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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?

 

Transgression, crime, neurosciences: impasses to the knowledge of psychoanalysis?

 

 

Julio Cesar Diniz HoenischI1; Pedro José Pacheco II2; Carlos da Silva CirinoI3

IUniversidade Tiradentes
IIUniversidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo trata de algumas questões despertadas pelo florescimento das neurociências, de um suposto desgaste da psicanálise diante dessa revolução, articulando as posições epistemológicas tanto de um quanto outro campo de saber sobre o sujeito, a sociedade contemporânea e a criminalidade. Problematiza também a construção de diagnósticos “criminais” precoces e fartamente divulgados pela mídia sem fundamentos empíricos para tanto, o que resulta em uma mistificação do criminoso e constrói uma representação “mágica” da área psi sobre seu modo de trabalho. Por fim, aponta os impasses da psicanálise diante das demandas contemporâneas e dos discursos totalitários, tanto místico/religiosos quanto neurocientíficos radicais, indicando ser a ética o necessário fio condutor para uma reflexão sobre as políticas de existência e a manutenção da área psi como veiculadora destas práticas de modo implicado.

Palavras-chave: Transgressão, Crime, Neurociências.


ABSTRACT

This article addresses some issues developed by the flourishing of neuroscience, an assumed consuming of psychoanalysis in face of this revolution, articulating an epistemological position from both fields of knowledge on the subject, contemporary society and criminality. It discusses also the construction an early “criminal” diagnostic and abundantly spread by the media without empirical foundations, resulting in a wrong perception of the criminal and builds a “magical” representation of the psi area and the way it works. Finally, it points to the difficulties of psychoanalysis in the face of contemporary needs and totalitarian speeches, both mystical / religious as radical neuroscience, indicating that ethics is the necessary way for a reflection about the existential polices and maintenance of the psi area as responsible for spreading these practical in an implied way.

Keywords: Transgression, Crime, Neuroscience.


 

 

Genealogias do saber psicanalítico

A Psicanálise, desde seu advento, sofreu variações conceituais, estruturais e políticas de saber e verdade consideráveis. A construção dos ensaios clínicos do Dr. Freud escandalizou a Viena da época por evidenciar a sexualidade da criança e por colocar que uma clínica da escuta dos sentidos era possível, ocasionando assim uma reorganização da subjetividade de quem fala. Na primeira assertiva, o escândalo estava na profanação da infância, construída como inocente e pura no século XVIII, e, na segunda, no fato de uma “cura” sem medicamentos e sem invasões corporais mais objetivas e visíveis. Logo, a psicanálise nasce envolta em uma aura transgressora, afastada da moral burguesa. Não se tratava de uma escuta fácil de ser construída, visto que a empreitada freudiana custaria muito caro a seu inventor. É interessante utilizar o termo “invenção” e não “descoberta” para não alimentar a ideia de tratar-se de um fato natural, que já estaria lá, e a neutra e imparcial tarefa do pesquisador/analista seria desvendar sua verdade implícita. Não se trata disso aqui, em que pese o desejo inicial de Freud de que a psicanálise fosse uma ciência natural (PALOMBINI, 1995). Tomamos o inconsciente como produção discursiva que instaura o laço social sempre cambiante e produto/produtor do sujeito do desejo, tendo o pesquisador/analista a implicada e complicada tarefa de questionar as certezas e problematizar verdades e saberes totalitários. Ou seja, nessa perspectiva, “o inconsciente não é uma realidade psíquica que cada um carrega, como se fosse uma propriedade da alma, oculta, ignorada, que se desvela, revela, descobre” (BUENO, 2002, p.30), porém se faz a partir da lógica do discurso, “uma lógica necessariamente paradoxal, já que é o sujeito mesmo que produz a verdade que acredita descobrir” (JERUSALINSK, 2007, p.136), pois é ele quem a inventa na relação com o outro.

