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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Mães e crianças vivendo com hiv/aids: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade1

 

HIV – Positive mothers and children: fear, anguish and silence making childhood invisible

 

 

Juliana Marques Caldeira BorgesI,II2; Jorge Andrade PintoIII3; Janete RicasIII4

ICírculo Psicanalítico de Minas Gerais
IIHospital Infantil João Paulo II
IIIUniversidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do discurso de mães que transmitiram a infecção pelo HIV ao filho via transmissão materno-infantil (vertical), os autores investigaram as implicações que a subjetividade materna traz para a vida dessas crianças. Analisou-se como a infância pode ser atingida pelo vírus HIV para além das dimensões relativas à infecção, enfocando principalmente as questões psíquicas presentes neste contexto.

Palavras-chave: HIV/Aids, Transmissão materno-infantil, Subjetividade, Criança, Relação mãe-filho.


ABSTRACT

Based on the discourse of HIV-positive mothers who transmitted the infection to their infants via mother-to-child transmission (vertical), the authors looked into the implications brought into the children’s lives by maternal subjectivity. They analized how childhood can be affected by the HIV virus, which goes far beyond the biological questions related to infection, and focuses mainly on the psychological implications presented in this context.

Keywords: HIV/Aids, Mother-to-child transmission (MTCT), Subjectivity, Child, Mother-child relation.


 

 

Porque o sangue que herdamos não é somente o que trazemos ao chegar ao mundo. O sangue que herdamos está feito das coisas que comemos quando crianças, das palavras que nos cantaram ainda no berço, dos braços que cuidaram de nós, da roupa que nos agasalhou e das tempestades que outros venceram para nos dar a vida. Mas, sobretudo, o sangue se tece com as histórias e os sonhos de quem nos faz crescer.
Ángeles Mastretta

 

Inicialmente a Aids foi relatada como uma doença específica de certos grupos de pessoas com comportamentos denominados de risco, como os homossexuais, os usuários de droga, as profissionais do sexo, dificultando-se, assim, a previsão e prevenção de contaminação das pessoas heterossexuais(LENT, 2005). Esses conceitos iniciais ainda persistem, levando parte da população a se colocar numa posição “acima de qualquer suspeita”, a se negar a pensar sobre a Aids e, consequentemente, a não assumir condutas de prevenção da contaminação, o que levou a um avanço considerável da epidemia entre os heterossexuais.

Sendo assim, foi difícil admitir que uma doença conhecida inicialmente como sendo do grupo dos excluídos da sociedade, marginalizados e discriminados, viesse a atingir a infância, concebida por todos como a fase da inocência e, por isso, livre de muitos perigos que a vida adulta oferece. A contaminação da criança pelo vírus HIV passou a representar um drama tanto para a família quanto para a relação mãe/filho, uma vez que esta se dá, na grande maioria dos casos, pela transmissão materno-infantil (transmissão vertical). Ao analisarmos a transmissão vertical do HIV sob o ponto de vista psíquico, não podemos deixar de assinalar o fato de que as crianças nascidas de mães que contraíram a infecção pelo HIV adquirem o vírus na gestação, durante o parto ou através da amamentação. Para a mulher, estes três momentos costumam ser profundamente significativos em suas vidas uma vez que possibilitam a vivência da maternidade no plano não só da realidade, mas fundamentalmente no plano simbólico. A ideia de que um vírus potencialmente letal possa ser transmitido exatamente no momento em que o que se apresenta no imaginário materno diz respeito à vida do filho, torna-se inadmissível para qualquer mãe.

Percebe-se nisso uma complementar contradição, vida e morte convivendo juntas. A morte, na presença do HIV e a vida, na capacidade de procriar e cuidar, aparecendo como a prova de que se pode viver e dar a vida, mesmo com a sombra da morte (VERAS;PETRACCO, 2004, p.139).

