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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.31 Belo Horizonte Oct. 2008

 

 

O carteiro e/ou o poeta

 

The postman and/or the poet

 

 

Marli Piva Monteiro*

Círculo Psicanalítico da Bahia
Academia Brasileira de Médicos Escritores

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando por base o filme de Michael Radford “O carteiro e o poeta” propõe-se uma leitura psicanalítica. Poetas e carteiros são simbólicos condutores de palavras – eles as transferem. Entre Pablo Neruda e o carteiro italiano, instala-se uma transferência. Pablo quer um filho, assim como Mario Ruopollo procura um pai. De metáfora em metáfora, ocorre o encontro dos dois.

Palavras-chave: Poeta, Carteiro, Palavras, Transferência, Metáfora, Nome-do-Pai.


ABSTRACT

Based on the film directed by Michael Radford “The postman and the poet”, a psychoanalitic reading is proposed. Poets and postmen are words conductors in a symbolic sense – they do transfer. In a way, we may say a transference is stablished between Pablo Neruda (the poet) and Mario Ruopollo (the postman). Pablo looks for a son, as well as, Mario seeks for a father. Metaphor by meytaphor they come to a lively encounter.

Keywords: Poet, Postman, Words, Transference, Metaphor, Name-of-the-Father.


 

 

“O carteiro e o poeta” é uma co-produção ítalo-francesa dirigida por Michael Radford com roteiro de Anna Pavignano, Michael Radford e Massimo Troisi, tendo como atores principais Phillipe Noiret e Masimo Troisi, baseado no livro de Antonio Skarmeta Il postino di Neruda que, literalmente, seria traduzido por “O carteiro de Neruda”. O papel feminino principal coube a Maria Grazia Cucinotta. Radford nasceu na Inglaterra e seus primeiros trabalhos cinematográficos foram para a tevê. Fez vários documentários para a BBC de Londres e, em 1984, seu primeiro longa metragem foi premiado no festival de Cannes. Depois de anos no ostracismo, foi convidado por Massimo Troisi para co-dirigir “O carteiro e o poeta”.

Troisi era italiano e nasceu em 1953. Sua carreira no cinema foi sempre de comediante. O livro de Skarmeta o encantou e decidiu dirigir, juntamente com Michael Radford, o filme no qual se incumbiu do papel principal, seu primeiro papel sério. Portador de cardiopatia, Massimo Troisi desmaiou algumas vezes durante as filmagens e Radford lhe propôs abandonar o filme, mas Massimo não concordou. Lutou com toda a garra pelo filme ao qual deu a própria vida. O coração de Troisi, que aguardava um transplante, falhou 12h após a conclusão das filmagens. O Oscar de melhor ator foi a maior homenagem póstuma, e a belíssima trilha sonora de Luis Bacalov também ganhou a estatueta de ouro de Hollywood.

É um filme para todos os sentidos e em todos os sentidos. A fotografia é linda, a música, maravilhosa e os textos, magníficos. Um libelo à amizade, à fraternidade e à lealdade. Uma ode ao amor e à poesia. Uma prova incontestável de que a poesia pode estar em toda parte, basta que alguém seja capaz de resgatá-la para fazer-se poeta. Para Munsterberg, “um filme deve ser feito para despertar emoções” – é este o filme.

O cenário do filme é uma ilha isolada na costa italiana onde o poeta Pablo Neruda curte exílio político.

Mario Ruopollo, tímido e introspectivo filho de pescador, não consegue ajustar-se ao ofício da pesca, sua sensibilidade o chama para algo que não pode ainda perceber o que seja. Em certa medida, Mario é também um exilado. É político o exílio de Neruda, psicossocial, o de Mario. O pai de Mario quase não fala e, quando o faz, é para cobrar do filho que procure uma ocupação. De repente, Mario se depara com um cartaz na porta dos Correios, procurando um carteiro que possua bicicleta, para um emprego temporário. Mal poderia imaginar que este trabalho mudaria o seu destino. Mario é contratado para entregar, diariamente, a correspondência do poeta Pablo Neruda, numa casa singela, em Cala di Sotto.

