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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.31 Belo Horizonte out. 2008

 

 

Ressonâncias do romantismo no discurso freudiano sobre o amor

 

Romanticism’s ressonance in the freudian speech about love

 

 

José Euclimar Xavier de Menezes*; Maria Josephina Silveira Barros**

IUniversidade Católica de Salvador
IIFaculdade Ruy Barbosa

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo caracteriza-se como um ensaio cujo objetivo é investigar o amor na psicanálise freudiana. Através de revisão de literatura o presente texto trabalha com a hipótese de que em Freud o vínculo amoroso é marcado por ressonâncias românticas, a saber, o amor como uma busca pela unidade perdida.

Palavras-chave: Amor, Romantismo, Psicanálise freudiana, Unidade, Fantasia.


ABSTRACT

This paper consist of an essay which aim is to investigate the love on Freudian psychoanalysis.Through a review of the existing the actual text works on the hypothesis that in Freud the amorous link is marked by romantic resonances, namely, the love as a search for the lost unit.

Keywords: Love, Romanticism, Freudian psychoanalysis, Unit, Fantasy.


 

 

Wilhelm, que seria do nosso coração em um mundo inteiro sem amor? O mesmo que uma lanterna mágica apagada! Assim que se põe lá uma lâmpada, imagens de todas as cores surgem na tela branca...E mesmo se fosse apenas isso – fantasmas –, ainda assim continuará fazendo a nossa felicidade, sempre que nos postarmos diante deles, como crianças extasiadas...
(GOETHE 1774 / 2005, p.127.
Os sofrimentos do Jovem Werther).

 

Introdução

Em O mal-estar na cultura [1930/1996], Freud afirma que embora os métodos para obtenção da felicidade variem, a sua busca através do amor talvez se constitua num dispositivo mais ou menos invariante ao qual recursam os homens.

Em contrapartida, colocar o vínculo amoroso como o componente crucial para a felicidade humana tem sido fonte de frustrações e de sofrimento. O amor tornou-se o problema do qual se fala à exaustão no divã, sobretudo atualmente: “os males do amor, da impossibilidade de amar e ser amado ou de construir relações amorosas estáveis tornaram-se o pivô de boa parte dos estados depressivos atuais e das demandas de psicanálise”. (Costa, 1998, p.48). Para alguns autores contemporâneos a presença de resquícios dos ideais românticos nos relacionamentos amorosos é umas das causas dos desencontros afetivos do século XXI (BAUMAN, 2004, COSTA, 1998; GIDDENS, 2004; JABLONSKI, 1995; LEJARRAGA, 2002). Assim como Freud deparou-se na clínica com exigências amorosas impossíveis de se satisfazer, ou seja, as imposições românticas de felicidade ligada a uma completude no amor, também hoje essa questão faz-se presente: o encontro da dita “alma gêmea” como, se não o único, o mais importante meio de se encontrar a felicidade.

É nesse cenário que aqui são retomados os ideais românticos de completude no âmbito das relações amorosas, com o escopo de problematizar o amor no referencial da psicanálise. Buscamos isolar, no uso que Freud faz do literato romântico Goethe (1749-1832), possíveis ressonâncias do Romantismo na elaboração do conceito psicanalítico de amor. Para tal fim, tomamos como pedra de toque a obra de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, considerado como um dos mais célebres romances de Goethe e, tanto quanto o autor, reconhecidamente um dos ícones do Romantismo, um elemento legítimo deste movimento (LOUREIRO, 2002; HONIGSZTEJN, 1996; DOIN, 1996). Podemos justificar ainda esta opção pela escolha da visão romântica de amor expressa em Goethe apontando que, para alguns autores, o romantismo é um movimento genuinamente germânico, visto que se desenvolveu de forma intensa na Alemanha, tendo Goethe como um dos seus principais expoentes, a cuja obra Freud se remete 112 vezes (LEJARRAGA, 2002; PERESTRELLO, 1996; LOUREIRO, 2002). Aliás, sobre a relação de Freud com Goethe, Kon (1996) nos lembra que no ano de 1927, Freud recebeu um prêmio com o nome do literato, instituído pela cidade de Frankfurt, a ser concedido “a uma personalidade de realizações já firmadas, cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória de Goethe” (FREUD, [1930],p.47).