A angústia, decorrente da vivência do paradoxo vida e morte, passa a fazer parte da vida das mulheres HIV+, assim como de representações contraditórias de mãe-mulher: “a representação da mãe, enquanto mulher que dá a vida, opõe-se àquela de mulher perigosa” (COTOVIO apud VERAS;PETRACCO, 2004, p.139). No inconsciente, essas duas representações vão coabitar, fazendo com que a imagem da doadora de vida possa se transformar em imagem de doadora de morte (VERAS; PETRACCO, 2004).

Estas representações contraditórias de mãe-mulher, vida-morte, gestação-contaminação nos apontam uma questão complexa em relação à transmissão vertical do vírus HIV. Além dos aspectos objetivos importantes aqui presentes, como os cuidados durante a gestação, pré e pós-parto, para se evitar a transmissão, temos que lidar com aqueles subjetivos que dizem respeito à maneira com a qual a mãe vai elaborar psiquicamente a sua contaminação e a da criança e reagir em relação aos cuidados necessários, adotando-os ou não. Se tomarmos a proibição da amamentação nesses casos, o que interfere profundamente no vínculo mãe-criança em um momento de extrema fragilidade, teremos a dimensão de uma das questões subjetivas presentes na transmissão vertical (PADOIN; SOUZA, 2006).

Para analisarmos melhor essas questões, desenvolvemos um estudo que teve como objetivo geral investigar os efeitos do diagnóstico da infecção pelo HIV na subjetividade materna e das implicações desta para a criança que vive com HIV/Aids. Como objetivos específicos, analisamos a forma como ocorreu o diagnóstico da criança, a percepção das mães sobre sua comunicação, as reações familiares a ele, as mudanças ocorridas após o diagnóstico, as estratégias utilizadas para lidar com este, os sentimentos e reações maternas ao longo do tempo, as principais preocupações com a criança, a subjetividade materna e suas implicações na vida da criança, a relação mãe-filho e a dificuldade do diálogo com a criança sobre o HIV. Utilizando a metodologia qualitativa, abordamos, através de entrevista semiestruturada, 14 mães de crianças portadoras do vírus HIV por transmissão materno-infantil em atendimento em um centro de referência para tratamento de crianças com HIV/Aids em Belo Horizonte. As mães desconheciam ser portadoras do vírus HIV durante a gestação da criança. Para a análise dos resultados, foram utilizadas a Análise de Discurso e a Psicanálise.

Os relatos das mães foram extremamente significativos e evidenciaram com muita propriedade questões relacionadas aos objetivos do estudo. Selecionamos alguns a serem apresentados durante nossa discussão, em que os nomes das mães e das crianças foram substituídos para que se preservasse sua identidade.

O diagnóstico da infecção pelo HIV, que na maioria dos casos estudados ocorreu a partir do adoecimento da criança sem que a família soubesse de sua existência, revelou-se um acontecimento dramático. Um diagnóstico inesperado pelas mães, no qual encontramos relatos de choque, susto, revolta, desespero, raiva do companheiro, culpa, agonia, incredulidade, angústia e, em alguns casos, desejo de morrer.

[...] Eu chorava, “O meu sangue que passou pra ela, infectado!”, é horrível. Horrível mesmo. Aí eu tinha vontade de morrer, mas eu pensava assim: “Se eu morrer, e ela?” [...] Eu senti a pior mãe do mundo. Falei: “Eu peguei Aids na Gisele! A pior mãe do mundo!”, [...] E olhava pra ela, assim, e falava: “Gisele, eu tô te matando, meu sangue que passou pro seu é que tá te matando”, e via ela só grave, terrível, né? Eu olhava lá no fundo do olho dela, aquele olhinho fraquinho, querendo viver... (Guiomar/mãe de Gisele, 9 anos).

O sentimento de culpa das mães em relação à transmissão do vírus HIV ao filho, além da intensa angústia desencadeada, parece provocar comportamentos diversos, desde atitudes de superproteção a certo distanciamento da criança. Vemos a seguir a dedicação ao filho, cuidados às vezes excessivos e atitudes de superproteção.

