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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.30 Belo Horizonte ago. 2007

 

 

As intervenções nas residências terapêuticas: o que a psicanálise tem a dizer sobre essa clínica?1

 

The interventions in the therapeutic residences: what does the psychoanalysis have to say on that clinic?

 

 

Maria Cristina de Azevedo Mendonça*

Círculo Psicanalítico de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Falar sobre as intervenções clínicas a egressos de longos períodos de internação psiquiátrica situam os psicanalistas diante de questões que desafiam, permanentemente, esses profissionais na sua prática cotidiana. Aceitar esse desafio é tentar situar a clínica psicanalítica além dos limites e contextos tradicionalmente estabelecidos. Este trabalho aborda as contribuições da psicanálise e dos psicanalistas na reestruturação das políticas públicas de saúde, mas, especificamente, no campo da reforma psiquiátrica. Constitui um testemunho da construção de intervenções clínicas no processo de transição do hospital para as residências terapêuticas e das repercussões na clínica desses sujeitos. A transferência dos pacientes em relação a equipe se impôs como um dispositivo norteador do processo.

Palavras-chave: Psicanálise, Sujeito, Residência Terapêutica, Transferência.


ABSTRACT

Approaching clinic intervention to patients coming from long period in psychiatric hospitals places psychoanalysts, during their daily practice, before constantly challenging issues. Accepting these challenges means trying to situate the psychoanalitic clinic beyond the borders and contexts traditionally established. This article approachs the contribution and insertion of psychoanalysis in the reorganization of public policy, particularly in the subject of psychiatric reform. It consists on a testimony about the construction of clinic intervention in the transition process from the hospital therapeutic residences, as well of the repercussion in clinics of these patients. The transference of the patient relating to the technical team was important as a guiding device to the process.

Keywords: Psychoanalysis, Subject, Therapeutic residences, Transference.


 

 

O interesse dos psicanalistas sobre a contribuição da psicanálise para o sistema de saúde pública vem se ampliando. Esse interesse é, relativamente, novo, uma vez que, por muito tempo, questionou-se como aplicar a psicanálise para além do enquadramento dos consultórios privados, aliando-se, também, à resistência dos psicanalistas frente aos impasses e desafios que essa outra clínica apresenta. Essas novas incursões da psicanálise requerem, muitas vezes, que o psicanalista esteja inserido numa rede de saberes e enfrente o desafio de sustentar a ética da psicanálise. Esse confronto, no entanto, põe os analistas diante de desafios que possibilitam a continuidade da construção do saber psicanalítico, sendo de fundamental importância que, a psicanálise amplie seu campo de ação nessas novas demandas, seja pela contribuição que tem a dar, como também, para avançar na construção do seu conhecimento teórico.

A psicanálise tem sido convocada a ser aplicada em diversas áreas: educação, saúde, enfim, em muitas outras instituições. Essa convocação requer que os analistas sustentem teórica e clinicamente suas intervenções em campos mais amplos, seja pelos diversos níveis de poder sócio-econômico, seja diante dessa nova clínica.

Freud já antevia essa incursão no sistema público de saúde em seu texto Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica. Nele, contextualizava a clientela para qual o psicanalista dirigia-se naquela época (em 1918) e previa: “um dia a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem, exatamente, tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem agora a ajuda oferecida pela cirurgia, pois as neuroses ameaçam tanto a saúde pública quanto a tuberculose, e, como esta, também não podem ser deixadas aos cuidados impotentes de membros individuais da comunidade.

Quando isto ocorrer, haverá instituições ou clínicas de pacientes externos, para os quais serão designados médicos analiticamente preparados. Tais tratamentos serão gratuitos. Defrontar-nos-emos, então, com a tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições2.

Freud indica dois pontos fundamentais neste texto: a importância da psicanálise não ficar restrita aos consultórios privados, e o fato da clínica precisar ser, constantemente, construída.

Lacan, na Proposição de 9 de outubro de 1967, referindo-se ao psicanalista da Escola, define psicanálise em extensão como: “tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo“ e, psicanálise em intensão como “psicanálise didática, não fazendo mais do que preparar operadores para ela”3. A psicanálise em intensão passa pela demanda de análise e se dá através dela no curso do tornar-se analista. Já a psicanálise em extensão, tem a tarefa de dar o testemunho do saber psicanalítico, tornando a psicanálise presente no mundo.