Mas o que é essa configuração amorosa que denominamos romântica e que alguns autores caracterizam como um desejo nostálgico de totalidade? E como esse desejo de completude é demonstrado na letra freudiana?

Segundo Abbagnano (2002), Romantismo é:

O movimento filosófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do século XVIII, floresceu nos primeiros anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado comum do termo “romântico”, que significa “sentimental”, deriva de um dos aspectos mais evidentes desse movimento, que é a valorização do sentimento [...] Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta entre os amantes [grifo nosso] (ABBAGNANO, 2002, P. 862).

Desta definição extraímos a idéia do amor romântico como caracterizado pela busca da “unidade absoluta entre os amantes”. Idéia que também é destacada na obra de Loureiro quando caracteriza o romantismo não por suas definições, mas apontando para um estilo romântico. O subtítulo de um dos seus capítulos, “Em busca da unidade perdida”, nos permite entender qual a idéia norteadora deste estilo, qual seja, “um modo de formar característico de um dado contexto histórico-cultural, embora produções semelhantes persistam até os dias de hoje[...], cujo fim último seria a restituição da unidade e da harmonia perdidas (LOUREIRO, 2002, p.161). É a partir desta nostalgia que os românticos se movem em direção ao passado, em busca da plenitude perdida no “mundo da infância, na ‘autenticidade’ da vida rural, nas culturas ditas primitivas ou orientais (exotismo), na antiguidade greco-romana etc (LOUREIRO,2002, p.132).

Mas podemos perceber, em Freud, esse desejo nostálgico por uma unidade perdida no passado? Divisamos no texto da carta que Freud escreveu em agradecimento à recepção do prêmio Goethe a pista que vai nos levar da seara da psicanálise ao Romantismo. Vejamos a primeira parte deste fragmento: “Este escritor não apenas não teria rejeitado a psicanálise [...] como dela se aproximou numa série de pontos” (FREUD, [1930] 1996, p.214).

Aqui cabe perguntar: que pontos são esses nos quais, segundo nos diz Freud, Goethe aproximar-se-ia da psicanálise? Principalmente, o que Freud vê em Goethe sobre o amor?

 

Uso do amor romântico no texto freudiano: Ressonâncias?

Iniciemos a nossa investigação a partir da única citação que Freud faz à obra Os sofrimentos do Jovem Werther no Manuscrito N. Começamos por Werther para introduzir o que entende Freud sobre o amor, bem como para indicar de que forma suas problematizações sobre esta temática deixam entrever ideais românticos.

O mecanismo da poesia [criação literária] é o mesmo das fantasias histéricas. Para compor seu Werther, Goethe combinou algo que havia experimentado (seu amor por Lotte Kästner) e algo que tinha ouvido (o destino do jovem Jerusalém, que se suicidou). Provavelmente, Goethe estava brincando com a idéia de se matar; encontrou nisso um ponto de contato e identificou-se com Jerusalém, de quem tomou emprestado o motivo para sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se das conseqüências de sua experiência.
De modo que Shakespeare tinha razão ao justapor a poesia e a loucura
(FREUD, 1897/1996, p.309).

“O mecanismo da poesia [criação literária], parece simétrico àquele que constitui as fantasias histéricas”.O que Freud quis dizer com isso? Qual o ponto de contato que podemos detectar entre a história amorosa de Goethe, reproduzida até certo ponto no Werther, e o discurso das histéricas, prenhe de fantasias? Para responder a esta questão, vejamos primeiro o que é a fantasia histérica. Laplanche e Pontalis (1998) definem a fantasia histérica como ”um roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1998, p.169).

Se, segundo Laplanche e Pontalis (1998), a fantasia histérica é um roteiro imaginário que busca a realização de um desejo, então nos cabe perguntar: de que desejo se trata? Vamos cruzar agora a citação freudiana citada anteriormente, que coloca em paralelo as fantasias histéricas e a produção literária, com outra do próprio Freud, ainda citando Goethe, para daí entrarmos no que nos interessa neste texto: algo que não aparece logo à vista, mas que podemos inferir.

