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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.30 Belo Horizonte ago. 2007

 

 

Uma vivência analítica1

 

An analytical experience

 

 

Luís Antônio Franckowiak Pokorski*

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo analisa quatro sonhos, situando-os no contexto de uma vivência analítica. Ressalta a dor da perda e o processo de elaboração do luto. Relata uma vivência. Resgata uma memória, um afeto, dando um sentido à dor, mostrando que os traços indeléveis de cada membro fazem o Círculo pulsar.

Palavras-chave: Sonhos, Análise, Elaboração da perda, Vínculo analítico, Círculo Psicanalítico.


ABSTRACT

The article analyzes four dreams, placing them in the context of an analytic experience. It points out the pain of loss, the process of dealing with the grief. It reports an experience. It brings back memories, affection, giving meaning to pain, showing that the indelible features of each member make the Circle vibrate.

Keywords: Dreams, Analysis, Loss Elaboration, Círculo Psicanalítico.


 

 

Naquele segundo semestre de 2006, eu vinha pensando no tema a apresentar na nossa jornada de encerramento de ano. Contudo, nesse meio tempo, veio a perda do Chico, por nós tão sentida. Há pessoas que passam a ocupar um lugar especial em nossa vida. Todo luto é difícil. A separação e a perda doem.

Pensei então em escrever algo sobre essa vivência de perda. Vivência difícil de simbolizar, de passar. Mas é algo tão real, existencial, parte da minha formação e, creio, parte também da alma do nosso grupo do Círculo. Este artigo quer ser uma crônica, uma vivência, uma memória, um gesto de gratidão. Começo apresentando quatro sonhos que vivenciei após o falecimento do nosso colega Chico.

Sonho 1. O cenário do sonho era nosso sítio São Chico de Assis em Arroio Kamph, Igrejinha (RS). Estávamos eu, Einstein e um professor assistente, como eu, do Colégio Anchieta, com formação em Física, sob o imenso pé do açoita-cavalo (árvore nativa, comum na região) localizado ao lado de nossa casa. Havia uma pedra de uns 20 quilogramas amarrada a uma corda, formando uma espécie de raio, estando sua outra extremidade atada ao tronco da árvore. A partir do movimento característico da pedra, eu lhes descrevia o funcionamento dos planetas. Terminada minha explicação, de um modo meio indireto, perguntei-lhes: – Não é isso mesmo? Ao que Einstein respondeu: – “Ééé... É mais ou menos isso aí!”

Sonho 2. Eu estava no sítio, mesmo local do primeiro sonho. Reunira-me com um grupo de alunos e dava uma aula. Suspendi-a, indo até a porteira de entrada da propriedade para abri-la, pois no morro, aproximava-se uma imensa nuvem escura, anunciando grande tempestade. A minha esposa saíra de carro e precisava entrar. Ao mesmo tempo, via o grupo do Círculo aproximar-se pela estrada, já nos limites do sítio. Ao mesmo tempo, ao lado da propriedade, havia um homem idoso, pai do senhor que nos vendeu a terra. Ele estava parado ao lado de uma carreta puxada por uma junta de bois. Logo estava eu, diante de um dos bois, o negro. Fiquei, então, observando o seu olhar ensimesmado, distante...

Sonho 3. Organizávamos uma refeição. Estava presente o pessoal do Círculo. Alguém observou que a rolha de uma das garrafas de vinho estava furada e a mesma, vazia. Afirmei, então, que nos venderam um produto falso, mas que não se preocupassem: nós tínhamos um bom vinho comprado em Gramado.

Sonho 4. Chegava eu para a sessão de análise com o Chico, mas me surpreendi ao não encontrá-lo, deparando-me com duas analistas deitadas num grande divã. Ao lado, de pé, estava um analista que se dirigiu a mim afirmando: – “Mas eu sou um pouco diferente, este é o meu modo de ser”.

