguns anos antes nos Três Ensaios sobre a Sexualidade (Freud, 1905). Critica o excessivo moralismo que normatiza a polimorfia da sexualidade humana, mas não aponta alternativas concretas em nome da ‘jovem ciência’ psicanalítica. O texto se encerra um pouco abruptamente, não reconhecendo ao médico a atribuição de propor reformas, mas apenas de defender a necessidade de tais reformas, considerando que a ‘moral sexual civilizada’ é responsável pelo aumento da ‘doença nervosa moderna’ (Freud, 1908, p.208).

No entanto, é exatamente o ‘amor à verdade’ psicanalítica que leva Freud a propor indiretamente uma nova ética sexual, aparentemente menos elevada na medida em que sugere que os indivíduos seriam mais saudáveis se lhes fosse possível ser ‘menos bons’, mas certamente mais honesta (Freud, 1908, p.197). Não estaríamos condenados a escolher apenas entre desejo insatisfeito, infidelidade, neurose, perversão e hipocrisia. O amor à verdade e o zelo reformador nos podem libertar.

É verdade que o sujeito freudiano está duplamente descentrado e assujeitado por uma sexualidade polimorfa que o domina e pela cultura com suas exigências, ideais e interdições exageradas, sendo cada um de nós a resultante desse jogo de forças. Todavia, é inegável que, nesta fase do desenvolvimento do seu pensamento, Freud é animado por um mitigado otimismo quanto à possibilidade de transformação dos neuróticos e da própria cultura. Se inicialmente colocou como objetivo do tratamento psicanalítico transformar um ‘sofrimento histérico em infelicidade comum’ (Freud, 1895b, p.362-363), na primeira década do séc. XX, de uma forma mais propositiva considera a terapia psicanalítica como um instrumento para tornar um número satisfatoriamente grande de pacientes ‘aptos para a existência’, para uma vida mais produtiva, prazerosa e tolerante, sem estigmatizar os sintomas como doenças (Freud, 1904, p.261).

Essa visão ‘otimista’, porém, não vai demorar em se alterar quando Freud se defrontar, em Totem e Tabu (Freud, 1913), com o assassinado do Pai da horda primitiva, mito fundador da moral, religião e sociedade.

 

Totem e Tabu: O Nascimento da Ética

Com este livro, há certa inflexão no pensamento ético de Freud, mesmo que o referencial teórico com o qual trabalha seja fundamentalmente o mesmo: o recurso ao modelo onírico-neurótico (recalque) e ao modelo filogenético, na realidade, um único e mesmo modelo, considerando que também para Freud a ontogênese repete a filogênese.

Para Freud, o complexo de Édipo, vivenciado no nível da fantasia pelo indivíduo empírico, foi de fato consumado na origem da humanidade – pelo menos parcialmente – no tocante ao parricídio. Os filhos assassinos, porém, arrependidos, acabam divinizando o Pai e assumindo o tabu do incesto e do parricídio, dando origem, portanto, à moral e à sociedade humana. Por certos aspectos, Totem e Tabu projeta sobre toda a história da cultura a sombra sinistra da experiência de um mal-estar, de um negativo de difícil transposição: crime (parricídio); castigo (culpa); renúncia cultural. Por outros, uma luz de esperança. Graça aos mecanismos de recalque e de sublimação, poderá neutralizar as forças eróticas e agressivas e canalizá-las para o bem do sujeito e da própria comunidade. Torna-se, dessa maneira, a guardiã e fiadora da Ética.

O pacto civilizatório entre os irmãos parricidas, porém, é frágil porque persiste o desejo de ocupar o lugar interditado do pai assassinado. Desejo que se torna mais perigoso para a cultura quando coincidir com a demanda de proteção dos outros. Tema que Freud vai retomar alguns anos mais tarde em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (Freud, 1921).

 

A Ilusão nas Massas: A Difícil Tarefa Ética

Nesse ‘pequeno livro’, Freud tenta explicar psicanaliticamente as alterações que ocorrem no indivíduo quando entra a fazer parte de um grupo, da massa ou da sociedade e a responsabilidade ética dos sujeitos parece diluir-se perigosamente.