[Goethe]...estava familiarizado com a força incomparável dos primeiros laços afetivos das criaturas humanas” [...].[Ele] explicou a si mesmo o impulso mais forte do amor que experimentou como homem maduro, apostrofando sua bem-amada:’ Ah, vós fostes, numa vida passada, minha irmã ou minha esposa’ De um poema a Charlotte Von Stein. Assim, não negou que essas primeiras inclinações perenes assumem figuras de nosso próprio círculo familiar [os amores edipianos]. Goethe sempre teve Eros em alta consideração (FREUD, [1930]1996, p.214).

Destaquemos alguns dados importantes: Charlotte, grande amor de Goethe, foi comparada por este autor a sua irmã “– ah, vós fostes, numa vida passada, minha irmã”. Freud percebe nesta fala de Goethe a presença de uma repetição, uma reedição dos amores edipianos e afirma: “Assim, [Goethe] não negou que essas primeiras inclinações perenes assumem figuras de nosso próprio círculo familiar”. E a partir daí conclui: “Goethe sempre teve Eros em alta consideração”.

Goethe confessou que via em Lotte a figura de sua irmã. Disso podemos suspeitar que, em última análise, é de um desejo incestuoso, ainda que inconsciente, que estamos nos acercando, seja no romance goethiano quanto no “romance histérico”? Freud estaria se utilizando da elaboração literária para configurar com maior nitidez a sua hipótese de incesto fundante do modo funcional do psiquismo? Uma busca prospectiva por amores da infância? Vejamos o que nos diz Freud sobre os romances fantasísticos das histéricas para depois confrontarmos as nossas suposições com uma breve incursão sobre o romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther.

Nos Estudos sobre a histeria [1893], Freud nos aponta que a histérica busca o seu amor em fantasia. O sintoma aparece no lugar da interdição de uma relação amorosa e conta, no corpo histérico, a história desse amor proibido. Desta forma, tanto no caso de Lucy R., a governanta que padecia de rinite e sofria de amores por seu patrão, como no caso de Elizabeth Von R., a paciente que sofria de dores nas pernas e estava apaixonada pelo cunhado, encontramos histórias de amores frustrados e proibidos. Freud estabelece aí uma correspondência direta entre os sintomas histéricos e estes amores interditados. Por exemplo, ele teoriza sobre os sintomas de Elizabeth falando de sentimentos eróticos “inaceitáveis”:

Mais uma vez, foi um círculo de representações de natureza erótica que entrou em conflito com todas as suas representações morais, pois suas inclinações centralizaram-se no cunhado e, tanto durante a vida da irmã como depois da sua morte, a representação de ser atraída precisamente por esse homem lhe era totalmente inaceitável (FREUD, [1893]1996, p. 124).

Segundo Freud, a fantasia das histéricas sempre gira em torno do tema dos pais (FREUD, 1900), o que significa que ela circula em torno de um desejo proibido, ou seja, um anseio vinculado aos amores edípicos e, como tal, interditado pela barreira do incesto. Confere-se na letra de Freud que a fantasia de sedução das histéricas nada mais era do que um desejo mascarado de união erótica com os genitores. Assim, pode-se afirmar que neste “roteiro imaginário”, que Freud batizou de fantasia, o desejo incestuoso está como pano de fundo e mote para a narrativa dos dramas histéricos. Constatação que nos remete a uma outra questão: porventura, é de deparar-se com a barreira do incesto como obstáculo e fomentador do desejo que encontramos o eco do romantismo na obra freudiana? Qual a relação que podemos inferir entre os romances histéricos e o Werther de Goethe, citado por Freud no Manuscrito N?