Decorridos mais de um século da construção de sua clínica e dedicados estudos epistemológicos (JAPIASSU, 1998), o estatuto científico da psicanálise não se atém ao modelo das ciências naturais, nem das ciências humanas, divisão clássica das ciências factuais. Seu estatuto epistemológico se alinha à ciência, como coloca Lacan em “A ciência e a verdade” (LACAN, 1998), pois ao lado da religião ou da magia não pode estar, tendo em vista os dogmatismos e profissão de fé inerente a esses saberes. Assim, a invenção da psicanálise:

(...) teve duas grandes consequências no campo do saber. A primeira foi o reconhecimento de que o corpo real dos humanos é regido por uma ordem simbólica que desdobra sobre este corpo efeitos imaginários; uma ordem que prevalece sobre os automatismos neurovegetativos. Na medida em que se verifica que a condição humana desse corpo depende de que os enunciados que o simbolizam mantenham sua eficácia, a anatomia e a fisiologia perdem sua exclusividade no reino do patológico. Isto muda a leitura dos sofrimentos e estabelece os princípios de uma nova clínica. A segunda, é que, embora não constitua uma nova epistemologia (faltaria para isso ter a fé que, no método, a ciência contemporânea tem), certamente produz uma nova episteme, ou seja, um novo ponto de partida para a abertura de caminhos do saber (JERUSALINSK; MEZAN, 2007 p. 136).

Esse preâmbulo é ilustrativo das questões da transgressão em Psicanálise e das nuances que esse campo de saber assume na era pós-Freud. Pode-se considerar que o campo psicanalítico contemporâneo se estabelece em torno de três grandes “escolas”: inglesa, francesa e americana. Cada uma delas tomou a obra freudiana a partir de uma linha de raciocínio, construindo uma exegese particular, da qual resultam posições teóricas muito diferentes.

Ao estudarmos a história da difusão da Psicanálise, inclusive as infelizes posições da Psicanálise na Alemanha nazista ou na presença de torturadores em entidades de formação, como foi o caso no Brasil (VALE, 2003), vemos que há uma tendência de buscar manter a “doutrina” viva a qualquer custo. De maneira geral, há uma presença de um discurso voltado para a manutenção do saber psicanalítico como legítimo ou puro indelevelmente. Essa posição, além de muitas vezes ferir os estatutos das prerrogativas dos Direitos Humanos, põe a nu que a Psicanálise não é um saber doutrinal advindo da esfera celeste, mas justamente o contrário, vindo dos e indo para os seres humanos, advindo o tempo todo dos confrontos de idéias e discussões ético-políticas entre eles.

Dizer isso não se refere às críticas que se faz da posição do analista como sujeito político na prática clínica. Na lógica psicanalítica, o analista somente existe enquanto sujeito na suposição de um saber que faz semblante, que empresta seu corpo, sua imagem e seu inconsciente para que complexas operações entrem em movimento e “abram o jogo de xadrez”. Certamente não é possível que essa operação de espelho seja absoluta e justamente por isso temos a supervisão, a análise pessoal e a compreensão da “transferência recíproca” como instrumento de compreensão dos afetos que se acionam no analista e o fazem sentir ou “atuar” esses afetos. Logo, não se trata aqui de colocar que o analista é isento, mas lembrar que o analista não se coloca como sujeito em virtude de a prática da clínica psicanalítica não ser um laço social qualquer, mas justamente um laço social inventado, nunca antes visto na história humana.

Note-se que também essa posição é relativa ao marco epistemológico ao qual nos alinhamos, tendo em vista que, na contemporaneidade, alguns segmentos da Psicanálise advogam a ideia de que o analista deve ser reconhecido como pessoa. Não parece possível concordar com essa premissa, haja vista que o papel do analista é o do espelho, tanto na situação da análise quanto da sociedade que se propõe pôr em análise: refletir a própria imagem do recalcado e observar o que resultará disso, podendo resultar em nada, inclusive. É relevante destacar que existem situações em que a psicanálise se cala ou casos nos quais ela simplesmente não ocorre, e não há nada de errado com a teoria. Se a Psicanálise está para a ciência, a ciência está para as verdades provisórias, para as dúvidas e para a falibilidade. Infalível e não criticável são dois termos que excluem do campo de conhecimento científico qualquer assertiva de saber.

Diante dessas considerações, já podemos então presumir que a Psicanálise não é uma, que não é tão simples nomear-se psicanalista e mais complexa ainda se torna a questão quando pensamos na psicanálise a “serviço” de outros campos de conhecimento, a saber: a justiça e a psiquiatria (ou neurociências).