Da dimensão do poeta, Mario tomara conhecimento através dos jornais de um cinema, na Itália, quando da chegada do poeta. As notícias confirmam sua popularidade, no tumulto gerado na estação Termini, em Roma, e no assédio das mulheres italianas. Mario intriga-se com a quantidade de cartas de mulheres, recebidas por Neruda e passa a fantasiar um poder extraordinário desse homem, para conquistar tantos corações femininos. As explicações do comunista dos correios de que a correspondência era política não o convence. Ele precisa descobrir o dom especial de Pablo Neruda. Todos os dias, Mario olha inquiridor para dentro da casa, tentando descobrir o mistério, tenta uma conversa com Neruda, mas no começo não logra êxito. Passa então a ler os versos do poeta e pede-lhe que os explique. O pedido surpreende e desconcerta o poeta.”Como explicar com as suas palavras o que eu escrevi com as minhas?” Além disso, “a poesia explicada se torna banal”. Mas o carteiro não desiste, volta aos versos de Neruda e declara identificar-se com ele quando diz “estou cansado de ser homem”. A injunção angustia Mario. Mario, porém, precisava saber que poder estranho e misterioso era esse que o poeta possuía com as palavras. Para ele, Dom Pablo é um poço sem fim de palavras e é capaz de dizer tudo, possui um saber infinito. Ele o admira e inveja. Para Mario, filho de um homem que quase não usa palavras, é muito importante o reconhecimento de um que as usa o tempo todo com sucesso.

Poderíamos dizer que, a partir dessa nova relação, Mario descobre a falta. A Mario falta a referência, o pai ou a metáfora paterna. A Pablo falta o filho – a confirmação da continuidade, da herança da perpetuação da espécie. Como um menino em busca de um modelo que o respalde na sua masculinidade, Mario busca Neruda e é por ele acolhido. Deste modo, Mario também se dá conta do desejo que o impulsiona e instiga a prosseguir em busca do seu objeto.

– Eu também queria ser poeta. Como fazer para tornar-se poeta?

São as palavras que ligam estes dois homens, tão diferentes quanto às suas histórias, sua classe social, sua profissão, seus mundos, suas crenças.

Na praia, Mario e Pablo conversam. Pablo recita para Mario um poema que acabara de fazer e fica pasmo com a observação do jovem de que sentira algo estranho ao ouvir os versos, mas logo depois, encantado com a sensibilidade do rapaz, quando este observa o ritmo das palavras semelhante ao vaivém das ondas que o fez sentir-se como “um barco batendo entre as palavras”. Mario faz metáforas sem se dar conta e não consegue entender como é possível criá-las sem ter tido a intenção. A ele escapa que as imagens chegam espontaneamente e é a intenção o que menos importa ao poeta.

A partir desse momento, carteiro e poeta são dois homens definitivamente envolvidos com palavras – um que as conduz e outro que as produz. Na realidade, o que torna uma palavra metáfora é o que o poeta é capaz de fazer dela.

Para Mario é tudo muito novo e instigante e o resume na pergunta: – “O mundo inteiro é então metáfora de qualquer coisa? A pergunta cala o poeta que promete pensar, para respondê-la no dia seguinte. Nesse diálogo, Neruda sintetiza a essência do poético enquanto Mario o desafia a não abandonar a dialética da questão.

Apaixonado pela bela Beatrice e sentindo-se confuso ante os sentimentos inesperados, Mario não tem dúvidas, recorre a Dom Pablo. O que dizer à amada. “Perto de você me calo, tudo penso e nada falo, tenho medo de chorar”, diria o nosso poeta Noel. O carteiro pede ao poeta o presente maior – um poema para a sua musa, mas o poeta reage. Não posso escrever se nem a conheço, o poeta não inventa, tem que conhecer o objeto ao qual dedica um poema. Mario não compreende por que o poeta se nega a ajudá-lo e lhe apresenta o objeto metonímico – a bolinha. A mesma bolinha que o cineasta utiliza com muita habilidade, pois a confunde, em linda cena, com a lua. A partir daí, Mario começa a sussurrar metáforas a uma Beatrice embevecida, “seu sorriso se espalha como uma borboleta”. Mario rouba um ardoroso poema de Neruda dedicado a sua mulher, Matilde, e o oferece a Beatrice e, quando Neruda reclama, ele diz, num maravilhoso insight da função do leitor, que a poesia não pertence ao poeta, mas aos que dela precisam. Mario investe-se mais e mais da função de poeta. Indignada, a tia de Beatrice procura Pablo Neruda, responsabilizando-o pelas investidas do carteiro e ameaçando Mario caso não se afastasse da sobrinha. Nesse momento, Pablo assume a função paterna e defende e protege Mario Ruoppolo.