Segundo Lejarraga (2002), encontramos no romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther as características do amor romântico. Tentemos, então, identificá-las: o Romance narra a história do jovem Werther e sua paixão por Carlota ou Lotte, moça que ele conhece quando vai morar perto da sua casa, numa pequena aldeia rodeada por uma exuberante paisagem. Paixão inviável e infeliz, interditada por obstáculos sociais e morais desde o início: não apenas a adorada de Werther se encontrava comprometida com outro, como ela não pertencia a sua classe social. Na corte, torna-se ainda mais clara a desigualdade e inferioridade da sua condição social: Werther é expulso dos salões da aristocracia por não pertencer à nobreza. Assim, desnorteado e ferido, retorna à aldeia e às visitas a sua querida Lotte. Tarde demais: esta já havia se casado com Alberto e deixa evidente a sua fidelidade ao marido, pedindo a Werther que se afaste. As rejeições da amada, as frustrações contínuas aos seus sonhos de tomá-la nos braços vão, num crescendo, tomando todo o romance com os lamentos desesperados deste apaixonado, preparando para o desfecho final, bem ao gosto dos românticos: Werther se suicida por amor: “Quero morrer!... Não é o desespero; é a convicção de que suportei quanto pude e de que eu me sacrificarei por você. Sim, Lotte, por que esconder? É preciso que um de nós três desapareça, e sou eu quem deve desaparecer. Oh, minha adorada....Tão perto da sepultura, vejo tudo mais claramente. Continuaremos a existir e tornaremos a nos ver!” (GOETHE, 2005, p.102-109).

O anelo, a unidade, a nostalgia romântica, é claramente evidenciada nesta fala do Jovem Werther. E, concomitantemente, nesta obra de ficção, vemos repetir-se uma escolha de objeto que a psicanálise já identificou como incestuosa: a mulher desejada já pertence a outrem (FREUD, [1910]1996). Werther desejava uma mulher comprometida: “[Diz Lotte a Werther:] Por que eu, Werther, eu, que pertenço a outro? Justamente eu? Temo, temo que seja apenas a impossibilidade de me possuir que faz com que você me deseje com tanto ardor!” (GOETHE, 2005, p.100).

Praz, materializa esta idéia ao dizer que “o incesto [é] um tema caro aos românticos” (PRAZ, 1996, p.114). Segundo Gay, esse amor incestuoso era disfarçado nos poemas e textos da época pelo anelo apaixonado pela natureza “no século vitoriano [...] a natureza é a mulher amada...a mãe”(GAY, 2000, p.237), e Honigztejn levanta uma questão que, embora não seja a nossa, nos traz uma pista instigante sobre a presença subliminar do desejo incestuoso no romance de Goethe:

Goethe e Freud. Influências do primeiro sobre o segundo? Como? Freud teria tido o insight sobre atos falhos ao ler, em Afinidades Eletivas, o trecho em que Chartlotte derrama tinta sobre uma carta que não deseja, mas é obrigada a escrever? Ou a compreensão da permanência da mãe como objeto desejado ao ler, em Werther, como este se apaixonou agudamente por Charlotte ao ver, num relance, que ela amassava o pão exatamente como a sua mãe? (HONIGSZTEJN, 1996, p.257).

Diz Freud que o escritor valendo-se de sua sensibilidade pode perceber e descrever “as condições necessárias ao amor que determinam a escolha de um objeto”. Ou seja, na letra freudiana encontramos a razão da preferência de certos homens, nesse caso o Jovem Werther, por mulheres comprometidas:

A escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada [deriva] da fixação infantil de seus sentimentos de ternura pela mãe e representam uma das conseqüências dessa fixação [...] É, de imediato, evidente que, para a criança que está crescendo no círculo familiar, o fato de que a mãe, ao pertencer ao pai, torna-se parte inseparável da essência da mãe, e que a terceira pessoa injuriada não é outra senão o próprio pai. (FREUD, [1910]1996, p.174).

