SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número29Momentos de arte na análiseO poeta, o analista e o tradutor índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.29 Belo Horizonte set. 2006

 

TEXTOS SELECIONADOS

 

Psicanálise e literatura: noite na taverna

 

Psychoanalysis and literature: night in the tavern

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos

Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul – CPRS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Adolescência é descrita como uma passagem, uma moratória no ciclo vital, caracterizada por perdas e lutos do corpo infantil, da identidade de criança, sustentada na identificação com os pais e a conseqüente desidealização destes. É uma fase do desenvolvimento psíquico em que as modalidades de relacionamento com o mundo externo denotam a vida emocional intensa e profunda do jovem. O adolescente vive perdas e separações, se afasta dos objetos de amor infantis, mesmo que seus sentimentos edípicos o incitem a reincejar o desejo pelos pais da criança. Na análise do insuperável e dos conflitos que não ficaram resolvidos, notam-se marcas nos comportamentos, na formação de vínculos e nas novas aprendizagens. Ao iniciar essa análise cito a obra de Álvares de Azevedo, Noite na Taverna, publicada em 1878. Um livro constituído de contos fantásticos, narrados por um grupo de amigos à roda de uma mesa de taverna. Elementos romanescos e satânicos se entrecruzam para tratar de violência, corrupção, adultério, traição e morte. Vingança, tédio, bebida, luto e amor são temas presentes em cada narrativa. Portanto, me remeto a um tipo específico de adolescente, aquele que manteve as paradas no seu desenvolvimento, as feridas narcísicas, as regressões às fases em que a fantasia e a onipotência criaram uma ilusão de controle mágico sobre o mundo e sobre o outro.

Palavras-chave: Adolescência, Narcisismo, Violência.


ABSTRACT

In this study the author describes adolescence as a necessary passage in life cycle characterized by losses of the child’s body and identity, supported in parental identification and deidealization. It’s the phase of the psychic development when all kinds of relationship resemble the deep and intense emotional aspect of the youngster. The adolescent experiences this separation from loving objects even though the Edipic feelings reinforce the desire for his or her parents. In the analyses of this unsolved conflict one can note marks on behavior, involvement with others and new learnings. The author cites the masterpiece “Noite na Taverna” by Álvares de Azevedo, published in 1878. A compilation of fantastic stories told by a group of friends sit around a table in a tavern. Romanic and satanic elements get together in a plot of violence, corruption, adultery, betrayal and death. Vengeance, tediousness, drinking, mourning and love are remarkable themes. The author focuses on a specific type of adolescent, the one who keeps on development failures, narcissic wounds, an the will of regression to phases when fantasy and omnipotence lead to an illusion of a magical control over the world and the others.

Keywords: Adolescence, Narcissism, Violence.


 

 

O Começo da História...

Meu herói é um moço preguiçoso
Que viveu e bebia porventura
Como nós, meu leitor; se era formoso
Ao certo não o sei. Em mesa impura
Esgotara com lábio fervoroso
Como vós e como eu a taça escura...
Era pálido sim... mas não de estudo:
No mais... era um devasso e disse tudo!
(Alvares de Azevedo, “O poema do frade, as desventuras de um poeta libertino”, 1853.)

 

O Livro Noite na Taverna

Álvares de Azevedo nasceu em São Paulo em 1831 e morreu em 1852, com 21 anos, viveu com os pais e uma única irmã. Teve desavenças com o pai, pois este não acreditava na sua vocação de poeta e escritor, queria vê-lo como um proeminente advogado. Por esse motivo, ingressou na Faculdade de Direito, mas, sem dotes para exercer a profissão, permaneceu escrevendo sob a influência e apoio da mãe e da irmã. Parece não ter tido uma companheira; dedicou seus investimentos amorosos exclusivamente à mãe e à irmã, configurando o que a psicanálise denomina um “Édipo não resolvido”. Foi anjo e demônio do romantismo brasileiro, faleceu com tuberculose.

Para alguns, não foi uma figura angelical e pura, nem um excelente estudante. Mas, um amante do conhaque, do charuto e da noite. Alienado da rea-lidade, não se preocupou com os dramas sociais e culturais do país. Descreveu em algumas obras orgias terríveis, usando o sarcasmo e a ironia, condenando a mulher a um destino de virgem ou prostituta.