Do ponto de vista da sua difusão no Brasil, desde seu início a Psicanálise esteve intimamente relacionada ao saber médico. Assim como a Psicologia chegou ao país antes do psicólogo (a profissão de psicólogo só passará a existir em 1962, a partir da lei N.° 4.119, de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão), as ideias psicanalíticas chegaram antes do psicanalista. Na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo, alguns médicos traduzem algumas ideias freudianas e as colocam na nascente prática acadêmica do ensino da psiquiatria (VALE, 2003). Em que pese uma inicial rejeição das ideias freudianas, rejeição que, aliás, parece nascer e acompanhar a Psicanálise em todo seu percurso e existência, logo a Psiquiatria toma a psicanálise como um campo de saber que pode legitimar sua prática, até o momento considerada uma construção marginal na medicina, posto que não apresentava um substrato anatômico para suas assertivas. Desde Morel e outros grandes expoentes da psiquiatria, sobretudo na França, encontramos o debate entre os organicistas e os psiquiatras que defendem o chamado “tratamento moral” (BIRMAN, 1978).

De qualquer maneira, no caso brasileiro e de outros países, a psiquiatria vê rapidamente na Psicanálise uma possibilidade de legitimação de sua razão de ser, isso até o advento das correntes neurocientíficas radicais. Nesses segmentos, é preciso livrar-se da Psicanálise, considerada agora um punhado de ideias românticas ilegítimas e descartáveis.

 

A psicanálise: muito além da "normalidade"

Na mesma velocidade, começa a difusão das ideias psicanalíticas entre os meios intelectuais e a população em geral. A perspectiva psicanalítica, para ser absorvida pela comunidade local, necessitaria de alguns ajustes, tais como condicionar sua formação à colonização pelo formato de um freudismo norte-americano: o pragmatismo e a ênfase no eu e nas fases do desenvolvimento da libido. Além desse destaque da perspectiva “evolucionista” do pensamento freudiano, a Psicanálise nos Estados Unidos também precisava de ajustes ao modelo hipotético dedutivo, típico das ciências naturais e muito forte na cultura americana. Assim, em geral testemunhamos nas construções teóricas deste continente um certo descrédito à pulsão de morte, a tradução dos termos da segunda tópica para o latim, a recusa da primeira tópica, considerada superada, e a ênfase no ego. Como já foi amplamente discutido nos meios psicanalíticos brasileiros, essa tradução dos termos latinos para eu, supra-eu e isso traz diferenças substanciais no entendimento conceitual da Psicanálise, tanto quanto o controverso “instinto”, tradução inadequada para “Trieb” (pulsão).

Tal como afirma Roudinesco:

De maneira geral, o freudismo norte-americano, em todas as suas tendências, privilegia o eu (ego), o self ou o indivíduo, em detrimento do isso, do inconsciente e do sujeito. Por conseguinte, opõe à pretensa decadência da velha Europa uma ética pragmática do homem, fundamentada na noção de profilaxia social ou de higiene mental. Daí a generalização de uma psicanálise medicalizada e assemelhada à psiquiatria, em oposição à velha psicanálise vienense leiga, atormentada pela morte, pelo autoaniquilamento e pelo niilismo terapêutico (ROUDINESCO, 1998, p. 170).

Por conseguinte, o Freud difundido no Brasil é eminentemente evolucionista e adaptativo. Mas como conciliar a subversão freudiana com a normatividade psiquiátrica da época? Como subsumir a virulência da ideia de inconsciente à normatividade comportamental?

Se a Psicanálise prescinde de um conceito de normalidade, sendo esta, aliás, uma de suas maiores qualidades para o acervo das ciências que tratam do homem, como alinhá-la a um campo de conhecimento eminentemente normativo? Um campo com um conceito, para não sermos redundantes, de “normalidade” muito bem constituído? Aqui, leia-se, normalidade estatística. Normal é o comportamento estatisticamente prevalente em um grupo social, sendo o que não se “adapta” considerado “desvio” (DALGALLARRONDO, 2008). Em que pese a sugestão em Três ensaios para uma teoria da sexualidade de que a genitalidade é a finalidade última do desenvolvimento da libido, não encontramos no conjunto da obra freudiana uma normatividade, um conceito sobre “o normal”. Na própria construção dos três ensaios está colocada a não naturalidade do objeto de satisfação da pulsão, bem como a não naturalidade da própria pulsão. Da mesma forma, essa posição teórica ficará ainda mais clara em Pulsões e destinos da pulsão:

O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele é o elemento mais variável da pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentada em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação. Em rigor, não é preciso ser um outro objeto externo, pode muito bem ser uma parte de nosso próprio corpo. Ao longo dos diversos destinos que a pulsão conhecerá, o objeto poderá ser substituído por intermináveis outros objetos, e a esse movimento de deslocamento da pulsão caberão os mais significativos papéis. (FREUD, 1915/1976, p 137).

