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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.30 Belo Horizonte Aug. 2007

 

 

Função: Estamira

 

Function: Estamira

 

 

Edson Luiz André de Sousa1

Associação Psicanalítica de Porto Alegre

 

 


RESUMO

Este ensaio aborda o filme de Marcos Prado, Estamira, lançado em 2006. O filme acompanha a vida de uma mulher que olha o mundo através de seu trabalho em um aterro sanitário no Rio de Janeiro. Percebemos na boca de Estamira o poder da palavra, sua indignação diante das violências que sofreu, mas, sobretudo, o poder de criação e resistência de seu testemunho. Arte e Psicanálise encontram-se neste ponto quando apostam no poder de sua narração endereçada a um outro como uma forma de reconfigurar a vida.

Palavras-chave: Estamira, Cinema, Testemunho.


ABSTRACT

This essay approaches Marcos Prado’s movie, Estamira, launched in 2006. The movie follows the life of a woman who looks at the world through her job in one landfill in Rio de Janeiro. We perceive in Estamira’s mouth the power of the word, her indignant to the violence that she suffered, but, over all, the power of creation and resistance of her testimonial. Art and Psychoanalysis meet at this point when they bet on the power of this narration that is addressed to the other as a way to reconfigure life.

Keywords: Estamira, Movie, Testimony


 

 

“... eu osso de sons
sendo
no lixo
a sós entre
escombros...”


Anelito de Oliveira**

 

Estamira, filme de Marcos Prado de 2006, nos introduz em uma experiência de limite. O espectador fica capturado em uma espécie de suspensão, com o risco iminente de submergir na radicalidade das imagens. Todo o limite, como sabemos, nos joga na tensão entre a forma e a sua dissolução. Talvez seja justamente esta tensão que a arte produz: a forma que recorta o mundo para nos apontar o visível em sua potência de enigma.

Estamira nos surpreende com inúmeros excessos: da miséria, da dor, da negligência, da violência, do abuso sexual, das toneladas de lixo que chegam diariamente no aterro sanitário do Jardim Gramacho na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Este excesso, contudo, é contido, em parte, na determinação de Estamira, uma mulher de 63 anos, diagnosticada como esquizofrênica, e que há mais de 20 anos vive recolhendo seu sustento no lixão. Ela fala, grita, pensa, demonstra, faz, olha, argumenta. Sua voz é o fio condutor de toda a narrativa do documentário, e revela o quanto o poder narrar e expressar um sofrimento faz a vida resistir, mesmo no meio dos escombros e dos detritos. Por isto, este filme fala de limite. Mário Peixoto (2002), em um de seus inúmeros poemas sobre o mar, traz uma imagem inquietante e infelizmente tão atual. “Há os que preferem não ver. A vista das coisas é profunda demais para tão pequeno contato”. No conforto do cinema podemos ouvir e ver a vida resistindo em palavras, e tirando da invisibilidade e esquecimento tanta potência. Diante da tela, fazemos contato com nossa cegueira, contato com nosso desprezo pelos miseráveis, contato com o que é abjeto e nojento, sensações que nada mais são do que ver o que produzimos nas mãos de outros e nas bocas de outros.

 

Testemunho

Estamira parece se sustentar no testemunho de uma experiência que se esforça em transmitir. Como ela mesma diz: “A minha missão, além de ser a Estamira, é mostrar a verdade, capturar a mentira e tacar na cara”. A palavra adquire, portanto, uma dimensão de salvação e de força crítica, e surge para revelar um potencial analítico rico de uma realidade cruel e injusta. Neste ponto, a vida de Estamira comprova, com todas as letras, o que Milton Santos aponta como o papel dos pobres em nosso contexto social:

A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. Miseráveis sãos os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta. (SANTOS, 2000, p. 132).

Podemos ver no filme a sensibilidade de uma mulher que faz dos restos do mundo uma espécie de transfiguração de sentidos. Assim, o resto, ao passar por suas mãos, por seu pensamento, por seu discurso, adquire uma outra significação. Ela chega a fazer uma elaboração sobre o estatuto do resto dizendo que no lixão onde trabalha, “as vezes, é só resto, e, as vezes, vem também descuido. Resto e descuido.” É neste ponto preciso, que Estamira nos indica uma função do olhar, pois é desde sua posição singular que pode recuperar um estatuto, para aquilo que foi rejeitado e eliminado. Junto com o lixo vêm, evidentemente, muitos pensamentos e imagens de uma sociedade do exagero, do consumo compulsivo, do descuido e da negligência. Estamira dedica-se, pacientemente, a uma análise deste panorama, discorrendo uma série de teses sobre a vida. Seu trabalho do pensamento é rico em imagens, definições e metáforas. Faz distinções importantes entre trabalho e sacrifício, entre o ser ruim e o ser perverso, entre a doença mental e a perturbação, entre o homem ímpar e a mulher par, entre os espertos e os espertos ao contrário, entre o além e o “além dos aléns”. Produz, na minha opinião, uma autêntica e rigorosa teoria sobre o laço social e que Marcos Prado soube tão bem recolher, organizar em imagens e apresentar em seu filme.

