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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.30 Belo Horizonte ago. 2007

 

 

Tempo para sonhar, tempo para fantasiar: um exemplo clínico de dissociação e integração1

 

Time to dream, time to fantasize: a clinical example of dissociation and integration

 

 

Nadja Nara Barbosa Pinheiro*

Universidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre dois processos psíquicos estudados por Winnicott: a dissociação e a integração. Para tal, utiliza-se de um caso clínico, através do qual, destaca-se duas funções específicas, relacionadas com cada um desses movimentos: o fantasiar, como mecanismo capaz de manter a dissociação e o sonhar, como ponte simbólica que permite a integração.

Palavras-chave: Dissociação, Integração, Fantasia, Sonho, Clínica Psicanalítica.


ABSTRACT

The present paper proposes a reflection on two psychological processes studied by D. W. Winnicott: dissociation and integration. Thus, a clinical case is presented in order to specify two functions related to each movement: fantasy, as a mechanism that keeps dissociation, and dream, as a symbolic bridge that leads to integration.

Keywords: Dissociation, Integration, Fantasy, Dream, Psychoanalytic Clinics.


 

 

Introdução

Na maior parte das vezes, estamos acostumados a pensar na construção de fantasias como um processo psíquico, que permite, entre outras coisas, a ligação entre as realidades interna e externa na medida em que entrelaça os conteúdos, objetos e desejos que as perpassam e constituem. No entanto, nessa minha exposição, gostaria de apresentar uma outra função a ser exercida pelo fantasiar: a manutenção da dissociação da realidade interna, que impede que tal entrelaçamento efetue-se. Tomo, como fundamento teórico, as considerações sobre o assunto desenvolvidas por Winnicott, para, então, proceder o relato de um caso clínico, através do qual, procurarei demonstrar como o uso de uma fantasia particular, pelo paciente, o mantinha apartado de conteúdos de sua realidade interna, os quais, mantendo-se dissociados, não contribuíam para o pensar elaborativo, e nem para o seu viver cotidiano. Função que pôde ser desenvolvida através da análise de um sonho, trazido ao espaço clínico pelo paciente. Lugar de encenação e de transicionalidade, que permitiu o desvelar de um desejo inconsciente, e o brotar de significações diversas que o re-lançaram, ao devir de seu viver.

 

Integração e dissociação: a construção dos mundos segundo Winnicott

Segundo Winnicott (1945), o período de desenvolvimento emocional compreendido antes do momento em que o bebê consegue se diferenciar do outro, e perceber a existência de um mundo interno e outro externo, é de vital importância. É durante esse momento, que três processos fundamentais para a constituição da subjetividade ocorrem: a integração; a personalização e a apreciação da realidade externa, isto é, a realização. Isto significa que, inicialmente, as experiências vividas pelo bebê não são, de modo algum, organizadas, mas vivenciadas de forma dispersa, referentes que estão ao estado do auto-erotismo postulado por Freud (1980), em que as pulsões parciais satisfazem-se anarquicamente, sem se remeterem umas às outras. Winnicott (2000) postula, então, a existência de um estado de desenvolvimento subjetivo primário, de não-integração. Neste, as experiências vividas pelo bebê, apresentam-se dispersas e não interligadas em torno de um ‘eu’ central ou nuclear. Nessa perspectiva, após o nascimento, observa-se, no bebê um movimento que tende para a integração interna, que é auxiliado por dois fatores: a técnica da maternagem, ou seja, os cuidados dispensados ao bebê, pela mãe, visando a manutenção de sua sobrevivência; e as agudas experiências instintivas do bebê que demandam, desde o interior, por satisfações constantes e repetitivas.

A partir desses dois conjuntos de fatores, pedaços de sensações e experiências vão sendo aglutinados e associados, permitindo sua gradual reunião em torno da sensação de unicidade interior. Movimentos que auxiliam, paulatinamente, a ocorrência de processos integradores que vão diminuindo, progressivamente, a existência dos estados psíquicos dissociados, promovendo um entrelaçamento progressivo entre as vivências, experiências, afetos, representações, sensações, etc.

Podemos perceber, a partir dessas considerações, que o processo de integração está conectado ao movimento de construção, tanto da realidade interna, quanto da externa, que para Winnicott tem seu início demarcado pelas primeiras experiências de satisfação, realizadas entre a mãe e seu bebê. Há aqui, a ocorrência de um momento de ilusão: o bebê faminto, pronto a alucinar o seio, e o seio real que é apresentado ao bebê, fornecendo-lhe a satisfação. A repetição de tais vivências permite ao bebê que seu processo alucinatório seja enriquecido com pedaços cada vez maiores de realidade, para além da alucinação. Assim, uma adaptação progressiva e transformadora da realidade externa, é possível através da sensação de sua manipulação onipotente, iniciada pela alucinação fantasiosa que se enriquece a partir dos objetos do mundo externo.