Em nossos seminários, vimos que para Freud, o sonho é a via régia para o inconsciente, a expressão de um desejo. Os quatro sonhos ocorreram nos primeiros dias após a morte do Chico, meu psicanalista desde março de 2006 e uma escolha movida, talvez, por um processo de identificação. Nos três últimos sonhos, o pessoal do Círculo aparece de modo direto. O meu contato com os componentes do Círculo deu-se em razão da formação analítica da minha esposa. Em dois momentos, o Chico cutucou-me para, também, iniciar o processo de formação: – “Vem para o nosso grupo, tu vais gostar. Vai ser bom teres uma ocupação para quando te aposentares”. Como já recebera conselho semelhante do dr. Natal Fachini, joguei-me nesse desafio.

O carisma muito particular do Chico fazia-se sentir no grupo do Círculo e nos dois seminários que nosso grupo de formação fez com ele em 2006, bem como no meu processo de análise. Fez-me entender, por exemplo, certas atitudes da minha esposa em relação a seus pacientes, como o fato de, nas férias, não interromper, por um período muito longo, o tratamento, pois muitos pacientes se desestabilizam ou podem se desestabilizar. Vivi esse sentimento. Quando o Chico e eu combinávamos o cancelamento de uma sessão, a ”queixa”, de certo modo, aparecia na sessão seguinte, expressando alguma forma de abandono.

Até o aguardar na sala de espera, acompanhado do silêncio da sala de atendimento, ocorrido certo dia quando o Chico saíra brevemente, foi desconfortável, sendo interpretado como um “será que este cara vem, não me abandonou?”. A necessidade de retirada de uma hérnia, que acarretaria na suspensão de uma ou outra sessão, despertou angústia e alguns medos. Segundo o Chico: – “Pô, esse cara me botou ‘nessa’ [processo de formação] e está me deixando numa fria! Daqui a pouco, este cara morre e me abandona!” Mas o Chico sempre tranqüilizava, reafirmando a simplicidade da intervenção ambulatorial.

Nesse meio tempo, surgiu a necessidade de fazer um cateterismo. O Chico voltava a insistir, intensamente, na simplicidade e brevidade da intervenção médica. Násio afirma que, numa sessão analítica, há o encontro, a fala de dois inconscientes. Creio que eu captava algo. Às vezes, o próprio Chico, na sua interpretação equilibrada e madura, durante a sessão, na saída ou até em nosso seminário, quando trocávamos conversas informais, deixava transparecer, com seu jeito brincalhão, uma sutil preocupação com o fato. Creio que foi na última sessão, antes da intervenção cirúrgica e a terceira do mês, que me surgiu a imagem de estar pagando as três sessões para sua mulher. Com certo constrangimento, falei-lhe sobre essa imagem. E isso em breve se efetivou. Como é de nosso conhecimento, o Chico, por complicações cirúrgicas, não resistiu.

Os quatro sonhos ocorreram nos primeiros dias de seu falecimento. O sonho 1, na primeira noite após sua morte. Despertei em seguida, ficando acordado por quase uma hora, tendo como que vivenciado uma hora de sessão na tentativa de interpretá-lo. No sonho, o professor com formação em Física é o Chico, sendo que este já aparecera em outro sonho e tem alguns traços do Chico, como a altura, a semelhança no nome, a serenidade, o sorriso e as risadas brincalhonas. A pessoa do Einstein lembrou-me a própria análise (“A”), pela construção da pronúncia “ainstain”. Esse personagem, ao mesmo tempo, remeteu-me à imagem de Deus, com aquela expressão de um velho sentado, com suas longas barbas e cabelos brancos de meu imaginário infantil, que me levava, “tirava” a vida do Chico. Não dá para esquecer que Einstein também tinha um ar maroto, brincalhão, uma leve e fina ironia. No sonho, os dois escutavam minha explicação sobre o mecanismo dos planetas, ou seja, eu estava, na verdade, no processo analítico, colocando alguma ordem no meu psiquismo, mas Einstein, diz, no final: – “Ééé... É mais ou menos assim!” Vejo aí a realização do desejo de elaborar a perda, uma forma de lidar com o luto, quem sabe a presença de uma castração. A gente cria, estabelece uma ordem, mas a realidade vem quebrá-la. A morte do Chico vem quebrar um processo de transferência que se forjara nos meses de análise. Tudo, de repente, “quebra-se”. É mister se criar uma nova ordem, reestruturar-se, apesar de nessa ordem existir a presença da “pedra”, do obstáculo, da dor, da realidade.