Logo, como ser a genitalidade o fim último da pulsão e sua organização final pode ser bastante particular e não prescritiva. Em Três ensaios... há uma tendência a sugerir que a genitalidade é a “última fase”, mas o artigo supracitado desconstrói a ideia de primado genital exclusivo, sendo possível, pois, compreender a pulsão com uma abordagem não desenvolvimentista. Alguns segmentos, como o lacanismo, preferem a trajetória do nascimento do desejo e da falta ao invés da libido e suas fases. Mas, de qualquer maneira, a definição clara a respeito dessa questão ainda não é consenso entre os psicanalistas. Nos casos a que Freud se dedicou, por exemplo, a falar sobre a homossexualidade, não a coloca como um desvio ou problema, mas uma “parada” no desenvolvimento da libido, rejeitando uma possível distância objetiva entre condutas sexuais “normais” ou “anormais”.

Segundo Ferraz (2002), Freud declara: “não conhecemos os limites da vida sexual normal e que, portanto, não deveríamos nos referir com indignação às perversões sexuais”. A ao defender o direito dos homossexuais, afirma: “eles são vítimas da moral sexual corrente, que impõe a todos os mesmos padrões, sem considerar as suas diferentes constituições”, que a abordagem freudiana concebe à formação das orientações sexuais e da subjetividade como contingentes e não naturais.

Foucault (1984) traz uma visão crítica à histórica vinculação do tema sexualidade com as noções de desvio e anormalidade mental, falando na hipótese repressiva ao afirmar que a discussão sobre sexo desde o século XVIII na verdade serviu para legitimar saberes ainda insipientes e pouco reconhecidos como os da sexologia e da psiquiatria, principalmente comparando-os a outras áreas médicas da época. “No terreno da medicina, foi a psiquiatria que veio a abarcar a ciência do sexual, passando as “aberrações sexuais” a serem vistas como variações da alienação mental” (FERRAZ, 2002, p.12). Com isso, as correntes americanas e inglesas, no intuito de uma legitimação de saberes para um pleno exercício de poderes, incluem as diferenças, aqui primeiramente as sexuais, para depois se estender a inúmeros outros tipos comportamentais, na categoria de desvio, perversão (ROUDINESCO, 2003), alienação e/ou doença mental, reforçando intervenções cada vez mais repressivas e punitivas tomadas agora na sua execução pela esfera estatal e jurídica.

 

Transgressão, crime e a violação da norma

A questão que se trata de refletir aqui é o tema da transgressão em Psicanálise e como esta pode, sob determinados regimes discursivos, se tornar, ao invés de subversiva, um operador conceitual que destrói a possibilidade da transgressão, que não é necessariamente da ordem da violação da lei ou do exercício do mal. Ou seja, a Psicanálise é, em sua gênese, transgressora da norma e não a guardiã asséptica de uma moral vigente ou uma normatividade de qualquer natureza, seja jurídica e/ou científica.

Pensemos no caso de alguns crimes, quando frequentemente a Psicanálise é requisitada pelos meios de comunicação de massa a fornecer explicações sobre as motivações desses “desvios” considerados por estes mesmos formadores de opinião como “bárbaros”, “horríveis”, “perversos”, etc., bem como os sujeitos supostamente criminosos categorizados como “monstros”, “psicopatas”, “animais”, “delinquentes”, e mais uma série de adjetivos pejorativos e degradantes usados com o intuito de trazer mais dramaticidade e espetacularização ao cenário teatral apresentado. Nesses casos, frequentemente observamos já um primeiro equívoco nas concepções teóricas, éticas e políticas do saber psicanalítico, proporcionado por quem se define como seu representante: o de julgar-se capaz de falar (analisar) sobre um discurso que não se escutou, no caso do produzido pelo sujeito “acusado”. Como podemos, na condição de (re)produtores de um conhecimento que se busca legítimo acerca do humano, falar sobre um caso a partir de notas de jornais, ou fragmentos de entrevistas televisivas? Vemos, com algum choque, sem dúvida, considerações minuciosas desses representantes de um saber “inquestionável” (“os especialistas”, como são tratados por esses meios) sobre as estruturas clínicas, levantamentos hipotéticos sobre a infância dos sujeitos em causa, bem como, não raro, inferências deterministas sobre o que levou o sujeito àquele comportamento dito desviante. Nessas organizações discursivas, identificamos um forte predomínio do tratar da questão criminal simplificadamente, reduzindo sua dimensão complexa e social, além de sustentar uma concepção de sujeito totalmente individualista, determinista e egocentrado, tal como o são os fundamentos das ciências naturais modernas.

