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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.30 Belo Horizonte ago. 2007

 

 

O mal do século

 

Mal de siècle

 

 

Marli Piva Monteiro*

Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O novo sujeito do século do progresso pretende-se onipotente como se desconhecesse limites para o prazer e o desejo. Para ele não há leis nem obstáculos, mas há um preço a pagar no novo mundo. O mal do século não é mais a depressão, mas a perversão.

Palavras-chave: Mal do século, Depressão, Perversão, Limites, Transgressão, Prazer, Desejo.


ABSTRACT

The new progressive world is proposing a new subject – the man who knows no limits, no laws no obstacles to his pleasure and desire. But at what price? “Mal de siècle” is therefore not depression but otherwise perversion.

Keywords: Mal de siècle, Depression, Perversion, Limits, Transgression, Pleasure, Desire.


 

 

Tem-se afirmado, repetidamente, que a depressão é o mal do século. No entanto, acredito que valha a pena questionar a afirmação. Não é que se possa negar o grande contingente dos ditos deprimidos, que vai desde a baixa de humor, a apatia, o desânimo e o pessimismo, até os conteúdos nostálgicos e tristes, que emprestam colorido acinzentado à vida. Nem tampouco pode-se ocultar o fato do aumento de prevalência da doença depressiva em suas multifacetadas apresentações. É verdade que a depressão tem sido responsável por muitos estragos em muitas vidas e bolsos ? que o confirmem os receituários recheados de Prozac ou as farmácias naturais que preparam as fórmulas dos famigerados Florais de Bach. Para não falar das depressões mascaradas, constantes presenças nas salas de espera dos médicos de todas as especialidades, e responsáveis por tantos tratamentos e exames desnecessários e até cirurgias inúteis.

Além disso, a depressão é parceira certa nas mesas dos bares de cada esquina ou clube da terceira idade, onde pseudo soluções propõem um inacessível e constante bem viver, ou nas noites insones dos freqüentadores das salas de bate papo virtual. É inevitável que o pessimismo e a frustração não sejam respostas aos desafios incessantes do progresso, às necessidades permanentes do mercado, à competição profissional e social desenfreadas. A sensação de incapacidade, incompetência para estar sempre em dia, e a percepção da impotência em consegui-lo, tornam-se a cada dia mais insuportáveis. Em função disso, paralisados, muitos são incapazes de reagir.

Mas, talvez, um outro tipo de mal merecesse, quem sabe, a nossa reflexão! Um mal que sorrateiramente se insinua e dissemina no seio das sociedades. Quase imperceptível, sublinear e camuflado. Sim, camuflado, pois quando se fala em perversão, atribui-se-lhe logo o conceito de maldade ou aberração. Mas apesar do mesmo adjetivo ser usado para designar o mau (perverso) e aquele portador de estrutura psíquica perversa (perverso), a perversão enquanto estrutura psíquica não pode ser confundida com a crueldade ou a anormalidade.

Nos séculos passados, a psiquiatria considerava que “neuróticos eram os indivíduos que sofriam”, psicóticos “os que sofriam e faziam os outros sofrerem”, e psicopatas “os que não sofriam mas, impunham sofrimento aos outros” Os tênues limites entre os que cometem atos de crueldade e, os ditos normais, acabaram por determinar a alteração da nomenclatura e da etiologia, originando-se assim a denominação de sociopatas para marcar o desempenho dos fatores sociais.

A Psiquiatria Forense descreveu, com riqueza de detalhes, os vários tipos de perversão, dando-lhes nomes complicados e curiosos. Kraft-Ebing escreveu um tratado clássico, em dois volumes, sobre o tema. Mas foi o Marquês de Sade quem relacionou de forma inequívoca, a prática das perversões às sensações de prazer e à excitação sexual. De modo despudorado e constrangedor, o Marquês que termina os dias na prisão, escrevendo com sangue suas memórias, pois o papel lhe foi negado, incita e desafia todo ser humano a provar que, nas condições mais inesperadas, é possível ocorrerem aos mais probos e puros, os sentimentos mais abjetos, as emoções mais torpes e bizarras.

São essas mesmas emoções contraditórias e absurdas, surgidas às vezes da experiência do sofrimento físico e dor presumíveis, que traduzem, inexplicavelmente, um prazer quase total que intriga a lógica e confunde a razão. Freud, ratificando Sade, declarou em Três ensaios sobre a sexualidade infantil, que: “a neurose é o negativo da perversão”, querendo com isso asseverar que os conflitos neuróticos calcaram-se nos mesmos íntimos impulsos que se liberaram, incondicionalmente, e sem controle, buscaram a realização como atos perversos.

O que de mais incrível ocorre, é que os mesmos impulsos inconscientes que determinam desejos tresloucados e, por vezes, cruéis, habitam o psiquismo, até dos mais aparentemente normais. A Psicanálise contribuiu decisivamente para a compreensão dos fenômenos perversos ao relacioná-los com a sexualidade. Os complicados avatares da sexualidade humana, no cumprimento do seu trajeto desde os primórdios da fase oral, passando pelas atribulações da fase anal, quando o ser humano vai, pela primeira vez, defrontar-se com a negação e a repressão, irá, se tudo correr bem, culminar, finalmente, na primazia genital.