Goethe conseguiu expressar algo que cala fundo à psicanálise e que podemos identificar também nos casos de histeria: os objetos incestuosos permanecem no horizonte da busca amorosa dos neuróticos e dos ditos normais, quer seja representado nas fantasias e romances, quer seja determinando as escolhas afetivas de todos os tempos, mas sempre sobre o índice da interdição como atesta o surgi-mento dos diques morais contra o incesto, canalizando a libido para um outro lugar mais aceitável (FREUD, [1905] 1996), e os diversos obstáculos que afastam os amantes na literatura romântica citada. Mas quando afirmamos que no texto freudiano o fenômeno amoroso possui um caráter de nostalgia do objeto, o que aproximaria suas concepções sobre o amor, até certo ponto, do Romantismo, e localizamos nesses objetos as figuras parentais, algo não ficou claro: o que move o homo psicanaliticus a essa busca retrospectiva e incestuosa?

É o próprio Freud que nos oferece uma pista do itinerário que devemos empreender para encaminhar essa problematização: “As inúmeras peculiaridades da vida amorosa dos seres humanos, bem como o caráter compulsivo do próprio apaixonamento, só se tornam inteligíveis numa referência retrospectiva à infância” (FREUD, [1905]1996, p.105). Vejamos, então, o que nos diz Freud sobre o erotismo infantil, lembrando, também, que para os românticos – como já foi sublinhado aqui – a unidade perdida se encontra na infância.

 

O amor como nostalgia: o (re)encontro do objeto perdido

Na Metamorfose da Puberdade, título do terceiro ensaio da obra freudiana de 1905, os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, vemos Freud preocupado em fazer uma espécie de revisão do auto-erotismo infantil em torno da idéia do amor como um reencontro de um objeto de amor originário, a mãe. No dizer de Freud:

Quando a primeira satisfação sexual estava ainda vinculada com a nutrição, a pulsão sexual tinha um objeto fora do próprio corpo: o seio materno. Somente mais tarde, a pulsão perde esse objeto, bem na época, talvez, em que a criança pode formar a representação global da pessoa a quem pertence o órgão que lhe dava satisfação. Depois a pulsão sexual se torna, regularmente, auto-erótica, e só após superado o período de latência que se restabelece a relação originária. Há, portanto, bons motivos para que o fato de uma criança sugar o seio da mãe se torne paradigmático para toda relação de amor. O encontro de objeto é propriamente um reencontro [grifo nosso] (FREUD, [1905]1996, p.178).

Esse parágrafo condensa várias idéias que, pelo caráter de um ensaio, somos forçados a deixar de lado para centrar nossos esforços em um único ponto: o que nos interessa neste fragmento é a afirmativa freudiana de que “o encontro do objeto é um reencontro”. Duas perguntas se impõem de imediato: se para Freud o futuro amoroso está para trás, para a infância, por que este movimento retrospectivo é vinculado à imagem da amamentação? E, por outro lado, o que o impulsiona em direção ao passado amoroso infantil? O que justifica esta dinâmica conservadora? Por que a libido deste exilado se prendeu às figuras infantis e este “passado” é sempre revivido de forma plástica e atemporal?

Analisando com mais vagar o trecho que selecionamos, vemos que Freud se refere a uma primeira satisfação sexual “ainda vinculada com a nutrição”, cujo objeto de satisfação se encontra “fora do próprio corpo, o seio materno. Falamos aqui de um passado cronológico, ainda. E aqui nos cabe perguntar sobre esta primeira vivência de satisfação: o que é este evento inaugural, cuja marca de chegada é o mesmo ponto de partida, o (re)encontro com o objeto?

Para Laplanche e Pontalis (1998), a vivência de satisfação consiste:

No apaziguamento, no lactente, e graças a uma intervenção exterior, de uma tensão interna criada pela necessidade. A imagem do objeto satisfatório assume então um valor eletivo na constituição do desejo do sujeito. Ela poderá ser reinvestida na ausência do objeto real (satisfação alucinatória do desejo) e irá guiar sempre a busca ulterior do objeto satisfatório (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p. 530).

Isto é, quando a mãe oferece o seio ao bebê, suprindo uma necessidade e, conseqüentemente, provocando uma vivência de satisfação, estabelece-se aí uma facilitação, ou seja, uma preferência pelo caminho utilizado pela excitação entre duas imagens mnêmicas: a do objeto de satisfação e a da descarga pela ação específica. Assim, na ocorrência de outras situações futuras de carência, os registros na memória relativos a esta vivência de satisfação serão novamente evocados no afã de repetir o alívio da tensão experimentado. No dizer de Freud, “um impulso psíquico [o desejo] procurará recatexizar a imagem mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação de satisfação original” (FREUD, [1900]1996, p. 601). Em outras palavras, retornar pelas vias da memória e do desejo a signos do passado infantil: a mãe “como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de todas as relações amorosas posteriores – para ambos os sexos” (FREUD, [1938]1996, p.202).