No livro Noite na Taverna, um narrador introduz o cenário no qual serão contadas histórias por personagens que as viveram, episódios de suas vidas aventureiras. A mulher, o demônio, o amor, a morte ressurgem em cada conto na imaginação de Azevedo. Um ficcionista, adolescente, que associou o poeta imaginativo que era, ao ficcionista, em proveito do reino fantástico de Noite na Taverna. Um reino que pode ser vislumbrado pela Psicanálise nos conflitos e afetos de seus personagens e quem sabe do próprio escritor, que expôs seus desejos e temores ao longo das histórias criadas.

Os homens que descreveu foram Bertram, Johann, Solfieri e Genaro. Todos perseguidos pela memória. Carregavam uma sina que invadia as trevas da morte, do demônio que agredia e perturbava o amor. Eles se embriagavam e tinham uma história maldita, Eros não se salvou. Tudo se estabelecia em função da morte. O ficcionista trouxe do fundo de seu reino imaginário as sombras de seus pesadelos, o retrato de suas projeções.

Freud, em Além do Princípio de Prazer (1920), tratou dos eventos mentais relacionados ao prazer e ao desprazer. O princípio do prazer decorre da necessidade de constância, da evitação da dor, do sofrimento.

“A tendência dominante da vida mental, e talvez da vida nervosa em geral, é o esforço para reduzir, para manter constante ou para remover a tensão interna aos estímulos, tendência que encontra expressão no princípio de prazer, e o reconhecimento deste fato constitui uma de nossas mais fortes razões para acreditar na existência dos instintos de morte” (Freud, 1920, p.76).

Freud descreveu que além do princípio do prazer está a compulsão à repetição, um fenômeno próprio da pulsão de morte. Algo se repete e não é prazeroso para o sujeito, mas a repetição precisa sustentar-se, também é uma fonte de energia, é um movimento pulsional que aprisiona, traz impasses e leva a inércia. Com isso, desejo e medo impulsionam à fuga do que é considerado perigoso.

Os protagonistas das histórias de Azevedo se debatem no sofrimento, por um lado, ao mesmo tempo buscam o prazer insaciável, revestido na morte para dominar a angústia, mesmo que para isso repitam as situações traumáticas que o provocaram.

Este foi o caso de Bertram, um jovem apaixonado por Ângela, moça que abandonou para encontrar o pai que o chamava à Dinamarca. Ao retornar ela estava casada. Mas, esse fato não impede que voltem a se encontrar, que tenham noites de prazer e êxtase. Até que um dia, sua amada, não suportando essa situação, mata o filho e o marido e diz para Bertram: “Sou tua e tua só. Foi por ti que tive força bastante para tanto crime. Vem, tudo está pronto, fujamos. A nós o futuro” (p.26).

Miséria e loucura, a mulher colocou em ato seu desejo. Não precisavam mais separar-se, o vínculo podia ser restabelecido sem a sombra da interdição, o Outro estava morto, o pai deixava de existir.

Mas, ela não suportou a culpa, o abandonou. Ele tornou-se um bêbado, jogador de cartas; um homem perdido, terrível e sem coração. Amor e agressão, a articulação que Freud descreveu ao falar do sadismo:

“Desde o início identificamos a presença de um componente sádico no instinto sexual, ele pode tornar-se independente e, sob a forma de perversão, dominar toda a atividade sexual de um indivíduo” (Freud, 1920, p.74).

O livro expõe nas histórias a ambivalência entre amor e ódio na vida erótica. Ao mesmo tempo o temor da perda do objeto, a ferida narcísica no Eu denegrido, o amor pela própria imagem. Isso faz com que a vigilância do rival ressurja na inveja, ou ciúmes do parceiro.

Na história de Claudius, ele rouba a esposa do marido, entorpecendo-a com narcóticos, induzindo-a a amá-lo, sem consentimento, porque ela desejava seu esposo. Ainda assim, Claudius a obriga a ficar com ele, até que o pobre homem traído os encontra e mata a mulher, que tanto o queria. Esse é mais um final trágico: amor desfeito, sentimento de vazio e morte, abatimento e solidão.