[...] a culpa que eu carregava era assim, eu protegia ela demais, mas protegia pela minha culpa, sabe, de não deixar ela fazer nada de culpa minha. [...] eu acho que foi mais por causa de ser soropositivo, mas não é, a cabeça da gente, não é que eu ache que ela não possa andar sozinha porque ela é soropositivo, mas aquele medo que eu tinha, da Aids, eu acho que eu passei isso pro medo deles andar, de que, vinha na minha cabeça [...] a Luísa, se ela tá no ônibus e se alguém tá do lado dela, e vai fazer alguma coisa [...]a preocupação não era HIV [...], eu acho que era do HIV que veio esse medo. As loucura, né, que vai passando na cabeça da gente, que, em função do HIV (Lívia/mãe de Luísa, 13 anos).

Guiomar nos conta que tem um comportamento às vezes oscilante com a filha Gisele. Apesar de viver fazendo “tudo” por ela, até em excesso, em alguns momentos a trata com grosseria, negando-lhe ajuda em tarefas simples, mandando-a “se virar”. Ela explica que faz isso conscientemente para ensinar Gisele a reagir às frustrações futuras que possa vir a sofrer por viver com HIV/Aids. Percebemos em sua entrevista que ela sofre enormemente com a culpa e, como consequência, quase não descola de Gisele, protegendo-a o tempo todo. Embora ela tente, racionalmente, preparar a criança, percebemos que não consegue deixar espaço para a filha desenvolver sua autonomia, como diz querer fazer. Ela nos conta um fato significativo, de que, quando neném ainda, a criança teve algumas crises de cianose que a família acreditou persistir, apesar dos médicos terem dito que Gisele não sofria de nenhum distúrbio que pudesse provocar esse sintoma.

[...] eu acho que ela pegou psicologicamente esse roxo também que ela sabia que me deixava doida esse roxo, e todo mundo. [...] Aí, na hora do banho, ela falava: “Ô mãe, pega esses pano tudo que eu vou ficar roxa”. Era cobertor, era até umas toalhas. [...] Mas eu dava banho nela e deixava pelo menos duas toalhas e uma meia que se ela ficasse roxa eu tava lá pra acudir. [...] Aí até que teve um dia que ela incomodou e não falou comigo não, falou com a psicóloga. ... Que eu tava dando banho nela até hoje. Com sete anos, tava com sete ou oito. Eu tava dando banho nela até hoje. Aí a psicóloga falou com ela pra ela me falar. Ela falou: “Ô mãe, eu falei com a psicóloga, dando banho ne mim até hoje, eu tô com oito anos! Eu não vou ficar roxa mais não”. Aí eu passei a deixar ela tomar banho sozinha, falei: “resolve lá.”. Mas de vez em quando, ela queixa. Hoje mesmo: ela tomou banho pra ir pra aula, era meio-dia. Ela falou: “Ô mãe, vem cá me enxugar, mãe, que eu tô ficando roxa” “Tá ficando roxa nada não” (Guiomar).

A cianose, o “roxo” como significante de uma fragilidade que demanda sempre a presença materna, tornou-se a justificativa para que a mãe nunca se ausentasse.

[...] antes dela nascer, a obstetra falou que poderia nem sobreviver por causa do meu estado que tava muito debilitado (Guiomar).

Percebemos aqui como uma questão que inicialmente surgiu para esta mãe antes mesmo do nascimento da filha – o medo de ela não resistir – tornou-se fonte de angústia para a criança que, mesmo querendo uma separação, ainda teme algo fantasmático em torno de sua existência, “carrega” o temor da mãe que se presentifica no significante “roxo”.

A fala da médica fez surgir uma questão fantasmática para a mãe antes mesmo do diagnóstico de HIV, o que, acentuada por este, provocou como resposta materna uma posição de extremo zelo perante a criança.

Deu positivo? E ela vai viver? Ela tem chance de sair daqui?” Aí a médica falou: “Tem, nós vamos investir tudo nela” [...] Me colocou a par, de coisa que eu já sabia também, que ela tava debilitada, ela tava grave, que ia ser diferente de muitos outros, né? Aí eu falei: “Então tá. Se depender de mim, a minha filha não vai morrer disso não (Guiomar).