As relações da Psicanálise com a criminologia e a justiça, desde seu início estão colocadas no texto A psicanálise e a determinação dos fatos em processos jurídicos(1906/1976) em que Freud é claro: os alcances da Psicanálise não estão voltados para a constituição de culpa (no sentido jurídico do crime) ou de castigo, este último referido à modalidade de punição, extensão e capacidade de remissão do ato criminal ou criminoso. Logo, fica inerente à leitura dos fatos que se apresentam tão corriqueiramente na mídia, onde psicanalistas, por vezes expoentes de entidades de formação, se apressam em fornecer explicações sobre crimes e, com a mesma rapidez, articular os conceitos de transgressão e crime. Ora, a transgressão, assim como a agressividade, não são atos per se perversos ou criminosos, já que “o perverso não porta uma aberração ausente nos outros seres humanos, mas que ele simplesmente atua aquilo que se encontra, de forma latente e potencial, em todas as pessoas” (FERRAZ, 2002, p.21).

Além disso, o próprio conceito de crime é relativo no espaço e no tempo, por ser uma construção cultural e não natural, e a civilização, para a Psicanálise, é constituída sobre o parricídio e o incesto, logo, a criança freudiana, no texto Totem e Tabu (1913/1976), é necessariamente em termos desejantes parricida e incestuosa. Pode-se arguir que essas tendências são recalcadas, não sendo, portanto, muitas vezes levadas ao ato. Porém do ponto de vista da ontologia e da perspectiva da realidade psíquica, construídas por Freud, isso é irrelevante. Outra face da moeda é pensar que, uma vez que a Psicanálise não se propõe a julgar, o que é de fato atribuição do juiz, ela deveria advogar uma perspectiva “abolicionista” da pena ou da responsabilização penal. Ou seja, buscar que o sujeito se responsabilize pelo que ele é, um ser faltante, incompleto, paradoxal, do qual nenhum sistema penal que funcione hierarquicamente de forma rígida a partir de códigos objetiváveis ou tempos cronológicos poderá dar conta, por mais que isso seja constante e ilusoriamente prometido com a corrente e ilusória expressão “Estado Democrático de Direito”.

Nas contribuições de alguns pesquisadores de orientação lacaniana, encontramos uma posição bastante interessante sobre esse tema, na qual é colocado que o crime é uma busca de uma obra. Obra leia-se como fundação de uma inscrição social, anseio de todo sujeito (MELLO, 1990). Em princípio, todo sujeito no âmbito da neurose, do ponto de vista psicanalítico e, neste caso, a escola teórica é irrelevante, ambiciona ser a partir de sua inscrição subjetiva com o Outro. O ser falante visa a um lugar na pólis, como fica claro na adolescência com a ruptura do laço social com os pais, tribos ou equivalentes, buscando-se uma nova modalidade de ser. Logo, não é papel da Psicanálise se colocar como aquele que absolve ou condena o criminoso. Mesmo nos casos de psicose, quando muitas vezes ocorre um crime violento, é necessária a construção de uma responsabilização, mas neste caso a responsabilização criminal pode ser o advir do sujeito do desejo.