Johann, outro personagem, brigou num bar, enquanto jogava bilhar. Ele e seu adversário saem para a rua. A briga continua. Ele mata o pobre homem, que em agonia lhe entrega um bilhete dizendo que deveria ir num hotel, pois lá encontraria uma mulher. A porta estaria aberta, ela o esperava. Assim acontece. O jovem dirige-se para esse lugar. Ao chegar, a escuridão não lhe permite vislumbrar a figura. Por fim, tem uma noite deliciosa nos braços da mulher. Quando sai encontra um homem, esbarra nele, mas não identifica sua fisionomia, pois estava muito escuro ainda. Brigam. Ele mata-o. Passado o susto, com uma lanterna, ilumina seu rosto. Com pavor descobre que matou seu irmão. Sobe ao quarto no qual deixara a mulher. Ela estava desmaiada, Então, olha a mulher. Com espanto vê os seios nus, a face fria, a infância perdida, era sua irmã. Tornara-se um maldito, a vida só teria sentido nos bares, na bebida, queria esquecer. Um dia encontra a morte junto a uma prostituta, que se vinga do que ele fez à irmã. Mais uma vez a lâmpada apagou-se, a luz da vida se desfez.

Essas são algumas histórias contadas por esse jovem, ainda adolescente. Seus terrores, angústias, representados nos personagens infelizes e sós. Os desejos eróticos, talvez, determinados por suas pulsões e conflitos amorosos. O homem sempre foi um infeliz, ao mesmo tempo um rival na realização dos desejos incestuosos. Porém, no imaginário tudo era possível, as imagens se concretizavam, mesmo que trouxessem o gosto da morte, da dor, do vazio.

Escolhi esse autor, que faleceu precocemente, por sua importância na literatura brasileira como romancista da segunda geração denominada “mal do século”. Enquanto viveu, pressentiu sua morte. Brigava com ela, ao mesmo tempo se expunha aos infortúnios da sorte.

Escreveu a poesia “Se eu morresse amanhã“ no leito de morte. Mórbido e marcado, nunca foi feliz.

Penso que ele retrata alguns jovens da sociedade contemporânea, que querem vencer as perdas não realizando lutos, pois lhes faltou a parentalidade. Não suportam a realidade, mantém a impulsividade da criança e atacam o outro e a si mesmos. Buscam uma identidade, uma filiação, mas só encontram partes do que parecem ser.

Acredito que, com os estudos psicanalíticos, podemos fazer uma incursão na infância, na tentativa de entender a organização psíquica desses sujeitos até a adolescência, passando pela complexidade dos processos mentais e dos conflitos interiores, que impulsionam os jovens à ação, num comportamento compulsivo e letal.

 

As Relações Parentais da Infância à Adolescência

A adolescência constitui um contínuo do desenvolvimento psicossexual, no qual as vissicitudes pulsionais da primeira infância se confrontam com as funções biológicas e sociais impostas na segunda fase da vida. A latência prepara a adolescência, em termos de novas competências sociais, físicas e mentais. As características desses campos podem ser observadas na prova de realidade, nas operações defensivas, ou seja, nos mecanismos de adaptação do adolescente e nas identificações que realiza.

A maturação sexual é um fato biológico. Na puberdade as pulsões se intensificam e emergem novos objetos de desejo. A personalidade vai sendo modelada, mas só pode ser compreendida pela fase antecedente, por isso é necessário voltar à história da criança.

A puberdade traz o problema da masculinidade e feminilidade a uma posição final ou a um meio termo. Para compreender as transferências da libido e da agressão, os movimentos do Eu, nesse período, é necessário acompanhar as ausências e as identificações, nos diferentes períodos do desenvolvimento.

O bebê é totalmente dependente da mãe, necessita de cuidado e proteção, vive uma fase de dependência absoluta, segundo Winnicott (1983). E na mutualidade entre necessidade e satisfação, acontece a reação circular entre mãe e filho, a interdependência, que forma a base do crescimento psíquico. No olhar da mãe ele se reconhece, forma um corpo, passa a pertencer a uma linhagem com seu consentimento. Essa primeira modalidade de relação, concentrada na provisão externa, servirá de protótipo das relações posteriores. A primeira constelação de defesas se instala e pode ser percebida na introjeção e na projeção, numa constante oscilação; ora os atributos da onipotência estão em si mesmo, ora estão no outro.