Podemos explicar a busca nostálgica pelo passado utilizando a teorização freudiana sobre o desejo, a experiência de satisfação e a conseqüente fixação da libido. E como aponta Martins (2002, p.36), essa ligação primeira “realiza em fantasia o ideal da completude, do reencontro com o paraíso perdido” (grifo nosso). A fantasia de retorno ao seio nos traz de volta ao desejo nostálgico dos românticos por uma completude vivenciada anteriormente. Aliás, em 1930, Freud assinala que o corpo materno “é essa morada original cuja nostalgia persiste sempre, provavelmente, onde estávamos em segurança e onde nos sentíamos bem” (FREUD, [1930]1996, p.101), para em 1932 concluir: “parece que a avidez da criança pelo primeiro alimento é completamente insaciável, que a criança nunca supera o sofrimento de perder o seio materno” (FREUD, [1932]1996, p. 131).

Da mesma forma, podemos dizer que o sujeito permanece ligado a signos do passado porque, como nos diz Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, esse também é o percurso mais fácil e (re)conhecido pela libido: “sem dúvida, o caminho mais curto para a criança seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância, com uma libido, digamos, amortecida” (FREUD, [1905] 1996, p.234).

Nosso percurso até aqui indica que no desejo de incesto e/ou na interdição deste encontramos o obstáculo e a motivação oculta dos amores proibidos das histéricas e dos personagens da literatura romântica, a saber, as ressonâncias do romantismo na letra freudiana. Por outro lado, uma antinomia se instala: enquanto no romantismo a morte possibilita e representa um reencontro dos amantes – lembremos da certeza de Werther-, podemos detectar no dizer de Freud uma posição totalmente avessa à expectativa romântica de um encontro que proporcione a almejada completude – a reconciliação das unidades, a satisfação completa.

Exatamente aqui a psicanálise estabelece uma descontinuidade epistêmica com o romantismo, ao tempo em que marca a sua especificidade: “quando o objeto original de um impulso desejoso se perde em conseqüência do recalque, ele se representa, freqüentemente, por uma sucessão infindável de objetos substitutos, nenhum dos quais proporciona satisfação completa” [grifo nosso] (FREUD, [1910]1996, p.194). Em outras palavras, há uma dissimetria irredutível entre o objeto buscado e o objeto achado. O objeto achado pelo desejo não é aquele que originou esse desejo: este permanecerá para sempre perdido. Lembremos que possuir a mãe seria cometer um incesto. Por isso, a função do princípio do prazer não é tornar possível o encontro com este objeto incestuoso, mas justamente o contrário: tornar impossível esse encontro é o que nos faz humanos e possibilita que continuemos desejando para além dos objetos perdidos: “a barreira do incesto [exclui] expressamente da escolha objetal, na qualidade de parentes consangüíneos, as pessoas amadas da infância. O respeito a essa barreira é, acima de tudo, uma exigência cultural da sociedade” (FREUD, [1905]1996, p.23).

Desta forma, ao contrário do que reza o romantismo, o desejo de completude – o reencontro satisfatório das unidades em um TODO absoluto e monolítico – é uma busca fantasiosa sem possibilidades de concretização: a insatisfação está no cerne do próprio movimento desiderativo humano. Nas palavras de Miller, “o desejo é sempre um lamentar-se, um deplorar, uma nostalgia [...] O desejo é a sua insatisfação” (MILLER, 1991, p.39).