Podemos notar que a promessa feita por Guiomar está presente o tempo todo na relação com Gisele, estabelecida nos cuidados e no sintoma como o “roxo”, por exemplo. Fazendo uma inversão em sua frase, podemos encontrar o sentido da relação mãe e filha.

Se a minha filha depender de mim não vai morrer disso não.

O lugar da criança aqui acaba sendo o de dependência, uma vez que, na fantasia materna, é o que lhe garante a vida. Essa construção fantasmática transmitida à criança vai determinando sua posição na relação com a mãe.

Segundo Mannoni (1983, p. 64-65),

A atitude da mãe pelo fato mesmo da deficiência física ou psíquica da criança induz nessa última certo tipo de respostas: o estudo mais aprofundado dessa questão permitiria explicar a escolha privilegiada feita pela criança entre diferentes tipos possíveis de resposta. Quando um fator orgânico está em jogo, tal criança não tem só que fazer frente a uma dificuldade constitucional, mas ainda à maneira pela qual a mãe utiliza esse defeito num mundo fantasmático que acaba por ser comum a ambos.

O medo que essas mães relatam ter de a criança adoecer interfere muito em seu cotidiano, fazendo com que elas passem a conduzir a vida do filho e imponham a ele várias limitações, muitas vezes desnecessárias, tais como: não poder entrar na piscina, não tomar gelado, não poder brincar livremente como uma criança saudável, mesmo quando não existe nenhum sinal de doenças como gripe ou alguma infecção de garganta, por exemplo.

Clarissa nos aponta como o filho internalizou o que ela sempre lhe dizia e hoje, aos 12 anos, mantém os mesmos limites de antes.

Eu ficava com medo que ele adoecesse, que aquilo virasse uma pneumonia, porque realmente a resistência abaixa muito, muito rápido. E ele foi crescendo assim: até hoje ele não põe o pé no chão, só mesmo calçado, não gosta de tomar gelado porque ele sabe que corre o risco de infeccionar a garganta. [...] Eu falava com ele: “não põe o pé no chão, que se você ficar doente, nós vamos voltar pro hospital”. O medo era esse: ter que ficar internado, né? Aí hoje eu falo com ele: “Carlos, tira a camisa, tá fazendo calor”, ele não gosta [de tirar a camisa] [...] o irmão já é totalmente ao contrário: gosta de andar pelado, com pé no chão, gosta de beber gelado... E o Carlos mesmo falava com ele: “Eu não vou ficar doente, você vai.” (Clarissa/mãe de Carlos, 12 anos).

Vemos aqui que a preocupação da mãe passa a ser também a do filho. Consideramos importante destacar a fala de Carlos para o irmão como exemplo de como uma criança pode se angustiar em decorrência das preocupações da mãe com sua saúde. Se estas forem muito intensas, poderão transmitir à criança os receios e fantasmas maternos ligados à Aids.

O relato a seguir, de Guiomar, demonstra como a filha expressa o medo da morte. A mistura de papéis mãe-filha no que diz respeito aos cuidados e receios com o presente e o futuro mostra a identificação da criança com uma mãe assustada pela possibilidade da morte:

[...] Que elas ficam assim: “Mãe, dá um tempo. Mamãe, não morre não, mãe. Toma o remédio, mãe, não morre não.” [...] A Gisele fala: “Não. Se ocê morrendo ou não, cê vai morrer só quando tiver bem velhinha”. Agora ela fica com medo de morrer, mas eu não fico com medo de nada. E ela vem, tadinha, me acha só pra tomar o remédio certo (Guiomar).

A fala da criança é também uma maneira que ela encontra para dizer de seu medo em relação à incerteza da vida e do futuro – “ocê morrendo ou não” – mesmo que faça uma aposta ao revelar a esperança de uma possível velhice para a mãe e, consequentemente, para ela.

A superproteção relatada por várias mães é comum nos casos em que a criança é portadora de uma doença crônica e pode levar à sua infantilização, como vemos na fala de Eunice.