Para Winnicott (1975), as crenças de onipotência são universais, constituem o núcleo da imagem de si mesmo, do reconhecimento de um lugar, de um espaço afetivo. A mãe suficientemente boa oferece o seio desejado pela criança, fortalece a crença infantil na onipotência positiva; a mãe frustradora robustece o lado negativo. Os limites entre o mundo interno e externo são dados pelo corpo, e a criança passa a descobrir a satisfação que pode reencontrar consigo mesma através dele. Este auto-erotismo, na puberdade, chega a um impasse crucial. O relacionamento da criança com seu primeiro objeto amoroso torna-se ambivalente.

À medida que transcorre o processo maturacional, a criança constrói um sentimento de domínio e limite corporal. Torna-se mais independente da figura materna, mas passa a temer a perda de seu amor, sua desaprovação, sua ausência.

Novas defesas são erguidas e poderão ter êxito se houver o apoio e a presença do Pai. As manifestações agressivas aparecem, bem como o comportamento impulsivo, porém as necessidades de aprovação e do controle paterno levam à renúncia das pulsões destrutivas.

O sadismo e o masoquismo fazem suas primeiras aparições, na raiva, na irritação diante dos objetivos não atingidos. Os componentes eróticos e agressivos mostram-se na bipolaridade da pulsão sádica, na tendência em destruir o objeto externo, mas ao mesmo tempo em conservá-lo, exercendo sobre ele um controle, o que traz gratificações. Nesse período são visíveis os sentimentos de posse, de onipotência e superestima narcísica, vivenciados no prazer de controlar, dominar.

Existe um longo caminho a percorrer até a adolescência. No início a criança é passiva em seus anseios libidinais, mesmo provocando o ambiente em busca de gratificação. À medida que cresce vai se tornando independente dos cuidados e da ajuda, aprende a fazer ativamente aquilo que experimentou passivamente.

A ambivalência entre as posições feminina e masculina e as funções parentais, assim como a reconciliação entre as mesmas, acompanha a criança e poderá ser resolvida, ou não na adolescência.

Desde o início o primeiro objeto de amor é a mãe. Qualquer pessoa que interfira nessa situação é percebida como um intruso, recrudescendo os impulsos agressivos e hostis; a possessividade e o ciúme são precoces na experiência infantil.

Blos (1994) salienta que no transcurso do desenvolvimento a fase fálica caracteriza-se na antítese fálico-castrado. O pai desempenha um papel diferente e crucial, no sentido de cuidado e interdição à criança.

No caso do menino, sua relação com o pai pode ser acompanhada de comparação e competição. O apego ao representante paterno denota uma escolha narcísica de amor e rivalidade. A mãe passa a ser desvalorizada em sua condição, há um menosprezo por ela, pois lhe falta o pênis, o falo, condicionante do poder paterno. Isso reaparece na adolescência e pode persistir por toda a vida, na forma de desprezo pela mulher. Como no mito de Édipo, o menino abandona a identificação com a mãe e volta-se para o pai. Para esse autor, os dois modos de solução desse conflito são:

“Primeiro a identificação com o pai, tornar-se como ele no futuro em lugar de substituí-lo ou ser como ele no presente; ou abandonar seus anseios ativos, competitivos e de rivalidade e voltar – pelo menos parcialmente – à sujeição à mãe ativa (fálica)” (Blos, 1994, p.30).

A primeira modalidade fortalece o princípio de realidade, a segunda o princípio de prazer. A submissão à mãe fálica representa uma regressão, que se tornará um desafio na puberdade, em relação à masculinidade do menino.

A situação da menina é a mesma do menino, em relação à mãe, no começo da vida. O primeiro amor da menina pertence à mãe. Nas etapas posteriores esta pode continuar sendo considerada um refúgio nos momentos de crise. Entretanto, a falta de amor materno, ou a sensação de que este é mau ou perigoso pode tornar-se típico na delinqüência feminina, na busca da mãe pré-edípica. As posições fálica e castrada se estabelecem gradualmente na situação feminina.