Essa primazia não exclui, porém, a permanência de traços perversos, resquícios eternos no psiquismo humano, da evolução da sexualidade. Sua presença evidencia-se nas preliminares dos atos amorosos introduzida por contatos dos lábios nos beijos, carícias em diversas partes do corpo, todas elas límpidas representantes das etapas prévias da sexualidade genital, aceitas como normais. Não sem motivo, Freud referiu-se às crianças que, até então, eram, e por vezes, até hoje, ainda são consideradas símbolos de pureza, como “polimorfos perversos”.

As descobertas freudianas foram tão rejeitadas, no seu tempo por escandalizarem o mundo, ao mostrar o ser humano em toda a sua nudez. A loucura, evidenciou Freud está muito mais próxima da normalidade do que se poderia supor. Aliás, muito antes de Freud, Kaplan já teria assinalado que “a diferença entre o psicótico e o normal, é que ‘o psicótico faz o tempo inteiro’, o que o normal só faz de vez em quando”. Bem, assim, só se poderia falar de perversão sexual, quando o orgasmo só fosse alcançado mediante a realização de um ato, dito perverso, como por exemplo, a substituição do ato sexual por uma carícia prévia ou o uso de fetiche para obter orgasmo.

O homem, até então, dono e senhor dos seus atos e pensamentos viu-se, de repente, assujeitado ao sabor da vontade e incoerências do inconsciente, refém de forças desconhecidas e desconexas, que não obedecem ao tempo nem à lógica, não conhecem limites nem contradições. Seria assim a perversão algo tão estranho ao ser humano? Seria justo atribuir a causas externas algumas das mais condenáveis atitudes dos seres humanos?

É na própria Psicanálise que encontraremos, ainda, mais respostas a perguntas como essas, quando mais tarde, Jacques Lacan retoma o estudo da perversão sob a ótica do desejo e da castração. Lacan revê a questão, considerando a atitude da criança, perturbada pela idéia da castração e a impossibilidade de admiti-la. Desse modo, a criança trata de desmenti-la e, para tal, desmente a castração materna, ocultando-a com uma espécie de véu. O objeto do desejo do perverso é, então, um fetiche, algo que recobre o desejo, mas, ao mesmo tempo, deixa perceber, com a tentativa de obturá-lo, a impossibilidade de recobri-lo.

Uma das maiores características do perverso, contudo, como destaca Joel Dör, é a sua necessidade de transgressão. Sua relação com a lei é sempre de transgressão. Ele precisa transgredi-la, para comprovar que ela existe. Mas para tal, precisa desvalorizá-la, desmerecê-la, e a primeira lei que transgride é a lei do pai.

A criança ao nascer estabelece uma relação diádica com a mãe, considerando-se parte dela, algo que a completa, assim, a mãe é inteira, e ela (criança), seu falo. Por isso, o bebê considera que a mãe não é castrada e nem tampouco ele o é. Nessa relação em que os dois se completam, vai haver a interferência de um terceiro – o pai – que rompe a relação, interpondo a lei entre o filho e a mãe. Ao sentir que o olhar da mãe se volta para o pai, é que o bebê vai perceber que a mãe não é completa e que ele não a completa. Essa é a primeira noção de falta e de castração, introduzida pelo pai que também introduz a lei, interdita o incesto, mas abre caminho para o desejo, pois permite ao filho dirigir-se a outras mulheres nas quais buscará o objeto de desejo.

Essa figura paterna empalidecida na sociedade atual, falha em exercer sua função, favorecendo a transgressão da lei, ou melhor, permitindo que o sujeito se insurja a obediência às leis. A excessiva permissividade patriarcal se incumbe de favorecer, com a cumplicidade, às vezes omissa, o resto da oportunidade de transgressão. Sua maneira transgressora de ser, é a marca da relação social do perverso. Suas transgressões, além de constantes, demandam ainda um terceiro que as confirme e referende. Esse olhar de um outro sobre a transgressão, proporciona ao perverso uma satisfação especial e única.

Mas o mundo tem assistido através dos séculos várias condutas bizarras e malvadas, que só se explicariam do ponto de vista da consciência e da razão, pelo prazer perverso do sadismo ou pela vingança mórbida. Assim, viram os romanos, as atrocidades brutais e a desregrada atuação da sexualidade de Calígula, como vivenciamos, nós brasileiros, muitos séculos depois, as barbáries da escravidão, do mesmo modo que testemunharam atônitos os romanos, a sua Roma querida arder, enquanto Nero se comprazia com o espetáculo da dança das labaredas e os gritos desesperados da população, do mesmo modo, mais tarde, os infelizes iraquianos sofreram e testemunharam as torturas e mutilações de Sadam Hussein. Para não falar da cumplicidade da Igreja no holocausto, como da sua participação ativa nos tristes episódios da Inquisição na Idade Média.