Nesse processo, fica esclarecido que a fantasia se refere ao movimento de criação dos objetos alucinados, estando, portanto, sob o domínio exclusivo do princípio do prazer, daí o seu caráter de não controle. Dependerá dos sucessivos momentos de ilusão, vivenciados entre mãe e bebê, a possibilidade de um enriquecimento da fantasia, através do estabelecimento de uma relação entre esta e a realidade externa. É esse o processo que permite o desenvolvimento de um mundo cada vez mais enriquecido e sofisticado, em termos simbólicos, que dependerá, em última instância, da “quantidade de ilusão experimentada e, portanto, do quanto nesse mundo criado pelo próprio indivíduo, ele foi ou não capaz de usar objetos percebidos no mundo externo como matéria prima” (WINNICOTT, 2000, p. 228).

É nesse sentido, suponho, que Winnicott procura definir que não se deve contrastar fantasia com realidade externa, porém, com a própria realidade interna. A construção de fantasias estará sempre relacionada com as vivências primitivas de cada sujeito em termos de satisfações, frustrações, sensações prazerosas e dolorosas da infância, ou seja, são tentativas de lidar com a realidade interna, através da utilização de um controle onipotente da realidade externa. Há momentos em que esse movimento apresenta-se como uma ponte, através do qual, o sujeito promove a passagem e a interligação entre as realidades interna e externa, promovendo uma transformação tanto subjetiva quanto objetiva. Nesses momentos, ambos os mundos (interno e externo), tornam-se enriquecidos e plásticos. Porém, nos alerta o autor, há momentos em que essa ponte e essa plasticidade interrompem-se.

O fantasiar cristaliza formas estereotipadas de manipular a realidade de maneira a manter elementos da realidade, interna não-integrados e dissociados do ego. Nesses momentos, ela se apresenta como um mecanismo defensivo contra as invasões de uma realidade interna, que coloca o ego em perigo. Para se defender, o ego se divide, perdendo a possibilidade de manter em movimento o contato entre as realidades interna e externa. Preservando-se do perigo, o ego, no entanto, perde o poder de transformar seus mundos. (WINNICOTT,1975).

 

Sobre sonhos e fantasias: um caso clínico.

Igor era um homem, por volta de seus 35 anos, bom emprego, muito inteligente e só, completamente só. Intrigada fiquei porque, apesar de seu bom salário, havia procurado para análise um grupo de psicanalistas de uma clínica social, através de um anúncio de jornal, fazendo uma única exigência: ser atendido por uma mulher. Interessante pedido: uma mulher. Mais interessante ainda, porque essa era a mesma forma que ele utilizava para escolher suas parceiras sexuais. Ele procurava nos jornais, anúncios de moças que lhe pareciam atraentes, e que não cobravam muito caro por seus serviços, telefonava e marcava encontros. Com algumas, permanecia se encontrando por alguns meses, porém, o profissionalismo demarcado através do pagamento assegurava o distanciamento necessário e seguro, para que não se envolvesse afetivamente com nenhuma delas, (como nas análises, iniciadas e interrompidas!). No momento em que alguma delas se mostrava mais presente em sua vida, enjoava, desligava-se, e as trocava, iniciando uma nova busca no jornal, a marcação de novos encontros, o re-início de uma nova série (a análise iniciada comigo era a quarta ou quinta, ele não sabia precisar muito bem).

Após um início de análise bastante conturbado e atribulado, que exigiu um manejo transferencial bastante difícil e delicado, a mãe do paciente tornou-se o tema central de suas reflexões, fazendo-se ponte para que inúmeras questões sexuais emergissem, entre essas, surgiu o relato de uma fantasia, em particular que o intrigava e irritava muito. Relatou o paciente que quando mantinha relações sexuais com suas parceiras, constantemente, ele visualizava homens, fortes, bonitos e musculosos. Homens, que não conhece pessoalmente, ou seja, pessoas públicas como atores de televisão ou cinema, modelos de propaganda que via em revistas ou out-doors espalhados pela cidade. Esses homens, inicialmente vestidos, iam aos poucos se despindo, e permaneciam em pé, a sua frente, excitados, com o pênis em ereção. E só. Não havia troca de palavras, de olhares, não havia toque físico. Era essa a fantasia.

Por mais que tentássemos, nas sessões, não havia, a partir dela, a produção de nenhuma associação, não havia a evocação de lembranças, não havia ligação com nenhuma outra parte de sua vida. Apenas permanecia o estático, o imutável, o distanciamento afetivo, nada mais.

Inicialmente, entendendo esse fato como pura resistência ao progresso da análise, aos poucos, comecei a pensar se esse fantasiar não estaria se referindo ao que Winnicott (1975), nos chama a atenção: a utilização da fantasia como um processo defensivo, construído como possibilidade de lidar com uma realidade interna não desejável. Ao manipular, onipotentemente a realidade externa, via fantasiar. Igor mantinha intocado e controlado um desejo inconsciente de caráter homossexual, sem ter que lidar com isso e sem se sentir ameaçado por isso. Cristalizando assim, através de uma organização fantasiosa, a dissociação da realidade interna permanecia. Um núcleo de representações psíquicas mantinha-se, ao mesmo tempo, fazendo parte dele, e completamente não fazendo parte dele, posto que, Igor desconectava do restante de seu ser, tudo que envolvia e dizia respeito a essa fantasia. Por outro lado, a fantasia, ao ser evocada, no mesmo instante em que Igor mantinha relações sexuais, prestava-se, também, a mantê-lo afastado da realidade externa e de seus objetos, posto que, enquanto ocupado com o fantasiar, ele se desocupava da pessoa que estava com ele.