Nos dois casos a ética da psicanálise deve ser sustentada a partir do desejo do analista que guia a relação com o seu analisado e sustenta suas intervenções no campo aberto do social.

A psicanálise tem um corpo de saber teórico, técnico e específico. No entanto, isto não pode ser justificativa para ser exercida, exclusivamente, no âmbito dos consultórios privados. Como afirma Eric Laurent: “Há de se passar do analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa; um analista sensível às formas de segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora”4. Enfim, um analista interessado em fazer interlocuções com questões sociais, clínicas e políticas.

Uma das áreas em que a psicanálise tem deixado sua contribuição é a da Reforma Psiquiátrica. Ao longo da história da psiquiatria, buscou-se instituir mudanças nas formas de assistência: a princípio a de transformar o funcionamento dos hospitais, tornando-os mais terapêuticos, depois surgiu a idéia de extinção completa e radical dos manicômios. Hoje, o grande desafio é proceder à substituição dos hospitais por uma rede de cuidados capazes de assistir os pacientes nas crises e num processo mais amplo de reinserção social.

Para isso, faz-se necessário uma articulação não só de políticas públicas, mas também, a construção permanente de dispositivos de intervenção clínica. Os psicanalistas têm participado, efetivamente, para a concretização da reforma, seja na construção e implantação de políticas públicas, na supervisão dos serviços ou como integrantes das equipes técnicas. A psicanálise, inclusive, firmou-se como um dos pilares que está na base das diretrizes estabelecidas por esse movimento.

O discurso freudiano inscreveu a experiência da loucura no campo da verdade, localizando o sujeito justamente nas manifestações que, antes de Freud, eram vistas como afastamento da verdade e da razão, empecilhos à plena realização do sujeito, redefinindo assim, o campo da abordagem da loucura. Premissas freudianas de que o sintoma tem um sentido e tem a ver com a experiência singular do sujeito, bem como, a importância da escuta do discurso do sujeito, estão na base de sustentação do movimento da reforma psiquiátrica. Assim, como Freud atribuiu um saber à histeria, a reforma busca recolocar o louco no lugar de sujeito, deslocando-o do lugar de alienado para o do homem em sofrimento.

Traz a idéia de que não haveria nenhum progresso, caso se tratasse os pacientes num espaço onde a vida não fizesse sentido para eles. Por isso, propôs uma mudança na assistência, descentrando o lugar do tratamento do hospital para uma rede substitutiva à internação. Uma reversão do modelo introduzindo outras ferramentas de manejo além de supressão de sintomas e abrindo um espaço onde a fala do sujeito possa se expressar sem o aprisionamento da lógica manicomial alienante. Como bem lembra Goldberg:

Uma abordagem integral da loucura, plena de recuos, riscos e pequenos avanços ancorada tanto em teorias tradicionais e contemporâneas da psiquiatria, como no diálogo com outras áreas e na fundamental incorporação de toda uma bagagem de conhecimentos práticos5.

No entanto, a inversão proposta não deve ser a de negar a existência do sintoma, mas a partir daí, ir buscar a existência do sujeito, ou seja, através da escuta do sintoma, chegar ao sujeito ali representado. Porém, apesar de basear-se em algumas premissas freudianas, a reforma centra as suas políticas e ações no resgate da cidadania e da reinserção social do louco.

Marcelo Veras nos lembra os riscos desse funcionamento:

Ao integrar o louco no mundo da cidadania, cria-se mais um ideal que pesará sobre o sujeito em relação com a instituição, ou seja, ideal da re-socialização. Não há reivindicação de direitos que não seja presidida pelo imperativo de um ideal, ou seja, na demanda do Outro pelos próprios direitos, o cidadão está sempre certo. Ele tem o Outro como garantia e a identificação como direito assegurado pelo estado6.