O novo homem do século XXI que transpôs o espaço sideral e rompeu a barreira do som, comunica-se, em segundos, com o mundo inteiro via Internet ou telefones celulares, enviando mensagens e imagens como lhe aprouver, interage nas tvs a cabo e acompanha guerras, ao vivo, com imagens de alta precisão. Dispõe de veículos possantes e armas fantásticas. Consegue por meio de drogas, orgasmos duradouros e estados de excitação crescente. Vive uma sexualidade desreprimida e solta, cuja permissividade e promiscuidade lhe permitem quase todos os possíveis prazeres e emoções das mais esdrúxulas.

Casas noturnas para sexo grupal são anunciadas escancaradamente e as trocas de casais encaradas com naturalidade. As relações sexuais são realizadas alternadamente, ou até concomitantemente, com parceiros de sexos diferentes, alegando-se o direito inequívoco do gozo da bissexualidade, que nada mais é, que a tentativa de não submeter-se à lei da sexuação, ou seja, não ter de optar por nenhum dos sexos e valer-se do uso dos dois.

O que seria interditado a esse homem? O que lhe falta? Que precisa procurar, ainda, para ser feliz e completo? É o desmentido da sua condição de ser faltante e incompleto que obstrui a possibilidade do desejo enquanto determinante da condição humana, razão de ser do sujeito, mola propulsora que o mantém singular na comunidade dos humanos. Esse ser que não se indaga mais, não tem por que lutar, não precisa desejar e não se frustra nunca, é um arremedo de sujeito. E porque não sofre, não tem como buscar solução. Porque não conhece a falta, não tem porque questionar o desejo. Não precisa de buscar sua individualidade porque a massificação é suficiente.

O homem moderno sente-se dono e senhor do mundo e desafia as leis. É assim nos atos terroristas da Palestina ou nos ataques alegados, como vingança, de Israel. Os atentados de 11 de setembro ou as guerras do Afeganistão ou do Iraque, desrespeitando as leis do Conselho da ONU e os apelos de todo o mundo contra a batalha, ou mais perto de nós, os traficantes que metralham escolas e ruas, hotéis e até palácios de governo após avisos por telefone dos atos que iriam perpetrar. Ou ainda, as atitudes dos corruptos que indiferentes às leis, quando se trata de dinheiro público, manipulam-no a seu bel prazer em proveito próprio. Ou, então, as escusas ações que visam fraudar provas ou documentos para ingressar em faculdades, disputar vagas para empregos, e nomeações de parentes e amigos para ocupar cargos bem remunerados do governo.

O Brasil de hoje é o paraíso da perversão que descontrolado e sem rumo, arrasta a nação para um caos social inimaginável. Crianças e adolescentes envolvem-se em brigas violentas e, às vezes até, se tornam homicidas. Alunos ameaçam e matam diretores e professores. Jovens de classe média alta queimam vivos mendigos e índios para se divertir em tediosa noitada de fim de semana. Ao mesmo tempo, no resto do mundo, jovens armados invadem escolas para assassinar colegas. Metralham-se pessoas desconhecidas em supermercados e restaurantes e chega-se ao extremo de adaptar um automóvel para permitir atirar de dentro dele, sem ser visto, com a finalidade de matar a esmo com esconderijo garantido. É o inconsciente sem peias e sem pudores (o que não tem governo nem nunca terá) numa liberação geral.

A perversão é essa terra de ninguém, espaço controverso, fronteira da psicose e limite da estrutura neurótica. Estreita passagem que marca em cada ser humano, seus traços na fantasia, seus rasgos na criação. A perversão é uma “père version”, disse Lacan certa vez, versão que introduz algo novo, o fetiche que privilegia, o olhar que configura o desmentido e que incita à transgressão. Versão que vem de verso, do que está por trás e não é visto, mas é, como se pudesse sê-lo, porque suposto. Que é também verso-frase-poema, criação, e como tal, possibilidade de transgressão licença poética.

O poeta é um eterno transgressor por ser capaz de ver aquém e além, de escandir palavras, desmentindo-as no que têem de mais fixo, a forma. Perverter é Ver para TER? No momento em que, a versão patriarcal não mais se sustenta, porém, a perversão surge como via de saída, mas ao mesmo tempo, encurrala o homem em sua própria angústia. A angústia de se saber dono e senhor absoluto do nada que pretende alcançar e controlar, mas que lhe escapa, impreterivelmente, sem lhe deixar a sensação de novas possibilidades.

 

Referências

DOR, Joël. Estrutura e perversão. Porto Alegre: Artes Médicas.1991.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a sexualidade infantil. ESB. Vol VII. Rio de Janeiro: Imago.1969.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. O Futuro de uma ilusão. ESB. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago.1969.         [ Links ]

DOR, Joël. Estrutura e perversão. Porto Alegre: Artes Médicas.1991.        [ Links ]

LEBRUN, J. Piere. Um Mundo Sem Limite – ensaio para uma clínica do social. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.2001.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. ACM 1034 s/121 C – Itaigara
41825-000 Salvador- Bahia
E-mail:traduzir@compos.com.br

Recebido em 18/04/2007

 

 

*Psicanalista, membro do CPB, médica e tradutora

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