[...] acho que eu, é, trato ele muito, muito criança, entendeu? [...] Demais. Ele faz acompanhamento por isso, porque ele é uma criança imatura [...] o neném de carregar no colo [...] Até hoje, eu tento mudar, eu tenho que mudar porque eu tenho que deixar ele crescer... Ernani vai fazer 10 anos... ele é um menino inteligente? Mas ele é muito imaturo, ele é muito dependente, ele é muito grudado comigo, entendeu? É mais do que os outros [...] não adianta eu querer que ele cresça e eu não deixar ele crescer, né? Porque na verdade quem pôs ele assim fui eu. Eu e o pai, logicamente (Eunice/mãe de Ernani, 9 anos).

Ela traz o filho numa redoma, conforme suas palavras nos apontaram. Apesar de saber disso, age inconscientemente de modo a mantê-lo na mesma posição, como vemos em seu relato:

Eunice: [...] eu sou muito protetora com ele, na escola quando os meninos brigam, bate nele, eu vou e reclamo, e falo com ele, “não quero que você bata nele” [...] igual a psicóloga falou pra eu deixar o Ernani se defender um pouco, né, é, só em último caso, mas eu falo, “se bater em você sua mãe vai gostar? Sua mãe não vai, então eu também não gosto...então não bata nele que eu não quero, e você não é pai dele e você não tem que bater nele. Se ele te fizer alguma coisa, ele tem mãe, cê chega pra mim e me fala que eu vou corrigir, mas não quero que ninguém...”, e vou na sala, e peço licença à professora dele e falo: “Não quero que ninguém bata nele, ele tem mãe, sou eu, se ele fizer alguma coisa com vocês, fala pra mim!”

Entrevistadora: E como é que o Ernani se sentiu nessa ocasião, assim, que você foi lá, defendê-lo e tudo...

Eunice: Ah, ele fica quieto.

Ernani, com dez anos de idade, não consegue reagir à cena constrangedora da mãe invadindo a sala de aula para defendê-lo. A fala de Eunice aponta o lugar em que ele ainda permanece, “quieto”.

Castro e Piccinini (2004) investigaram, em um estudo qualitativo, os sentimentos das mães de crianças com e sem doença crônica relativos à sua experiência de maternidade. O estudo revelou que esta experiência foi afetada pela presença de doença crônica na criança. Isto apareceu especialmente no sofrimento vivido pelas mães com sentimentos ambivalentes em relação às crianças, culpa, ansiedade, superproteção, ansiedade de separação e sentimentos de pouca ajuda de outras pessoas, vindo ao encontro do que temos percebido no contexto da Aids. O fato de a mãe ter possibilitado a transmissão vertical do vírus HIV, conforme temos assinalado, acentua a angústia ligada aos sentimentos descritos pelos autores em seu estudo e, consequentemente, as intervenções destes na relação estabelecida com a criança.

Mannoni assinala a importância de os analistas se interrogarem, na clínica, sobre o lugar da palavra da mãe no mundo fantasmático da criança e o lugar do pai na palavra da mãe.

Como analistas, nós nos encontramos em face de uma história familiar. A evolução da cura é, em parte, função da maneira pela qual certa situação é apreendida por nós. A criança, que se nos traz, não está só, ocupa no fantasma de cada um dos pais um lugar determinado. Enquanto indivíduo é muitas vezes alienado no desejo do Outro (MANNONI, 1983, p. 64).

Em relação ao desejo da mãe pelo pai, fundamental para que ela não tome a criança como um objeto que virá preencher sua falta, este pode ficar comprometido em função da contaminação pelo HIV. A dúvida de uma traição, a mágoa e muitas vezes a revolta sentida pela mãe, provocando seu afastamento do pai da criança, além de outros sentimentos importantes desencadeados pelo diagnóstico, parecem causar conflitos importantes na vida conjugal, mesmo que o casal continue vivendo junto.

Vejamos a fala de Anita:

Não tenho vontade de sexo, não tenho vontade de nada. [...] Mas ele vive fora. [...] Quando ele fala assim que vem pra casa, eu acho ruim. Me bate um nojo [...] eu visto cada roupa, ele fica bravo comigo. Umas saiona feia. Pra ele não me querer, caçar sarna pro meu lado. Ele fala assim “Eu não acredito que ocê não gosta mais” [...] de sexo. Nem com ele e nem com ninguém (Anita/mãe de Amine, 12 anos).