Se não como o super-herói, como o pior dos criminosos. Essa é a prerrogativa de ser, de se destacar da função materna, do reino da simbiose, que ao mesmo tempo nutre e asfixia, para produzir-se na relação com o Outro constantemente. Há uma imprevisibilidade naquilo que o sujeito humano é capaz de se fazer, seja através de atos, pensamentos, emoções, sentimentos, desejos, fantasias, etc. Isso traz uma inevitável variabilidade entre os atos tipicamente criminais e os modos de ser humano (HOENISCH, 2002). É relevante lembrar que os modos de ser mais tipicamente neuróticos estão tão à mercê do crime ou da violação da lei quanto os tipicamente perversos ou psicóticos, já que não há dispositivo de relação de causa-efeito, muito menos de correlação estatística, entre o crime cometido e a personalidade do sujeito que supostamente o cometeu. Crimes violentos podem ser categorizados como psicóticos, mas o ato psicótico não implica necessariamente o funcionamento psicótico, nem vice-versa. Pensando-se assim, mais complexa ainda se torna a tarefa de construir qualquer diagnóstico, se assim fosse o caso. Dentre as torções teóricas que a Psicanálise, através de seus ditos representantes ou “especialistas”, necessitou para ser aceita no campo da criminologia, as discussões acerca das avaliações, diagnósticos e prognósticos sempre mostram ser as mais obscuras e problemáticas. Alguns profissionais, referindo utilizar-se da psicanálise, afirmam ser capazes de “medir” os impulsos agressivos e prever a reincidência do crime. Não nos parece claro como isso seria possível, tendo em vista que a própria psiquiatria não é uma ciência exata, de certeza estatística. Mesmo que o fosse, as ciências naturais nos falariam de forte tendência, mas nunca de certezas absolutas, até porque, ao tratarmos politicamente das ciências, estamos falando da necessária impossibilidade de existir no seu escopo um saber totalitário e completo, já que se tornaria ditatorial, bárbaro e destruidor da alteridade ao acreditar que ocupa este lugar perante os outros saberes e poderes.

Se esta reflexão cabe sobre a perspectiva transgressora da Psicanálise para analisarmos brevemente seu lugar junto ao crime, a mesma posição nos servirá para pensar a posição das psicanálises diante do avanço das neurociências.

 

Freud entre a bruxaria e as neurociências

Diante do debate cada vez mais contemporâneo entre a Psicanálise e as neurociências, que lugar ocupar? Defender a doutrina freudiana como campo independente e ser considerado ortodoxo ou obscurantista? Defender a união da Psicanálise com as neurociências, já que alguns experimentos destas serviriam para evidenciar – novamente o ideal cientificista hipotético-dedutivo – que a Psicanálise “funciona”? Ambas as posições apresentam seus riscos e novamente estamos diante do tema de como garantir, tanto quanto seja possível, a transmissão da Psicanálise e o seu relevante papel social. Que lugar terá a invenção freudiana num mundo bioquímico, tomado por terapias supostamente mais eficazes, que adicionadas aos psicofármacos seriam pretensamente capazes de abolir o mal-estar da civilização? O que pode a Psicanálise, como invenção humana e com finalidade, grosseiramente falando, de retificação subjetiva, de propor outra forma de gozo, de lidar com o sintoma e com a incompletude? E, por fim, como sustentar suas idéias densas diante de uma sociedade na qual o conhecimento cede lugar à informação instantânea e efêmera? Aqui caberia uma reflexão sobre a diferença entre formação e informação. A formação analítica é feita caso a caso. Trata-se de uma questão altamente afastada do modelo universitário contemporâneo: informar. A sociedade parece atravessar um período de ruptura do conhecimento, sendo este agora trocado pela informação. Não se trata de elementos similares.

Parece prudente pensar que não é possível responder a questões tão complexas de maneira rápida. Nosso tempo atual, a chamada “modernidade tardia” ou simplesmente “contemporânea’, apresenta uma nova revolução em andamento que colocam a “velha senhora”, como uma vez denominou Freud a Psicanálise, em xeque. Segundo Rouanet (2002), testemunhamos um re-encantamento do mundo, pois assistimos a paradoxos que geram alta perplexidade: de um lado, o afloramento de seitas fundamentalistas, encontros de bruxas, duendes e fadas, o conceito de “loucura” e doença mental tomados novamente como possessão espiritual, tal como na Idade Média; de outro, a mistificação exagerada de alguns segmentos das neurociências, advogando o fim da Psicanálise, de qualquer psicoterapia não diretiva, pois agora os fármacos e a genética explicarão todos os males. Em outras palavras, de um lado o obscurantismo, do outro uma suposta e um tanto ingênua revolução científica, que ambiciona responder a todas as fendas da condição humana pela via dos neurotransmissores e equilíbrio neuroquímico.