Sabe-se que o reconhecimento da castração provoca a resolução edípica no menino e instaura esse complexo na menina. Para ela a solução é mais difícil, muitas vezes só ocorrerá na adolescência, ou no nascimento de um filho, ou não se realizará de modo completo no decorrer da vida adulta. Apenas a renúncia aos desejos edípicos levará a menina de volta à mãe, numa identificação crescente com esta. Mas, todo impasse vivenciado pelo menino e pela menina, na infância, será retomado e continuado na adolescência. A adolescência impele o jovem a avançar e a se afastar dos amores infantis.

O adolescente volta-se para o amor heterossexual, gradualmente desviando o investimento para o Eu, antes direcionado aos pais. No menino a escolha amorosa é baseada no ideal de Eu; na menina observa-se uma perseverança na relação bissexual e uma supervalorização do componente fálico.

O aumento do narcisismo pode ser visto em ambos os sexos, nas tentativas do jovem de proteger-se contra as decepções, rejeições e fracassos amorosos. Há uma extrema suscetibilidade à centralização em si mesmo, um auto-engrandecimento. No caso de um desinvestimento nos relacionamentos objetais, pode ocorrer uma retirada narcísica e uma perda do teste de realidade, semelhante a uma psicose incipiente. Um empobrecimento do Eu pode advir pela repressão das moções pulsionais, e pela incapacidade de estender a libido dos objetos amorosos da infância aos atuais.

As defesas narcísicas, características da adolescência, são provocadas pela incapacidade de perder a onipotência da criança e a dependência dos pais. As introjeções confundem-se com os pais do presente e com seus comportamentos atuais. Apegos exagerados são vistos nas identificações transitórias com diversos grupos sociais, mas podem se modificar rapidamente.

Os novos relacionamentos não representam apenas uma proteção contra as antigas introjeções, mas tentativas de neutralizar as vivências ruins com as novas, que passam a ser consideradas boas. Há uma “fome” de vínculo, uma necessidade incorporativa. O Eu inflado do adolescente, narcisado, pode ser percebido em sua arrogância, desafio às regras, questionamentos à autoridade, rebeldia.

Antes os pais eram supervalorizados, vistos com temor; agora passam a ser subvalorizados e vão sendo derrubados, destituídos simbolicamente de um lugar. O recrudescimento do narcisismo é importante à manutenção do amor próprio, porém o isolamento narcísico, o desligamento dos vínculos sociais, denota a sensação de ameaça externa, de perda dos parâmetros, ou impossibilidade para lidar com a realidade, com os limites do Eu. Aí se instala a angústia de despersonalização que leva aos processos regressivos e a estados psicóticos.

O adolescente possui fantasias e devaneios extraordinários. Nesse sentido, o componente narcísico continua presente, não só no aspecto ideacional, mas nas produções criativas, que legitimam a capacidade de independência e pensamento lógico. Porém, sempre há uma propensão, no jovem, a projetar suas emoções e senti-las como realidade externa. Sensações de alheamento, de irrealidade, ameaçam a continuidade do Eu, principalmente, se o ambiente não for provedor de limites e de relações que possam ser partilhadas.

A possibilidade de verbalizar coloca os conteúdos mentais mais próximos da realidade. Muitos adolescentes mantêm diários, nos quais anotam suas emoções e suas possíveis atuações. Os diários podem ser encarados como representações deformadas pela consciência, deslocamentos, ou condensações, tal como os sonhos, as fantasias e as produções poéticas.

Ligada na fantasia está a necessidade de atribuir às pessoas as próprias necessidades, tanto eróticas como agressivas. A garantia contra a angústia pode dar aos relacionamentos um caráter superficial, os outros são representações de imagens internas mais do que figuras da realidade. Os sentimentos são intensificados e podem provocar um esgotamento e estado de dor, típicos dessa fase, que poderão ser abrandados pela aceitação das pulsões.