Ela nos revela que, para não ser desejada pelo marido, já que estar com ele após a contaminação causa-lhe tanta aversão, busca se descaracterizar como mulher, apagando os vestígios de uma feminilidade que ela recusa compartilhar com um homem em consequência dos sentimentos ligados ao diagnóstico de HIV. Vejamos como ela tenta repetir com a filha o mesmo apagamento ao imaginar que um remédio para acabar com seu desejo sexual resolveria as questões ligadas à adolescência neste campo:

Anita: E eu já até pedi um remédio pra ela tomar pra ela não ter vontade. Não ter vontade de outras coisas... dessas coisas.

Entrevistadora: Você diz assim: que sua vontade era pedir um remédio pra barrar a sexualidade dela?

Anita: Isso. Pensei. Aí eles falaram comigo que eu era boba, que é só cuidar. Mas ai ai, eu não sei, não. (Anita/ mãe de Amine, 12 anos)

Como será que tem sido para Amine a passagem de menina a mulher, se a imagem do espelho está tão comprometida com as questões apontadas? Ela vê uma mãe apagada, distante do marido, enfeando-se, sem desejo como mulher.

Assim como Anita, Olívia também aponta as dificuldades em ser mulher de um homem que supostamente a contaminou na gravidez. Diz viver bem com ele, mas como mulher se encontra completamente distanciada de tal posição.

A gente vive feliz, tirando isso, vive feliz demais. Igual, foi ontem ou hoje eu tava pensando: “Nó, se não tivesse que fazer esse negócio, ia viver feliz pro resto da vida”. [...] Porque eu acho que a doença veio por causa do sexo, então... Pra mim, dentro de mim, acabou, não precisa, já estragou tudo. Se eu pudesse ficar sem pra sempre, morando só assim, sendo marido e mulher, mas não tendo relação. Acho que seria a melhor coisa (Olívia/mãe de Odila, 6 anos).

Neste estudo percebemos que as mães que conseguiram manter uma relação com o parceiro como mulher, ainda que este não seja o pai da criança, parecem estar menos angustiadas, estabelecendo relações mais saudáveis com os filhos. O amor materno não pode se constituir um obstáculo ao desejo da mulher, o que Naveau aponta como uma questão a ser sempre verificada.

Segundo o autor,

[...] se a criança não satisfaz completamente o desejo da mãe, então a mãe é uma mulher. Dizendo de outro modo, a mãe é uma mulher se sua criança não é tudo para ela, se seu desejo se divide entre a criança e o homem (NAVEAU, 2001, p.139).

Vimos, porém, em vários casos, que o diagnóstico de HIV da criança parece convocar a mãe ao lugar só materno, já que ela se torna, na maioria das vezes, a principal cuidadora do filho em seu tratamento. Estar sempre no lugar de uma mãe zelosa parece afastá-la do lugar de mulher, uma vez que o desejo e a sexualidade são perturbados pelo fantasma de uma doença estigmatizada como promíscua e pela culpa de ter transmitido o vírus à criança.

Soler (2005, p. 103) nos aponta que:

[...] para a criança, a dedicação materna tem um valor tanto maior quanto mais a mãe não é toda sua, e quanto mais não está toda num alhures insondável: mas é preciso que seu amor de mulher esteja referido a um nome. Só há amor por um nome, dizia Lacan: no caso, o nome de um homem, que pode ser qualquer um, mas que, pelo simples fato de ser nomeável, cria um limite para a metonímia do falo, assim como para a opacidade do Outro absoluto. Só mediante essa condição é que a criança poderá ser inscrita num desejo particularizado.

Percebemos que a relação mãe-filho sofreu consequências do diagnóstico da infecção pelo HIV que, de certo modo, conduziram a criança a um lugar marcado por questões fantasmáticas maternas em relação à doença.