Muitas vezes, nem mesmo se lembrava, muito bem, com quem estivera e como havia se passado o intercurso sexual. Não interligando representações e desejos, passado e presente, interior e exterior, não havia, também, a possibilidade de imprimir uma relação entre objetos internos e externos. Dessa forma, nenhum elemento da fantasia era utilizado para um enriquecimento subjetivo, nenhum objeto prestava-se ao uso manipulatório e transformador necessário a promover a ligação do sujeito e seu viver cotidiano.

Transformação que pôde ser efetuada no momento em que Igor trouxe, à análise, um sonho que nos auxiliou a trançar lembranças, desejos, cronologias, objetos. Um sonho que, ao ser trabalhado no contexto analítico, exerceu a função de permitir a re-ordenação de representações, a promover a integração de um núcleo de representações, a diminuir a dissociação primária e, em conseqüência, a promover a transformação subjetiva.

Era de noite, estava em meu carro com meu primo do lado. Lá fora estava muito escuro e eu estava muito nervoso. Sabia que nós dois estávamos indo passar por uma fronteira. Não sei de que lugar pra qual lugar, só sei que tínhamos que atravessar uma fronteira e que os guardas iam me pedir meus documentos e eu não sabia onde eles estavam e pedia pro meu primo: procura aí, meus documentos, estão por aí. Ele não achava, procurava e não achava. Eu ficava cada vez mais nervoso.

Iniciamos a análise do sonho. Ele nunca havia estado nessa situação com o primo, e não sabia muito bem do que tratava o sonho. Ele era uma pessoa muito organizada e jamais andaria de carro sem seus documentos. – “Impossível isso acontecer”. Perguntei:- “isso” o quê? Respondeu:- “Várias coisas: andar sem documentos, andar sem saber pra onde tou indo, viajar com meu primo”. Acrescentou que ele e o primo nem eram mais amigos, foram amigos na infância, mas se afastaram. Atualmente só se encontravam nas reuniões de família. Investigamos mais um pouco a relação dele com o primo, mas não avançamos muito. Investigamos a escuridão em que se encontrava no sonho, mas não avançamos também. Então, eu fiz uma intervenção: - “interessante, a sua frase, eu conheço uma expressão que talvez você também conheça, quando as pessoas querem questionar os meninos quanto à sua masculinidade, elas costumam pedir que eles mostrem seus documentos”. Igor me lançou seu habitual olhar de ódio quando eu produzia alguma intervenção que o irritava e disse: - “Nossa, Nadja, essa foi demais, você tirou essa interpretação não sei nem de onde. Ridículo essa mania que vocês psicanalistas têm de tudo achar que é sexo! Ridículo!”

Retornou, na sessão seguinte, dizendo haver pensado no que eu havia falado e que várias lembranças lhe ocorreram. Lembrou-se como ele e o primo, quando pequenos, eram companheiros nas descobertas sexuais infantis. Como juntos olharam a irmã mais nova tomar banho e perceberam a diferença entre eles e ela. Como os dois, às vezes, se tocavam e manipulavam os órgãos sexuais um do outro, percebendo as sensações e descobrindo regiões prazerosas. Como, ao irem crescendo, os dois começaram a se sentirem envergonhados um do outro e o afastamento foi acontecendo, embora ele tenha se recordado como, às vezes, se sentia atraído pelo primo, com vontade de tocá-lo novamente, de vê-lo sem roupa, e nesses momentos ficava bastante excitado. Uma vez, lembrou-se que viu o primo no chuveiro e ambos ficaram excitados, com o pênis em ereção, mas disfarçaram. Momento em que eu interrompi para indagar: - assim como os homens em sua fantasia?

 

Referências

FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.7. Rio de Janeiro : Imago,1980.        [ Links ]

WINNICOTT, D. Desenvolvimento Emocional Primitivo. In:WINNICOTT, D. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:Imago, 2000.        [ Links ]

WINNICOTT, D. Sonhar, Fantasiar e Viver: uma história que descreve uma dissociação primária. In: WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago,1975.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná
Praça Santos Andrade, 50, Prédio Central - segundo andar - sala 220 - Centro -
Curitiba – Paraná cep: 80060-240

Recebido em 18/05/2007

 

 

1Trabalho apresentado no IV Congresso Nacional de Psicanálise da Universidade Federal do Ceará, mai/2007.
* Psicóloga, Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia Clínica, Professora Adjunto da Universidade Federal do Paraná, Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Humano (NEDHU-UFPR),Colaboradora do Laboratório Interdisciplinar em Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS-PUC-RIO) nadjanbp@ufpr.br

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