A adolescência traz temas dominantes no estudo da personalidade, o renascimento do complexo de Édipo e o desligamento dos amores infantis. Isso constitui uma seqüência de abandono, procura e tentativa de organização das pulsões. O adolescente sofre lutos essenciais à realização e libertação do passado, porém isto exige tempo e repetição.

Mas, como examinar os aspectos que podem incrementar as paradas e as regressões na construção da subjetividade nesse período? Em relação a isso apresento algumas idéias.

 

Adolescência: Narcisismo, Delinqüência e Violência

Winnicott (1983) fez um paradoxo em relação à adolescência, mostrando-a como uma fase de crescimento normal, no aspecto de socialização, mas que pode tornar-se tempestuosa, conforme o ambiente no qual o jovem é criado. Pode vir acompanhada de extrema arrogância, numa mistura de dependência e extrema dependência, parecendo aloucada e confusa. Os pais podem ficar perturbados com seu papel, com a maneira de agir em relação aos filhos. Podem se achar desnecessários, meros provedores do sustento destes, pessoas descartáveis, já que não são aceitos em suas orientações. Os filhos zombam deles. Parentes, amigos e ídolos são procurados e considerados mais adequados que os pais. Com isso, acrescenta-se uma complicação: o adolescente conhece o mundo dos adultos. O menino que aos quatro anos desejava a morte do pai agora tem o poder de matá-lo. A menina que tinha ciúmes da mãe, por sua capacidade de conceber bebês, agora pode engravidar ou prostituir seu corpo.

Para o autor, nessa fase não há uma coesão narcísica, nem uma capacidade de se identificar com os pais sem perder a individualidade. Nos adolescentes, podem ser encontrados todos os tipos de patologia, desde as neuroses até os distúrbios afetivos, tendo como base a depressão, com oscilações maníaco-depressivas, defesas como a negação, euforia, complicações paranóides e hipocondríacas. Os distúrbios esquizóides se manifestam na falta de contato com a realidade, com a despersonalização, a dissociação e a perda de sentido do Eu.

Ao observar os adolescentes, na sociedade atual, percebemos quanto é difícil separar, em algumas circunstâncias, o que é denominado “normal”, no sentido psíquico. Principalmente se considerarmos que eles denunciam o sintoma do Outro. Entre o luto das imagens identificatórias da infância e o acesso ao mundo adulto, revelam seu lugar no desejo dos pais.

Kernberg (1995) comenta as desorganizações típicas dos adolescentes, entre elas a ansiedade e depressão graves, que prejudicam o envolvimento social. Também assinala as dificuldades de diagnóstico, em função de alguns parâmetros, entre eles: a crise na representação de si mesmo, com as típicas oscilações de interesse, os conflitos com os pais, irmãos, representantes de autoridade, que podem, às vezes, não ser compreendidas, ou aceitas. Certos conflitos mostram aspectos neuróticos, de dependência e rebeldia, ou refletem patologias mais graves como a síndrome de difusão do Eu. Conflitos neuróticos podem intensificar defesas primitivas, como o controle onipotente, a identificação projetiva e desvalorização dos outros, mesmo em adolescentes sem um comportamento anti-social.

O comportamento anti-social reflete um problema de tolerância à frustração e à realidade, uma patologia de caráter, uma organização borderline, segundo o autor, favorecida pela parceria com os iguais. As reações narcísicas e infantis, freqüentes na adolescência, podem mascarar a fragilidade do Eu, observadas na oscilação e discrepância de desempenho nas áreas escolar e social.

Para esse psicanalista, a emergência de tendências sexuais perversas significa a imitação de aspectos genitais e pré-genitais, com predominância da violência, próprias do borderline. A violência representa uma reação a sentimentos de ameaça, ou de falência, da capacidade psíquica de suportar as pressões internas e externas às quais o jovem está submetido.

Apresento essas idéias para salientar as dificuldades de diagnóstico na adolescência. Contudo, é fundamental levantar as causas dos problemas de muitos jovens nessa fase de moratória entre a infância e a vida adulta, bem como as necessidades de ajuda e interesse em modificar formas de relacionamento, além da manutenção do teste de realidade. Em muitos casos tornam-se difíceis de ser tratados, porque a patologia é denunciadora da patologia familiar.