Concluímos que o medo e a angústia relacionados à morte e ao preconceito com a Aids estão presentes de maneira intensa na vida dessas mães, confirmando estudos anteriores a esse respeito em relação às pessoas que vivem com HIV/Aids em geral. Porém, a implicação dessa angústia na infância marcada pelo HIV, que se constitui uma questão perturbadora ao psiquismo materno, podendo se tornar uma questão também da criança, foi o que mais nos preocupou como resultado deste estudo. Consideramos essencial apontar que a subjetividade materna vai sempre afetar a vida de um filho, mas, no caso de mães com HIV/Aids, esses efeitos podem marcar profundamente a criança na relação que ela vai estabelecer com sua condição de portadora do HIV. Para além da questão da transmissão biológica, as questões subjetivas vinculadas a essa forma de transmissão podem ser, de fato, perturbadoras para a criança, uma vez que sua infância passa a ser atingida pela angústia, medo, culpa, entre outros sentimentos. O fantasma da mãe em torno da Aids faz com que ela estabeleça com a criança uma relação particularizada na qual muitas vezes impera o segredo e a falta de uma palavra apaziguadora que lhe traga entendimento, já que nesse contexto essa palavra se torna proibida.

Consideramos a imposição do silêncio às crianças um dos aspectos mais impressionantes do diagnóstico da infecção pelo HIV e tememos por seus efeitos, que podem ser devastadores, uma vez que muitas delas parecem compactuar com suas mães ao se calarem, aceitarem a condição de ignorância em que são colocadas e se esconderem sem ao menos entender o que fizeram para merecer a invisibilidade.

Em nossa opinião, a mentira e o segredo passam a ser um comportamento adotado pelas crianças, mesmo quando desconhecem a verdade. A maioria delas parece internalizar o modo silencioso usado pela mãe para lidar com a medicação e com as idas ao médico, já que muitas mães nos relataram não explicar nada aos filhos e que eles não lhes perguntam nada, o que nos é surpreendente em se tratando de crianças. Geralmente elas se expressam com espontaneidade quando querem saber algo desconhecido e costumam ser curiosas, normalmente com poucos impedimentos para perguntas.

Atribuímos esse fato à percepção da criança de que existe um assunto intocável para a família ao qual ela não pode se referir, perguntar, saber ou buscar explicações. Parece não lhe haver outra escolha a não ser optar pela ignorância, ainda que pense solitariamente sobre o que possa estar acontecendo com ela e com os pais, mas nem sempre rompe o pacto de silêncio imposto.

O ato falho cometido por Sofia ao nos relatar a pergunta do filho sobre o motivo de ter que tomar o remédio escondido de seus primos e tios revela a existência de um conflito inconsciente e pode apontar o desejo de esconder não só a doença, mas também a criança do olhar do outro.

[...] agora ele me perguntou: “Uai Mãe, por que que a senhora tem que ficar me escondendo?” [O que ela corrige logo a seguir]: “escondendo de todo mundo na hora de tomar remédio [...]?” (Sofia/ mãe de Sílvio, 10 anos)

Observamos que a dificuldade da mãe em conversar com a criança está presente mesmo nos casos em que esta sabe de seu diagnóstico.

É, eu falo “o problema”, “aquilo”. Eu não comento o nome. Aí eu falo com o Carlos: “Carlos, sabe aquilo?” Aí, assim, eu não falo HIV. [...] Nem com ele. Dentro de casa, quando tá só nós dois, a gente fala: “sabe aquele negócio?” “Sei” (Clarissa/mãe de Carlos, 12 anos).

A indagação de Cruz a este respeito traduz também nossa inquietação quanto à vida dessas crianças:

Mas se o sujeito portador de HIV está reduzido à própria AIDS e se a AIDS é o indizível – é “aquela doença”, aquilo que se deve confessar, mas aquilo que não se pode pronunciar–, o que estamos transmitindo às crianças e adolescentes? Qual a herança que a cultura lhes dá? Se o que existe, existe com um nome, qual será a experiência de si para quem carrega o nome que não se pode dizer? Não somente a AIDS é indizível, mas ele próprio, como sujeito reduzido à AIDS, passou a ser indizível. (CRUZ, 2007, p. 381)

Na função de analista, é preciso apontar a necessidade de um olhar mais cuidadoso às questões que aqui acabamos de expor, principalmente por entendermos que a angústia faz com que sofram a mãe e a criança. A angústia se apresenta para a criança de maneira muito mais complexa pela sua dificuldade em compreender o que se passa ao seu redor e que geralmente permanece oculto pela culpa e pelo medo materno.