Uma demanda idealizada, sustentada, muitas vezes, por trabalhadores da saúde mental que acreditam haver uma dívida social para com os loucos que deve ser quitada. A psicanálise não propõe restituir a sanidade mental perdida, nem tornar neurótico um psicótico, ou mesmo adaptá-lo à sociedade, ou torná-lo cidadão. Propõe-se oferecer ao sujeito, a possibilidade de enfrentar, de outra maneira, a existência, ocupando outra posição frente ao seu fantasma e seu gozo.

Neste texto, exploro minhas idéias sobre o trabalho que desenvolvo junto a rede de saúde pública do Recife para mostrar a contribuição da psicanálise na reestruturação das políticas publicas em saúde, e na construção de intervenções na execução destas. Especificamente aquelas que tratam da reforma psiquiátrica nas intervenções que envolvem a clientela de longa permanência interna em hospitais psiquiátricos.

O modelo hospitalocêntrico põe o hospital no centro da assistência, restringe o tratamento à eliminação de sintomas e aos ajustes da medicação. Esse modelo, adotado durante muito tempo, e, de certa forma, ainda presente, apesar dos esforços do movimento da reforma psiquiátrica, deixou uma legião de sujeitos em estado de miséria humana: pessoas segredadas do mundo, desabilitadas para as atividades diárias, despossuídas de individualidades. O paciente hospitalizado está privado de qualquer possibilidade de decisão sobre si mesmo, e sobre a instituição na qual vive. Como lembra Manonni:

As estruturas da instituição, no momento em que não permitem às emoções se traduzirem numa espécie de manipulação dialética, fixam o sujeito em suas defesas de aspectos estereotipados. Este se mostra com as vestimentas da loucura que lhe fornece a psiquiatria clássica, à falta de ter podido determinar-se com precisão na angústia que o conduz, o doente mental procura os sinais de sua identidade nos critérios de objetivação diagnóstica. Permanece como um maníaco, um esquizofrênico, pura verdade do saber psiquiátrico7.

O programa “Rehabitar” que coordeno, atualmente, foi elaborado pela Secretaria de Saúde do Recife, para fazer frente à problemática da clientela de longa permanência (ou seja, pacientes internos em hospitais psiquiátricos há mais de dois anos). Ao longo da história da psiquiatria, foi construída a idéia de que essa clientela apresentava um funcionamento crônico, nada poderia ser feito no sentido de evolução do seu quadro clínico, restando-lhe, portanto, apenas como alternativa, permanecer na instituição até o final de sua vida. Este programa tem, como um de seus objetivos, propiciar que, o paciente volte a habitar uma casa, seja a casa da sua família, seja uma residência terapêutica. Focalizei as minhas considerações no trabalho desenvolvido nas residências terapêuticas, consideradas como um elemento fundamental na estratégia de desospitalização e desintitucionalização psiquiátrica.

O primeiro momento da ação se dá através do mapeamento da clientela de longa permanência interna nos hospitais psiquiátricos, situados no município do Recife. Esse mapeamento é realizado através de uma avaliação dos pacientes e de seus familiares, com o objetivo de definir qual a melhor forma de conduzir o processo de desinstitucionalização de cada um deles. A implantação das residências requer uma articulação dos segmentos institucionais de saúde e da comunidade, no sentido de promover a reinserção social dos moradores recém-saídos dos hospitais. Para tanto, faz-se necessário duas ações simultâneas: a instalação da infra-estrutura da casa (aluguel da casa, instalação de linha telefônica, compra dos equipamentos necessários, etc.), e a mobilização da rede de cuidados em saúde. Para cada residência é definido um técnico de referência da equipe do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), que tem como funções: triagem/seleção dos moradores, acompanhamento e preparação dos moradores durante o processo de transição entre o hospital e a residência, acompanhamento sistemático das residências, seleção, capacitação e supervisão do trabalho dos cuidadores.

Os cuidadores são técnicos que desenvolvem suas funções junto às atividades diárias dos moradores, funcionando como um agente facilitador no processo de reabilitação psicossocial incluente.