Podemos ainda relacionar a figura de Einstein ao papel que o analista ocupa para o analisando, segundo Lacan, o sujeito suposto saber. O analisando supõe que o analista possui o saber que lhe concerne e do qual ele precisa.

Os demais sonhos, creio, que também, situem-se nessa elaboração de uma perda. Percebo, neste meu ainda incipiente processo de análise e formação, que a pessoa do analista fica incrustada na nossa pele, impregna o nosso ser, nosso psiquismo, ou seja, cria-se um vínculo analítico. Reelaborar uma perda, no mesmo, é um processo penoso, doloroso. O próprio Chico dizia que, às vezes, não sabia por que estava neste barco, mas destacava os laços afetivos no grupo do Círculo. Dizia: – “Essa coisa [a Psicanálise] é uma cachaça!”

No sonho 2, aparecem as pessoas do Círculo, minha esposa, nosso sítio onde faríamos a jornada de fim-de-ano de 2006 (o Chico, nesse meio tempo, dissera várias vezes que se recuperaria e estaria lá e nós ansiávamos por recebê-lo, juntamente com o grupo). A junta de bois me remete à relação com o analista e o boi preto fala da morte, da castração. Diante da morte, certamente o olhar fica perdido, distante, num certo ensimesmamento, onde a fala cala e o silêncio pode tentar falar. O senhor que guia a carreta pode remeter à própria questão religiosa dos desígnios divinos da vida e, também, pode ser uma referência ao pai.

No sonho 3, nosso grupo estava numa confraternização, preparando uma refeição. Refere-se, como no sonho 2, à jornada em nossa casa, que se realizaria em breve (à época). A garrafa de vinho com a rolha furada e praticamente vazia remete-me à ausência, à morte, à dor, à perda. O luto gera um vazio. Diante da frustração, da perda, porém, há o anelo por continuar. A vida prossegue. É o jogo da existência – “Nós tínhamos um vinho bom, comprado em Gramado”. A refeição lembra reunião, acolhimento, confraternização, a presença importante do outro, o consolo. E o vinho se fez presente em tantas refeições!

Já no sonho 4, vejo-me no desejo de busca de amparo. O Chico nos deixou, mas o processo de análise e formação precisa continuar. No sonho aparecem os principais membros do Círculo. Preciso, num processo transferencial, optar entre o pai e a mãe. É o Chico que busco, pois estou indo para minha análise (no inconsciente não há tempo), surpreendendo-me por não o encontrar. Contudo, para minha surpresa, havia ali três analistas. Com um deles, eu deveria continuar meu processo analítico. Era um modo de elaborar a perda, apesar de tudo. Ao entrar no gabinete, o foco no sonho passa a ser o analista – “Mas eu sou um pouco diferente, este é o meu modo de ser” –, o outro, o diferente do Chico. Assusta esse corte, essa ruptura, há certo receio, medo... Alguns dias depois, eu procurava esse analista para dar continuidade à análise, apesar das férias que chegavam.

Trouxe essa experiência analítica pelo fato dela revelar um processo de vivência do luto e de elaboração da perda. E se, como já escutei, tantas vezes, no nosso Círculo, a Psicanálise aos poucos nos penetra a pele e se incrusta na nossa alma, trouxe essa vivência no sentido de resgatar uma memória, um afeto, dar um sentido à dor, destacar que todos somos nossa subjetividade, mas nela trazemos os traços indeléveis de cada um de nós, que fazemos o Círculo pulsar.

Há a morte. Há a vida. Fica um pouco da dor, mas perduram as lembranças. Vão-se as feridas... É preciso apostar na vida!

 

 

Endereço para correspondência:
Av. João XXIII, nº 525, bloco C, ap. 602
cep 91060-100
Porto Alegre, RS
fone 51.33471604.
E-mail:luismelania@yahoo.com.br

Recebido em 29/05/2007

 

 

1Homenagem ao Chico, Dr. Francisco Luiz Lobraico, médico, psicanalista e membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul, falecido em 26.11.2006
* Graduado em Filosofia. Professor de filosofia, sociologia e história do ensino médio. Candidato em formação psicanalítica no Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

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