Tanto uma quanto outra posição nos parecem cegas à razão, tomada aqui no sentido posto pelo iluminismo: capacidade humana de refletir sobre si mesma de maneira secular (ROUANET, 1993). É verdade que a Psicanálise como campo de conhecimento não é tributária da razão. Sua prática clínica nos revela que o Eu não é senhor em sua própria casa e que não é possível a emancipação através das luzes da razão. A Psicanálise suspeita da razão. Mas nem por isso a pesquisa e a prática psicanalítica são irracionais, caso contrário não necessitaríamos dos critérios que sustentam a doutrina psicanalítica e que diferenciam as práticas equivocadas e abusivas do exercício sério da clínica. Porém, o que é o fio determinante da prática analítica, dada a diversidade de escolas e formas de pensamento no campo deste saber? A ética. A questão da ética em Psicanálise trata-se de uma temática árdua do ponto de vista intelectual. De acordo com Ocariz (2003), sustentada na discussão proposta por Lacan, não se trataria da ética ligada à moral da religião, nem de uma ética relacionada ao que uma sociedade define, a partir de sua maioria, como adequada. Aqui, trata-se de uma ética do sujeito, em que o que estabelece um limite entre as relações é o que se define como uma “ética do privado”, se assim se pode dizer, em que o limite do desejo do sujeito é o desejo do outro. Enfim, trata-se de uma leitura não moralista das condutas, mas da proposição de que existe um limite dado ao sujeito e esse limite é da ordem do respeito a uma modalidade de laço social que permita subordinar a pulsão de morte e manter a vida em sociedade com princípios de liberdade de convivência e diferenças. Sendo assim, trata-se de responsabilizar-se a ética pelo desejo e suas consequências, afastando-se, peremptoriamente, de uma posição narcisista primária. Trata-se da ética de um limite, que é a barra do gozo, que no fim das contas é o fundamento da civilização, sem, no entanto, ser tomada como uma moral imposta. Como foi afirmado, a questão concernente à ética e à Psicanálise é complexa, se afasta bastante da ética da filosofia e das discussões que tomam a ética e a moral como equivalentes. O que é interessante destacar é a necessária posição não moralista e universalista por parte de quem exerce o oficio de analista no âmbito penal (somente nele?), tendo em vista que essas posições não só se afastam da Psicanálise, mas também contribuem para a estigmatização do sujeito infrator e contribuem para a fantasia de que o crime, a violência e a criminalidade não são efeitos dos ordenamentos e discursos que regem cada conjunto social.

A busca por essa proposta de ética é uma das respostas possíveis tanto para tentar estabelecer o que é legítimo do que não é, como para constituir o aceitável, o humano e razoável no laço social. Nessa perspectiva, ainda não sabemos, como agentes da prática psicanalítica, onde esta deve estar diante destes sintomas contemporâneos. Mas sabemos onde ela não deve estar, sob o risco de perder sua ética que lhe é própria: nem do lado do misticismo, nem dos discursos totalitários. A Psicanálise, como ela mesma uma ética, também tem uma finalidade terapêutica (se assim não for, não há razão para sua existência) e, consequentemente, política. Deverá ela ceder às novas políticas hegemônicas de mercado? Render-se à convocatória de mais eficiência, de mais abrangência, de pressa de “cura”? Ou se colocará como problematizadora da própria cultura que a criou e a convoca, incessantemente, a escutar o que há de selvagem desta própria cultura? Essas respostas devem ser construídas pela própria Psicanálise e seus representantes, dentro de um diálogo interdisciplinar crítico e não dogmático.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Avenida Adélia Franco, 3662/504 – Cond. Moradas do Adriático – Edf. Udine
49040–020 – Aracaju/SE
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E-mail: cs-cirino@uol.com.br

Recebido: 17/08/2009
Aprovado: 23/09/2009

 

 

1 Psicólogo, especialista em saúde pública/Fiocruz, Mestre em Psicologia/PUC/RS, Professor da Universidade Tiradentes/SE.
2 Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), doutorando em Psicologia (PUCRS) e Professor do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Santiago – RS.
3 Psicólogo, mestre em Psicologia Social (UFPB), Professor da Universidade Tiradentes.

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