A tese defendida é que a transformação psíquica do indivíduo na massa é produto de uma redução do narcisismo de cada um dos membros em função da instalação do mesmo líder como ‘ideal do eu’ e do vínculo amoroso que se estabelece entre os pares, funcionando como compensação pela renúncia narcísica. Finalmente, retomando as idéias desenvolvidas em Totem e Tabu, nos diz que o indivíduo na multidão ou grupos regride, de alguma maneira, a um modelo infantil e arcaico de funcionamento, na medida em que o homem é “um animal de horda, uma criatura individual numa horda conduzida por um chefe” (Freud, 1921, p.154).

Se isso for verdade, o ser social do homem é vivido na massa como uma espécie de sonho acordado. Há uma vida libidinal que regride às experiências arcaicas do indivíduo (infância) e da espécie (filogênese). Pai da horda originária, Pai da infância, Líder acabam se sobrepondo, se confundindo e nos infantilizando. Há um desejo que perpassa os grupos e que é um desejo de servidão voluntária. A multidão, dirá Freud, é ávida, tem “sede de autoridade” e, conseqüentemente, de submissão.

Diante do poder sedutor, quase hipnótico, do líder e das massas, ‘depósito herdado da filogênese da libido humana’, parece que não há como pensar a liberdade, a singularidade e a responsabilidade ética. Todavia, à massa ou ao indivíduo enredado no seu desejo ilusório, Freud contrapõe uma singularidade animada pelo inconformismo. Mesmo que cada indivíduo seja a resultante de numerosas ‘mentes grupais’, sempre pode “também elevar-se sobre elas, na medida em que possui um fragmento de independência e originalidade” (Freud, 1921, p.163).

Na realidade, a despeito dessas palavras inequívocas, a grande maioria dos seres humanos não passaria de um animal de horda, mostrando a dificuldade de realmente aceder a um mundo de singularidade, de escolhas éticas e, portanto, de responsabilidade. Resta-nos o dilema dos porcos-espinhos, retomado de Schopenhauer: morrer de frio ou espetar-se pela necessária proximidade (Freud, 1921, p.128 e nota 1). O laço social e ético entre os homens é necessário pelo desamparo individual e grupal diante da insensibilidade do mundo, mas dolorido, porque nada garante que o grupo humano consiga encontrar um equilíbrio entre exigências de felicidade individual e exigências comunitárias.

 

Ética, Guerra e Morte

A eclosão da primeira guerra mundial surpreendeu a todos e, pelo menos em parte, também ao homem Freud, pela barbárie individual e das nações em conflito. Em seu texto Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte (1915b), contemporâneo, portanto, da primeira grande síntese dos artigos metapsicológicos, analisa psicanaliticamente a grande ‘desilusão’ gerada pela guerra. A psicanálise o convenceu que ‘a essência mais profunda da natureza humana’ consiste de pulsões primitivas, tais como as egoístas e de crueldade, que buscam sua satisfação. Podem até ser domesticadas, de alguma maneira, por um fator interno, como o erotismo, capaz de transformar os instintos egoístas em sociais; por outro externo, como a educação, visto que civilização só foi possível pela renúncia à satisfação instintual de seus integrantes. Essas pulsões, porém, são imperecíveis. O indivíduo ‘civilizado’ pode a eles regredir em determinadas circunstâncias. O ‘poderoso’ mandamento ético ‘não matarás’ só pode ser entendido a partir de seu impulso inverso, igualmente poderoso.

A crença nessa imbricação de amor e ódio não leva Freud a um pessimismo ético. Acredita que a ‘Natureza’ consegue manter certa hegemonia do amor sobre o ódio e que talvez pudéssemos afirmar “que devemos as mais belas florações de nosso amor à reação contra o impulso hostil que sentimos dentro de nós” (Freud, 1915b, p.338).

É inegável, porém, que a pulsão de morte, tematizada em Além do Princípio do Prazer (Freud, 1920), irá ter suas repercussões no campo da ética, tornando ainda mais difícil o ideal de uma vida boa com os outros. O descentramento do sujeito se radicaliza. A nova pulsão, desvinculada do conceito de representação, torna-se mais marcada pela força muda e bruta, deixando o sujeito ainda mais desamparado diante do Id. Essa nova teoria das pulsões, de fato, é acompanhada da reformulação do aparelho psíquico conhecida como segunda tópica: O ego e o id (Freud, 1923). É com esse referencial teórico que repensará o fenômeno da cultura e da ética (1930), bem como os objetivos da ‘cura’ psicanalítica (1937).