A desinstitucionalização exige um trabalho que se inicia durante o internamento. São realizadas várias atividades, destacando-se discussões com a equipe do hospital que presta assistência ao paciente, reconhecimento do território onde a moradia será implantada e acompanhamento da instalação da infra-estrutura da casa. Tem sido um dos desafios permanentes, desse processo a dialética entre o coletivo (dispositivos institucionais, burocráticos necessários para garantir a implantação e manutenção das residências), e o singular (singularidade de cada paciente). Considerando as características específicas desta clientela, estabelecemos um monitoramento contínuo das residências, que vai sendo espaçado na medida em que os moradores vão adquirindo um maior grau de autonomia.

A coordenação do “Rehabitar” faz um acompanhamento do funcionamento das residências através de reuniões sistemáticas e de fóruns onde são realizados estudos teóricos e discussões técnicas sobre a implantação, o funcionamento e o monitoramento das residências com as equipes que fazem parte do programa. A experiência vem nos mostrando que, do lugar da coordenação, um psicanalista pode situar sua contribuição nos procedimentos clínico-institucionais (que dizem respeito à implantação, funcionamento e monitoramento das residências), bem como, na construção das intervenções e condutas terapêuticas frente aos moradores. A atitude analítica não deve ser monopólio do analista. Portanto, é possível transmitir aos não-analistas conceitos e princípios gerais da psicanálise que os leve a uma prática que se realimente a partir dessa compreensão.

O início da moradia nas residências tem sido marcado por momentos de desestabilização. Nessa mudança de lugar concreto de moradia, o paciente é demandado pela equipe a sair do lugar de objeto para o lugar de sujeito. Essa vivência funciona, no caso dos pacientes psicóticos, como uma injunção simbólica que desencadeia as desestabilizações do sujeito, algo que ele não pode responder no nível simbólico, portanto, sua resposta vem no real através das desestabilizações. Uma injunção simbólica numa estrutura, que vinha se sustentando na proteção mórbida, que o hospital representa para o sujeito. Um processo que se inicia com a própria escolha do paciente, pois dentre os indicados para morar na residência, alguns escolhem permanecer no hospital. Se por um lado, o hospital cronifica, por outro, protege o sujeito de entrar em contato consigo mesmo e com os outros. Voltar à vida na sociedade significa enfrentá-la, novamente, com todos os riscos, incertezas e perdas aí implicadas (Alberto, ao conhecer a casa onde ia morar, solicitou que os muros fossem levantados de forma que não pudesse ver a rua). Maria, no dia anterior à mudança para a casa, enquanto arrumava suas roupas disse: “acho errado o governo estar tirando os loucos do hospital. Na parede do hospital está escrito: o doente mental é frágil, é isso mesmo, eu não sei fazer nada, não vou fazer serviço nessa casa”.

Um outro aspecto que parece estar na base dessas desestabilizações, é o confronto com a concretude do abandono familiar. Durante a permanência no hospital muitos guardam a fantasia de que seus familiares virão lhe buscar quando seu tratamento for concluído “meu irmão vem me buscar, disse um deles. É porque ele está sem o dinheiro da passagem”. Um dos critérios para definir a ida para a residência é terem sido esgotadas todas as possibilidades de retorno à família.

Com o passar do tempo, observamos mudanças significativas na clínica desses moradores: da repetição inicial de hábitos manicomiais, tais como, andar sem roupas, permanecer deitado o tempo todo, passivo ao ambiente, passaram a se implicar nas atividades da casa, escolherem as comidas, cuidarem de si, de sua aparência e iniciarem uma incursão no social. Um caminhar contínuo do estar para habitar, como define Benedeto Saraceno:

O estar tem a ver com a escassa ou nula propriedade (não só material) do espaço por parte de um indivíduo, que, no dito espaço, não tem poder decisional nem material, nem simbólico. O habitar tem a ver com um grau sempre mais evoluído de propriedade (mas não somente material) do espaço no qual se vive, um grau de contratualidade elevado em relação à organização material e simbólica dos espaços e dos objetos8.