 

Indignação

Estamira não tem papas na língua. Sua revolta surge misturada com seu delírio, o qual tem a lucidez de apontar alguns traços do sintoma social de nosso tempo. A burocratização do saber faz-se presente em sua queixa de encontrar doutores “copiadores de receitas”. Interroga, portanto, os automatismos das prescrições e vemos no filme um momento em que se dirige ao serviço de saúde mental dando seu depoimento sobre o estilo do atendimento. Sua fala indica o quanto vivemos em um tempo do apagamento da singularidade. Estamira identifica com precisão este ponto, quando fala com indignação sobre os remédios que lhe são prescritos. Ela diz não entender como podem dar a mesma medicação para tantas pessoas com sofrimentos tão distintos. Mostra sua ficha de consultas e lê pausadamente seu diagnóstico: “portadora de quadro psicótico, com evolução crônica, alucinações auditivas.” Sua leitura é lenta, buscando o som de cada sílaba e nos dando a nítida sensação da pobreza do diagnóstico, que tenta capturar e descrever a potência do seu sofrimento. Para escutá-la é preciso de tempo e uma disponibilidade para se orientar em uma história complexa com muitas violências, e que ela sabe narrar com detalhes.

Estamira é como um espelho quebrado que revela fragmentos da vida de muitos brasileiros. Conta, por exemplo, que aos 12 anos foi levada à prostituição pelo avô materno, e revela como foi abusada sexualmente por ele. Segue-se um casamento infeliz, marcado por um enredo tão conhecido: álcool e violência. Ela sabe o valor do que tem a dizer, e o filme se sustenta em grande parte em suas palavras. Aponta uma função enganadora do discurso, na qual podemos identificar a face perversa do poder. Não se trata, deste modo, do engano que é próprio de qualquer equívoco, de qualquer lapso dos quais, como mostrou Freud, restauram a potência de verdade do significante. Trata-se, outrossim, de algo que estaria mais próximo das significações impostas, as quais ela nomeia de “trocadilo”. Segundo ela, este “faz as pessoas viverem na ilusão, e acreditar em coisas que não existem”. O trocadilo cumpre, portanto, a função de ser sua palavra de ordem, na qual concentra sua denúncia em relação às injustiças que sofreu. Situações devoradoras, imagens crocodilos que a engoliram, e que a obrigaram a construir sua vida sempre na fragilidade de um equilíbrio mínimo.

Neste ponto, o filme como método, indica seu parentesco com o trabalho psicanalítico, na medida em que entrega-se a escuta de uma história que se reconfigura pelo simples fato do seu relato. Ao narrar a alguém a sua história, Estamira vai desenhando para o espectador dois cenários possíveis: por um lado, vemos a lógica de clausura em sua vida e que tanto conhecemos no cenário social do Brasil: pobreza, abuso sexual, abandono e agressão por parte do marido, histórias de internação psiquiátrica na família; por outro lado, desenha um percurso de autoria mesmo com todas as adversidades que teve que enfrentar. Tem coragem de expor o que pensa, confrontar a estrutura da religião, e discorrer criticamente sobre a função Deus.

 

Palavras

O documentário é potente em imagens e costurado com uma trilha musical densa, e no ritmo dos contrastes, luz/escuridão, vida/morte, palavra/silêncio, terra/mar. Discordo dos que têm falado que o filme explora uma estetização da pobreza. Prado tenta mostrar outro universo, outro olhar e que nem sempre estamos dispostos a ver. Há muitas imagens eloqüentes e que nos ajudam a pensar: Estamira caminhando em silêncio e um mar revolto no fundo da cena indicando uma espécie de transbordamento interior, e o som inquieto do vento mostram uma monocromia e sinfonia do desespero.