 

A Luta dos Gigantes

Sobre o discurso ético no famoso texto de 1930 – O Mal-Estar na Cultura – permito-me remeter o leitor a um artigo anterior (Matteo, 1998). Limito-me, aqui, a retomar a tese central de Freud. O mal-estar decorreria das proibições da cultura ao incesto, à sexualidade polimorfa e perversa e das restrições à própria sexualidade genital, de fato mais tolerada do que permitida. Mais do que isso, o mal-estar é o preço que é necessário pagar para que a civilização se torne possível e se desenvolva. Decorre de um sentimento de culpa inconsciente, filho de nossa agressividade que a cultura, pelo superego cultural, consegue colocar a serviço de Eros, devolvendo-a contra o próprio indivíduo.

A felicidade não está inscrita nos planos da criação. O destino do homem está mais próximo da infelicidade, cujas causas devem ser procuradas num mundo sem Providência, numa cultura sem tolerância e na natureza das próprias pulsões sem satisfação plena possível.

Sem deuses, abandonados ao desamparo fundamental que caracteriza a existência humana, é no campo da ética que se trava a batalha decisiva da civilização. A ética é a tentativa terapêutica de lidar com o ponto mais doloroso dela, o das relações entre seres humanos. Mas Freud se recusa a apontar saídas ou levantar-se como um profeta diante de seus semelhantes. Cada um terá que encontrar sua própria salvação para enfrentar a dureza da vida e ninguém pode garantir que Eros leve a melhor sobre Thanatos.

Essa visão não conduz Freud a uma revolta metafísica ou a uma cansada resignação. Não é um asceta, nem um moralista, nem um anárquico. Entre a lei e o desejo, coloca-se em defesa do desejo, mas não contra a lei. Sugere, porém, que haja uma diminuição da rigidez do superego cultural e, conseqüentemente, das exigências éticas para que se tornem mais compatíveis com a realidade do psiquismo humano. Parodiando uma célebre frase dele – onde havia Id deve advir Ego (Freud, 1933a, p.102), poderíamos resumir a proposta freudiana em onde havia superego cultural deve advir o ego.

Quanto ao discurso clínico, dentro dessa nova rede conceitual Freud repensa a dimensão de cura em psicanálise em Análise Terminável e Interminável (1937). A prática psicanalítica não se inscreve num projeto terapêutico de caráter científico, inspirado no paradigma da medicina; nem num projeto de salvação de natureza e inspiração religiosa. Sem promessas de cura e certezas para oferecer, a psicanálise apenas ajuda o sujeito a conviver com seu intransponível desamparo e a literalmente inventar um estilo de vida condizente com a singularidade do seu desejo.

Seria então a proposta ética de inspiração freudiana ao mesmo tempo apaziguadora e cínica, na medida em que parece insinuar que o ser humano é assim mesmo e que não há muito que fazer; individualista, por responsabilizar o homem pela sua neurose e as saídas singulares que deve inventar; político-reformista por clamar por reformas culturais no campo das exigências morais que levem efetivamente em conta as limitações do psíquico humano; político-revolucionária ao propor uma ética fundada no desejo e não mais na racionalidade?

Sem a pretensão de responder dogmaticamente a essas perguntas, a título de conclusão apresento algumas conclusões que me parecem plausíveis.

 

IV. Concluindo e Resumindo

Se o Freud epistolar parece mais ocupado em viver eticamente do que refletir sobre o complexo fenômeno moral, sua obra psicanalítica é perpassada de ponta a ponta por uma inquietação ética.

Não há, porém, ‘um’ discurso ético freudiano sistemático e linear. Há mais um pluralismo de discursos que coexistem, não se contradizem ‘fundamentalmente’ e estão sintonizadas, ‘geralmente’, com as sucessivas reformulações de sua metapsicologia. Daí as várias interpretações possíveis.