Acredito que as perturbações narcísicas dos adolescentes se devem à falta de sustentação e de estabilidade no contato com os adultos, produtos de suas identificações.

Penso que a busca de satisfação permanente, o prazer descontrolado de muitos jovens, na forma de agir despreocupada, superficial, sem comprometimento com a realidade, ou com relacionamentos instáveis, atestam o fracasso, sobretudo do lugar do Pai. Na pobreza de relacionamentos duradouros, na ausência de sistemas de valores e de metas, que não sejam o próprio engrandecimento, encontra-se a ausência paterna.

Modell (1973), ao estudar pacientes fronteiriços, constatou a ausência do sentimento do Eu amado, distúrbios nas relações parentais, nos dois primeiros anos de vida. Esses pacientes se apresentavam com uma excessiva sensibilidade à dúvida e à desconfiança no analista, vivenciando alterações ambientais como abandono. Os pais não haviam oferecido constância, amor, nem tampouco a ordem simbólica; estes pacientes necessitavam ser freados, para sair do estado de exasperação em que se encontravam.

A falta de identificação adequada não permitiu a neutralização das pulsões agressivas e sádicas; na independência progressiva do meio familiar predominou o temor de desintegração, a ansiedade de aniquilamento. Esses pacientes possuíam uma baixa capacidade para amar, para formar novas identificações, para aprender com os outros.

 

O Narcisista Contemporâneo

Para concluir essas idéias gostaria de recordar a história do escritor que inspirou este estudo. A história de um escritor, um jovem que viveu e morreu no século XIX, mas que refletiu sentimentos que ultrapassaram sua geração. Seus afetos, seus temores, sua perseverança em tratar da dor e da morte não me parecem distantes das vivências de alguns dos nossos jovens na atualidade. Eles continuam repetindo em suas histórias a desilusão e o vazio. Evidenciam a escassez do cuidado, a ausência de castração, a tal ponto que não suportam efetuar a separação do mundo infantil arcaico. Eles não têm sentimentos de estabilidade e de amor em relação a si mesmos e aos outros.

Eles não puderam internalizar as funções materna e paterna, tão vitais para amarem adequadamente a si mesmos, os semelhantes, a vida. Não conseguiram avançar, caminhar, construir ideais e perspectivas futuras.

Para muitos a morte sem parentalidade é o destino. A impossibilidade de representar a si mesmos, de lidar com as pulsões e torná-las menos temíveis significa a dura realidade da falta de olhar, da presença do Outro.

A ausência da superação do processo de separação e individuação provocou o confronto com a angústia liberada pelas exigências pulsionais, levando-os a relacionamentos perigosos na busca de gratificação.

Não pretendo sugerir que o jovem escritor, escolhido para ilustrar este trabalho, apresentava problemas narcísicos. Penso que ele conseguiu contar em suas histórias o que muitos adolescentes colocam em ato, não mantêm na fan-tasia, por incapacidade de simbolizar.

Morrem ou se deixam morrer por não suportarem a dor de serem enganados, ou enganar os outros. Ferem, ou se deixam ferir, para suprir o medo, as necessidades e os desejos nunca satisfeitos. Assustam, ou vivem assustados, porque só vêem os pedaços de si mesmos e dos outros. Não há estabilidade, coesão, matiz afetivo no que fazem. O prazer é buscado na morte, no escuro, na noite, na Taverna...

 

Bibliografia

AZEVEDO, Álvares. Noite na taverna. São Paulo: Atual, 1992.        [ Links ]

BLOS, Peter. Adolescência. São Paulo: Martins Fontes, 1994.        [ Links ]

FREUD, Sigmund (1920). “Além do princípio de prazer”. Obras completas de Sigmund Freud, ESB, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1987.        [ Links ]

KERNBERG, Otto. Agressão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.        [ Links ]

MODELL, A. Amor objetal e realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1973.        [ Links ]

WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade. São Paulo: Martins Fontes,1975.        [ Links ]

WINNICOTT, Donald. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas,1983.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. Protasio Alves, 1981/309
90410–002 – Porto Alegre – RS

Recebido em 12/03/2006
Aceito em 10/05/2006

Creative Commons License