Uma das cenas que mais impressiona é quando um dos amigos de Estamira surge no meio do lixo e começa a apresentar, um a um, seus cachorros. Ele vai nomeando os cachorros e temos a exata sensação do que tanto aprendemos com a arte, de que o ato de nomear é um dos motores da criação. Ele surge, como Fênix do meio das cinzas e recria o mundo com a força das palavras. Aqui, nomear é reconhecer e talvez por isto, Estamira insista tanto em repetir seu nome. Prado foi preciso ao intitular o documentário com um nome próprio. O nome, reconhecido, faz a vida resistir.

 

Língua Estrangeira

Estamira nos coloca poeira nos olhos. Nos sujamos com nossa própria idéia de progresso e, quando vemos aquele burburinho de seres humanos disputando o lixo, junto com os urubus, nos perguntamos, novamente, sobre de que progresso estamos falando! Podemos lembrar aqui uma reflexão do Karl Kraus sobre o sentido do progresso. Ele nos diz em um texto de 1909 que “a máquina serve a grande propagação da poeira”. (KRAUS, 1990, p. 138).

Esta poeira perturba nosso olhar e nos introduz em uma história dos objetos rejeitados. O filme mostra a potência adormecida em toneladas de restos, permitindo que muitas pessoas possam tirar seu sustento de uma pilha de detritos. Como diz Estamira “conservar as coisas é proteger”. Mas, este lixo, que não queremos ver, foi produzido também por nós.

Estamira busca o controle e institui um mecanismo acionado pelo que ela chama seu controle remoto. Em momentos de crise ela se vê ameaçada em seu controle e presenciamos uma fala enigmática, com sons incompreensíveis. Não sabemos o que está dizendo, mas neste contexto, talvez, o mais importante seja como o diz. A voz adquire sua potência de pura voz e, assim, esta mulher tenta narrar o inarrável. Sua voz grita junto com os trovões

Marcos Prado precisou de mais de três anos para preparar este documentário. Soube ser paciente e respeitar o tempo do acontecimento. Teve a autorização de Estamira, e foi para ela que mostrou, em primeira mão, a versão final, pedindo o seu consentimento. Portanto, este é um filme de verdadeira parceria e legitimidade. Prado também produziu em 2002 o excelente documentário “Ônibus 174” dirigido por José Padilha.

Estamira nos humaniza, abre outros horizontes e recupera na voz e gritos de indignação a responsabilidade do viver. Mostra também a mulher/mãe que, mesmo na miséria e mergulhada no sofrimento psíquico, soube cuidar dos filhos. Ela nos indica o limite, mas sonha com o além dele. Ainda bem! Como lembra Ernst Bloch (2005), em seu Principio Esperança, “A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas”. A filosofia de Estamira move-se em outros universos, mas não deixa de mirar esta esperança. Olha o que nos diz: “Tem o eterno, o infinito, o além e o além dos além. Este vocês ainda não viram...”. (BLOCH, 2005, p. 97).

Em um tempo tão asséptico e técnico, seduzido pelo capital e velocidade, pela imagem e as vitrines coloridas, pelo prestígio sem obra e pelos espertos, pela indiferença com o outro, pela violência que nos afoga, e o silêncio diante do horror, pela burocratização do amanhã, o “além dos além” pode ser simplesmente a recuperação de uma sensibilidade que possa se indignar diante do intolerável. Não basta o talento e a coragem de mostrar em imagens esta realidade, como fez Marcos Prado, é preciso ainda de pessoas que queiram ver, cumprindo a fundamental função de testemunhar. Certamente, destas imagens outras atitudes surgirão.

 

Referências

BLOCH, Ernst. Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Editora Contraponto e Editora da UERJ, 2005, p.97        [ Links ]

KRAUS, Karl. La littérature démolie.Paris: Editions Rivages, 1990, p. 138.        [ Links ]

PEIXOTO, Mário. Poemas de permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2002, p. 63.        [ Links ]

SANTOS: Milton. Por uma outra globalização – do pensamento única à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p. 132        [ Links ]

 

 

Recebido em 23/05/2007

 

 

1Psicanalista. Analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Professor do PPG Artes Visuais e PPG Psicologia Social da UFRGS. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII. Pesquisador do CNPq. Autor dos livros Freud (SP: Editora Abril, 2005) e Uma invenção da utopia (SP: Lumme Editor, 2007)
** Fragmento do poema Além da Pele. Este poema encontra-se na coletânea organizada por Claudio Daniel e Frederico Barbosa intitulada “Na virada do século – poesia de invenção no Brasil” , Landy Editora, São Paulo, 2002, p. 42 . Anelito de Oliveira é poeta e jornalista e vive em Belo Horizonte

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