 

Considerações finais

O texto freudiano aponta que esta dinâmica nostálgica de reencontro com este primeiro amor do romance edípico reside no próprio caráter do amor. De acordo com Freud, todo amor é um reencontro, vinculado ao pretérito; é isso que ele deixa claro até mesmo quando se refere ao amor surgido na clínica, ao indicar que o amor transferencial ou não consiste numa nova edição de modelos e reações da infância: “esta é a característica essencial de todo estado amoroso [grifo nosso]. Não existe um só apaixonamento que não reproduza protótipos infantis. É exatamente desta determinação infantil que ele recebe seu caráter compulsivo” (FREUD, [1915], p.153). Nas palavras de Monzani, encontramos a mesma remissão aos amores edipianos na arquitetura amorosa do ser humano: “é no e pelo desejo da mãe, da sua posse, que [a estruturação genital da sexualidade] se explica. É por isso que as desventuras da sexualidade humana sempre remetem ao episódio edipiano”(MONZANI, 1989, p.52).

Todavia, ainda que o fenômeno amoroso tenha sido caracterizado neste trabalho como fincado sobre anseios de completude – o eco do romantismo na concepção freudiana – o que a psicanálise pode proporcionar ao sujeito é um reposicionamento das suas demandas ilimitadas de amor, acatando a castração, o limite ao seu desejo imperativo: o que não o nega, mas remete o sujeito a se confrontar com uma satisfação amorosa limitada, parcial, finita, sem encontros transcendentais ou promessas de completude. Processo que em nada é tão simples e rápido como possa nos parecer à primeira vista. Afinal, os dilemas amorosos impostos pelos ideais românticos ainda são tão presentes quanto nos tempos de Freud, e é isso que destaca Lejarraga (2002). Para esta autora, os resquícios do amor românico nos dias atuais deram origem a uma situação paradoxal: “o suicídio do jovem Werther, que fez vibrar gerações inteiras com seu heroísmo passional, não comove os corações individualistas e narcísicos dos indivíduos contemporâneos” (LEJARRAGA, 2002, p.177). Por outro lado, constata que o amor romântico parece permanecer no imaginário como ideal - decadente - mas ainda tirânico, tornando, desta forma, ilegítimas as demais formas de relacionamento que se afastam do seu padrão restritivo: “embora o declínio do ideal [romântico] amoroso gere desconcerto e mal estar, a sua permanência é fonte de exclusões e sofrimento, para os que não conseguem atingi-lo” (LEJARRAGA, 2002, p.178).

E que novo tipo de amor poderia trazer aos relacionamentos atuais uma certa constância e satisfação que redimensione a fantasia romântica de reencontro das unidades perdidas? Como podemos reinventar o amor e dar-lhe moldes mais possíveis?

Deixemos ao leitor o debate, porque a psicanálise não se propõe a transmitir padrões universais. Ela é uma teoria do singular, uma práxis e um discurso acerca do pathos de cada um, e como tal aposta na capacidade inventiva de cada sujeito para solucionar ou lidar com seus dilemas afetivos. Assim, como dizia Freud ao início de cada sessão: “vamos começar?”.

Se quisermos conservá-lo [o amor] no que ele tem de bom, temos de reinventá-lo. Dar-lhe medida humana. Sim, porque se trata de uma criação do ser humano. Pode ser mantido, alterado, melhorado, piorado e até abolido [...] porque amar é uma habilidade moldada pela cultura, segundo os padrões da sociedade burguesa européia. E as invenções humanas são alérgicas a normas fixas. O amor precisa de uma nova ética que derrube os modelos irrealizáveis de relacionamento. (COSTA, J. F. , 1998, p.39).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
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Recebido em 13/01/2008

 

 

*Doutor em Filosofia Moderna pela Unicamp, pós-doutor pela Pontificia Università Lateranense/Roma e professor titular da Universidade Católica do Salvador/Mestrado em Familia na Sociedade Contemporânea, bem como do curso de psicologia da Faculdade Ruy Barbosa, instituição em que dirige a Revista Cientefico. É autor de Máquina de deuses: a teoria freudiana da cultura.
**Mestra em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador com especialização em Psicologia Conjugal e Familiar/Faculdade Ruy Barbosa, e Teoria da Clínica Psicanalítica pela Universidade Federal da Bahia. Ex-aluna do Círculo Psicanalítico da Bahia.

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