Mannoni indica-nos a importância das palavras para assegurar à criança uma vivência psíquica em relação a seu adoecer de uma maneira menos sofrida:

A realidade da doença não é em nenhum momento subestimada numa psicanálise, mas o que se procura evidenciar é como a situação real é vivida pela criança e por sua família. O que adquire então um sentido é o valor simbólico que o sujeito atribui a essa situação como ressonância a certa história familiar. Para a criança, são as palavras pronunciadas pelo seu grupo a respeito da doença que vão adquirir importância. São essas palavras ou a ausência delas que vão criar nela a dimensão da experiência vivida. É também a verbalização duma situação dolorosa que pode permitir-lhe dar um sentido ao que vive. Qualquer que seja o estado real de deficiência ou de perturbação da criança, o psicanalista procura entender a palavra que permanece condensada numa angústia ou cercada numa enfermidade corporal (MANNONI, 1983, p. 65).

Nossa aposta é em uma escuta que contemple também questões subjetivas no tratamento dessas mães, o que poderá ajudá-las a trazer outras palavras a seus filhos. Nosso desejo é que as crianças portadoras de HIV/Aids possam ter um rosto e uma infância à luz do dia para que saiam da invisibilidade a que parecem estar destinadas.

 

Referências

CASTRO, E. K.; PICCININI, C. A. A experiência de maternidade de mães de crianças com e sem doença crônica no segundo ano de vida. Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v.9, n.1, Abr.2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-294X2004000100011&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 19 fev.2009. doi: 10.1590/S1413-294X2004000100011.        [ Links ]

CRUZ, E. F. Infâncias, adolescências e AIDS. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 46, p.363-384, dez. 2007.        [ Links ]

LENT, C. F. Epidemia e subjetividade. In: CARVALHO, M. E. G.; CARVALHAES, F. F.; CORDEIRO, R. P. (Orgs.). Cultura e subjetividade em tempos de AIDS. Londrina: Associação Londrinense Interdisciplinar de Aids, 2005. p. 21-34.        [ Links ]

MANNONI, M. A criança, sua “doença” e os outros. Tradução de A. C. Villaça. 3.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983. 254 p.        [ Links ]

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PADOIN, S. M. M.; SOUZA, I. E. L. A ocupação da mulher com HIV/AIDS: o cotidiano diante da (im)possibilidade de amamentar. DST – J. Bras. Doenças Sex, Transm., v. 18. n. 4, p.241-246, 2006.        [ Links ]

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VERAS, J. F.; PETRACCO, M. M. Adoecimento psíquico em mulheres portadoras do vírus HIV: um desafio para a clínica contemporânea. Cogito, v. 6, p.137-141, 2004.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
R. Padre Rolim, 815/307 – São Lucas
30130–090 – Belo Horizonte/MG
Fone: + 55 31 3274-0443
E-mail: jucborges@gmail.com

Recebido: 24/06/2009
Aprovado: 27/08/2009

 

 

1Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Infância Atingida: os efeitos do diagnóstico de HIV na subjetividade materna e suas implicações para a criança vivendo com HIV/Aids”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde/ Saúde da Criança e do Adolescente, da Faculdade de Medicina/UFMG.
2Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Setor de Psicologia do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Mestre em Ciências da Saúde/UFMG.
3 Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde/UFMG. Professor do Departamento de Pediatria e da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG. Membro da Comissão Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Membro do Grupo de Referência Técnica em AIDS Pediátrica da Organização Mundial da Saúde.
4 Pediatra. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente/ USP. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Qualitativas em Saúde da UFMG: aspectos psicossociais da infância e da adolescência. Professora convidada da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG.

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