Numa belíssima cena de identificação, descem os dois de bicicleta para que Neruda conheça Beatrice, nome de musa inspiradora de Dante Alighieri e Gabriele D’Annunzio. Na presença de Beatrice, Neruda realiza uma verdadeira iniciação de Mario, ao assinar o livro que lhe deu de presente. Inscreve-o assim na comunidade como amigo fraterno, companheiro, filho.

Carteiro e poeta se confundem aqui como homens de palavra. Palavras de honra, de dívida, de compromisso. Chama a atenção o título do filme em inglês e em italiano que é apenas “O carteiro” (“The postman”) e (“Il postino”) Curioso é observar que o poeta é uma metáfora de carteiro ou vice-versa. Ambos conduzem palavras. Ambos caminham muito para chegar ao seu destino. Ambos desconhecem as mensagens que levam, seus destinatários e suas repercussões. O poeta, como o carteiro, é portador de sonhos, mas muitas vezes um destruidor de ilusões. Ambos são sempre esperados com ansiedade e festejados se trazem boas novas, ou malditos se escancaram as verdades e semeiam desilusões. Ambos vivem de provocar emoções de toda espécie nos outros.

Mas, por falar em metáforas, a situação também atualiza a própria relação analítica quando um indivíduo procura um outro a quem atribui um saber absoluto e constrói uma relação cheia de idealizações. No entanto, encontra no outro alguém ciente de si e sabedor que não possui tal saber, não lhe responde como era o desejado pelo solicitante, não lhe dá uma resposta fechada, pronta, objetiva, mas o convida e incita a pensar para produzir ele mesmo suas respostas. O conselho de Neruda para que Mario vá caminhar na praia que as metáforas lhe chegarão, sugere a proposta da livre associação. Instituído neste lugar de poder grandioso, Pablo se dispõe a uma escuta atenta e, saindo do foco principal, acompanha a caminhada de Mario. A metáfora da relação transferencial é perfeita.

A amizade que se estabeleceu entre esses dois homens engrandece a ambos – o primeiro, o carteiro, um homem simples, acaba tornando-se poeta e inscreve-se no Partido Comunista, identificando-se com o pai poeta ao qual dedica um poema e, por fim, morre como herói. O segundo, Pablo Neruda, poeta consagrado internacionalmente, vencedor do Premio Nobel, senador do Chile e candidato à presidência da República, presentifica a sua prática de poeta do povo na relação com um jovem puro e humano que o procura como modelo e paradigma de pai. Mario lhe ensina a buscar metáforas no quotidiano, sem esforço, como quando grava para ele a fita com os sons das ondas do mar de Cala di Sotto, as mais leves e as mais agitadas, o murmúrio do vento no alto da montanha ou acariciando os arbustos, o repicar dos sinos ou as batidas do coração do seu filho.

Neruda foi padrinho de casamento de Mario e recebeu como a maior homenagem de seu amigo, o nome do filho deste, Pablito. Após o casamento, Neruda volta para o Chile.

A volta de Dom Pablo à ilha é uma lição de amor e lealdade, além da comprovação do reconhecimento duvidado por todos, principalmente pela tia de Beatrice que repetia sempre “Ucello che ha mangiato vola via” que numa tradução livre poderia ter como equivalente, a expressão “Pirão comido, pirão esquecido”.

Neruda não se esqueceu. Mario jamais duvidou do amigo e soube compreendê-lo. O que lhe foi dado foi muito mais que um poema, um caderno para registrar seus próprios versos, ou as gorjetas, quando entregava a correspondência. Neruda deu a Mario o que não tinha, mas que este supunha que ele tivesse e que almejava tanto – o dom, a maestria de domar as palavras, construir metáforas e libertar-se, tornar-se sujeito do seu próprio destino.

 

Referências

O CARTEIRO E O POETA – Direção: Michael Radford. Co-produção ítalo-francesa Cecchi Gori Group Tiger Cinematográfica. DVD 109 minutos.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.         [ Links ]

LACAN, Jacques. O Seminário livro 7 : a ética da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.        [ Links ]

SKARMETA, Antonio. O carteiro e o poeta. Trad. Beatriz Sidon. 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Av. ACM 1034 s/121 C – Itaigara  
41825-000 Salvador- Bahia
E-mail: traduzir@compos.com.br

Recebido em 20/03/2008

 

 

* Psicanalista do CPB. Médica. Pós-graduada em tradução (UFBA). Membro da ABRAMES (Academia Brasileira de Médicos Escritores).

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