Para a psicanálise freudiana não existe uma ética originária inscrita no coração do homem. A problemática ética surge na medida em que o sujeito pode e deve ser pensado sempre dentro do campo da cultura. Nesse sentido, a ‘gênese’ ou ‘as fontes’ da moral são duas: uma relacionada com o intransponível desamparo infantil e sua dependência das vontades dos pais reais, educadores, figuras de autoridade, os quais não passariam de uma reatualização da vontade do pai primevo. A segunda, da necessidade ‘racional’ de prescrições para regular a existência e convivência humana, “pela necessidade de delimitar os direitos das sociedades contra o indivíduo, os direitos do indivíduo contra a sociedade e dos indivíduos uns contra os outros” (1939, p.145).

Nessas duas fontes, é possível reconhecer: primeiro, a tradição religiosa judaico-cristã do Ocidente fundamentada sobre a moral heterônima do Pai, a consciência moral, o sentimento de culpa que – na concepção de Freud – inicialmente, é “apenas um medo da perda do amor, uma ansiedade ‘social’” (Freud, 1930, p.148); segundo, a tradição filogenética do pacto de irmãos e a filosófico-racionalista que postula uma moral autônoma, nascida do ‘intelecto’, da ‘razão’, do ‘espírito científico’ nos quais Freud (1933b, p.208) depositava “nossa maior esperança para que [...] possa, com o decorrer do tempo, estabelecer seu domínio sobre a vida mental do homem”. Na realidade, as duas fontes e as duas tradições estão intimamente relacionadas, sendo que a primeira é mais arcaica. A razão pela qual ainda hoje o problema ético “nos parece tão grandioso [...], tão misterioso, e, de modo místico, tão auto-evidente, deve essas características à sua vinculação com a religião, à sua origem na vontade do pai” (Freud, 1939, p.145).

O ‘mal-estar’ dos indivíduos, quando não a neurose, a doença, a hipocrisia, a revolta, em outras palavras, o conflito ético decorre do fato que os impasses entre pulsão e cultura são estruturais e não conjunturais, o que revela a intransponível situação de desamparo psíquico em que se encontra o sujeito num mundo sem deus e assujeitado às exigências da Cultura.

Mesmo com todas as limitações da liberdade do sujeito (determinismo do inconsciente, forças pulsionais incontroláveis, exigências culturais excessivas), a psicanálise freudiana não é fiadora de uma moral conformista. O Ego ‘deve’ advir onde havia Id ou Superego, o que coloca a psicanálise na seqüela do pensamento iluminista: crença na autonomia da razão para investigar o mundo da physis e do ethos; a reivindicação do indivíduo ao prazer e à felicidade, a despeito e à revelia das exigências morais da tradição e da coletividade; a crença no universalismo da natureza humana. Essas não são apenas as características da Ética da modernidade, mas também da Ética freudiana (Rouanet, 1993, p.96ss).

Instruído, porém, pela psicanálise, suspeita que o racionalismo, o individualismo e o universalismo da ilustração são apenas uma aposta. Não é um novo Moisés portador de um novo decálogo. Propositalmente não se apresentou como um profeta, mas como um pensador que nos força a pensar e, quem sabe, a não perder a esperança no deus Logos, ou no divino Eros, ou qualquer outro nome com o qual se queira caracterizar o esforço sobre-humano de construir e reconstruir um mundo ético, mesmo sabendo que a dialética Lei - Desejo não possa ser supra-assumida e apaziguada nem na esfera individual nem na coletiva.

Enfim, a despeito de certo pessimismo teórico, que se radicaliza com a introdução da pulsão de morte, como uma pulsão originária e autônoma, é inegável que há certa proposta ética que pode ser inferida da psicanálise freudiana e que aponta para alguns ideais e concomitantes dificuldades: o ideal da autenticidade e a dificuldade de ultrapassar a distância entre saber e verdade; o ideal da independência e a dificuldade de ultrapassar o arcaísmo de nossa infância; o ideal da capacidade de amar e a dificuldade de lidar com a ‘errância’ do desejo; o ideal de justiça – “a primeira exigência da civilização” (Freud, 1930, p.116) – e a interferência do egoísmo e da pulsão de morte que nos habita.

 

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Endereço para correspondência:
Rua Des. Martins Pereira, 165
52050–220 – Recife – PE

Convite feito em março de 2006

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