Uma ativação de desejos e habilidades ligados ao habitar. Assim, cada morador vai situando o significado do morar em sua história singular. Revisitando sua história, o seu passado, não como algo perdido, mas como um retorno que permite, pelo jogo das substituições imaginárias, uma retomada do simbólico. A produção do sujeito, como definiu Fernando Tenório: “Não é nem reencontro de um ser de sujeito preexistente nem resultado final de um processo cumulativo no qual conquistados tais e tais requisitos temos de agora em diante um sujeito. É uma produção pontual”9. São essas produções pontuais que testemunhamos no cotidiano das residências: deslocamentos de posição subjetiva dentro da estrutura de cada um desses sujeitos. Mas o que permitiu esses movimentos de mudança? A partir da relação com a equipe, é possível emergir a subjetividade escamoteada por anos de hospitalização. A transferência endereçada a técnica de referência possibilita que, o morador ponha em cena sua singularidade e exercite um processo de habitar a si mesmo, habitar a casa e habitar o mundo. Por outro lado, exige deste técnico a sustentação de um vínculo diante desses pacientes, com dificuldades de realizar laços sociais, seja pela peculiaridade de sua estrutura seja pelo longo tempo de segregação. Esse trabalho de escuta feito pela equipe, permite que o morador resgate a história de sua vida e reencontre o fio de sua própria existência. A equipe coloca-se numa posição diferente da instituição psiquiátrica e da família, as quais não escutam o louco, localiza-o no lugar da desrazão e, portanto, nada tem a fazer no mundo, sendo seu destino o enclausuramento.

As reuniões e os fóruns, referidos acima, são espaços de interlocuções permanentes entre as equipes e a coordenação do programa. Um espaço que propicia pensar continuamente qual a atitude da equipe frente aos moradores. As discussões em torno dos vínculos transferenciais e do processo de escuta, permitem à equipe identificar as posições postas em cena nessa relação e os seus desdobramentos. Esse espaço colabora também para que a equipe permaneça protagonista específica, capaz de se interessar pelo paciente, com suas dificuldades e potencialidades, sem encerrá-los numa rede fechada de julgamentos definitivos . Além de atentar para que as intervenções não sejam norteadas por engodos narcísicos, através das armadilhas dos ideais, projetando para os moradores aquilo que a equipe acha que é melhor para eles.

Pela diversidade de formações profissionais, os membros da equipe têm entendimentos diferentes do que é escutar: (acolher, respeitar, ouvir), mas, todos têm algo em comum: o reconhecimento da palavra do morador, a certeza que ele tem algo a dizer e precisa ser escutado. A clientela das residências apresenta uma dinâmica de funcionamento que se caracteriza pela passividade e ociosidade, que mobiliza o outro a pôr em cena seu desejo para aplacar a angústia desencadeada frente a esse vazio. Os cuidadores, muitas vezes, ocupam esse vazio deixado pelos moradores. Isso se expressa nas escolhas cotidianas da alimentação, roupas, arrumação da casa e circulação na comunidade. Além da fantasia de que o grau de eficiência de seu trabalho se mediria pela casa arrumada, estando os moradores limpos, bem alimentados e inseridos na comunidade. Como traduzir o que os pacientes mobilizam, transferencialmente, de irritação, desânimo e desinvestimento em intervenções eficientes? Como mobilizar esse sujeito sem aviltar sua singularidade? Pedro, que durante os primeiros meses de moradia, permanecia deitado e encoberto com um lençol, exigiu um trabalho sistemático com a equipe para que esta pudesse suportar essa cena. Hoje, Pedro já participa do cotidiano da residência, freqüenta um curso de informática, comprou um computador, faz caminhadas no parque, sai para comprar suas roupas.

Como lembra Manonni:

A loucura, sob sua máscara mais impenetrável nos remete então àquilo que, em nós, permanece como núcleo inanalisável, é com este núcleo que estamos às voltas quando nossa interrogação se dirige ao outro. É naquilo que nos escapa do nosso ser que a loucura nos interpela10.

Um outro aspecto importante, tem sido as intervenções junto aos familiares. A relação da equipe de saúde mental com os familiares dos pacientes, ao longo da história da psiquiatria, já fora a de que o louco deveria permanecer no hospital para proteção da sociedade, dos familiares e dele próprio. Passou por embates de responsabilizá-los pela doença e exclusão social dos pacientes, e também, de exigir da família um acolhimento à loucura que está acima de suas possibilidades.

Estas atitudes dificultam o diálogo e traduzem muito mais a nossa angústia diante das dificuldades de reinseção social do paciente do que uma intervenção terapêutica. Podemos afirmar que o vínculo dos familiares com os moradores das residências é, a princípio, um fracasso, na medida em que, a família optou por deixar o paciente no hospital por longos anos. Alguns discursos dos familiares representam bem essas questões: “Vocês inventaram essa história de tirar os loucos de dentro do hospital, estava bom assim [...], ele tava bem cuidado e a gente visitava ele no hospital”; “ele não sabe nada, para que essa criatura precisa de dinheiro? Eu vou lá e compro uma roupinha para ela e tá bom assim“. O louco tem uma função no mito familiar, ocupa o lugar do não desejo e qualquer mudança nessa dinâmica pode romper um pacto defensivo instalado. As intervenções da equipe junto aos moradores e seus familiares caminham no sentido de romper esse pacto, na medida em que, tenta deslocar os moradores do lugar de passividade para uma implicação nas suas vidas e no cotidiano das residências. Consequentemente, a relação dos familiares com as equipes têm sido marcadas por muita tensão.

Vivemos também momentos de enfrentamento das desestabilizações dos moradores que nos põe diante de inúmeros desafios. Como intervir quando um morador ameaça o cuidador ou outro morador, empunhando faca ou quando quebra objetos? Como intervir quando só a palavra não dá conta da intervenção? Como intervir sem atuações, sem repetições manicomiais, mas com atitudes firmes, necessárias à complexidade da situação? Como lidar com a loucura fora do ambiente fechado dos manicômios? Esses têm sido alguns dos desafios com os quais nos deparamos durante o desenvolvimento do Programa “Rehabitar”.

Sabemos, no entanto, que a mudança efetiva de um modelo de assistência manicomial para um outro que se constitua como um espaço terapêutico não se dá por decretos e portarias, mas sim no cotidiano de uma assistência, através da construção permanente das intervenções clínicas. O que requer a implicação dos sujeitos envolvidos nesse processo. Uma aproximação do que há de essencial na loucura. O estar ao lado da loucura e do louco, permitindo sua expressão como existência, para lhe possibilitar estar no mundo para além das grades dos manicômios.

A psicanálise tem o seu lugar nessa construção, na medida em que surge como um corpo de conhecimentos que permite movimentos de aproximações e distanciamentos da loucura, colaborando na construção de uma clínica que dê sustentação a essa mudança.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Rua Padre Roma, 375/801 - Parnamirim
52050-150 – RECIFE - PE
E-mail:manoels@hotlink.com.br / mcam@hotlink.com.br

Recebido em 18/05/2007

 

 

1Trabalho apresentado no XVI Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Natal-RN 31 de agosto a 02 de setembro de 2006.
*Psicanalista.Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco
2Freud, Sigmund .Linhas de progresso na terapia psicanalítica Vol. XVII ,Edição Standard Brasileira das Obras completas de Freud, Imago , Rio de Janeiro,1976, pg210
3Lacan, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 in Outros escritos,Jorge Zahar Editor,RJ,2003 ,pg 251
4Laurent,Eric. O analista cidadão. In Psicanálise e saúde mental. Revista Curinga, nº 13 setembro/99. Escola Brasileira de Psicanálise
5Goldberg, Jairo.Três Projetos Institucionais: Possibilidades de ação. In: Clínica da Psicose, Rio de Janeiro: Tecorá Editora. Instituto Franco Bsaglia, 1994, p. 91.
6Veras, Marcelo. Forclusão da Transferência. In: Opção Lacaniana online, nº 2, 2005. (www.opçaolacaniana.com.br/n2/textod).
7Manonni, Maud. O Psiquiatra, seu “louco” e a Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar editor, 1970, p. 25.
8Saraceno, Benedeto. A Reabilitação como cidadania. In Libertando identidades – da reabilitação psicossocial à cidadania possível. Instituto Franco Basaglia, Editora Tecorá. MG, 1999, p. 114.
9Tenório, Fernando. A psicanálise e a clínica da reforma psiquiátrica. Editora Rios Ambiciosos, RJ, 2001, p. 84
10Manonni, Maud. O psiquiatra, seu “louco” e a psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1970, p. 25.

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