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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista

 

Psychoanalytical formation challengers: reflexions about the analyst’s psychoanalysis

 

 

Marcelo Wanderley Bouwman1

Círculo Psicanalítico de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda a questão da formação psicanalítica a partir das ideias de Freud e Ferenczi sobre a transferência e o trabalho do analista na situação analítica. Busca-se apreender a especificidade da experiência psicanalítica e refletir sobre os destinos da transferência na análise do analista.

Palavras-chave: Formação psicanalítica, Análise do analista, Técnica, Transferência, Desamparo, Ética.


ABSTRACT

The text approachs the question of psychoanalytical formation coming from Freud’s and Ferenczi’s ideas about transference and the analyst work in analytical situation. The author tries to understand analytical experience’s specificity and to reflect about the aims of transference in the analyst’s psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalytical formation, Analyst’s psychoanalysis, Technique, Transference, Helplessness, Ethics.


 

 

Esse processo, uma vez iniciado, segue seu próprio caminho e não admite que lhe prescrevam nem sua direção nem a sequência dos pontos que percorrerá.
Freud

 

A formação do analista pode ser entendida como um processo permanente, envolvendo a relação dialética entre experiência e elaboração, nas esferas da autoanálise, da análise pessoal, da clínica, das supervisões, dos intercontroles, dos estudos teóricos e das produções escritas do analista. No decorrer dessa trajetória, espera-se que ocorram transformações na subjetividade do analista no sentido da construção de um estilo de existência (BIRMAN,1996) e, mais especificamente, da constituição de um novo lugar para ele na situação analítica.

O analista implicado em sua formação procura desenvolver uma visão pessoal da clínica e da apropriação teórica e técnica em questão, busca forjar para si uma linguagem para comunicar-se com seus pacientes, para transmitir suas experiências e para articular os conceitos fundamentais da psicanálise. A construção de um estilo é um trabalho contínuo realizado pela mediação de sublimações que o sujeito vai podendo regular de maneira singularizada pelos registros ético e estético. A análise pessoal é, sem dúvida, a condição privilegiada e indispensável para o analista sofrer essas transformações.

Tornar-se analista é ocupar um novo lugar na situação analítica. Trata-se, porém, de um lugar fugidio, fugaz e transitório. “Um lugar virtual, constantemente evanescente e renascente, pleno de mobilidade através da psique”. “Lugar neutro”, “isento de paixões”, “livre de fascinação”, “capaz de hospedar toda e qualquer transferência sem que nada se fixe” e “capaz de produzir linguagem” (MAGALHÃES, 1995, p.121).

Em outro sentido, “tornar-se analista é, como Freud, descobrir a psicanálise por conta própria” (ANZIEU, 2006, p.293), refazendo seu percurso, identificando-se com ele e assimilando sua teoria e sua técnica. Ao mesmo tempo, aceitando-o como origem, mas recusando-o como mestre, trata-se de procurar o que falta descobrir no campo dos processos inconscientes.

Freud, ao longo de sua autoanálise, através do trabalho do sonho e do luto, vai criar o modelo para o tratamento dos sintomas neuróticos. A autoanálise será o caminho recomendado para o analista obter uma “comunicação mais livre com o próprio inconsciente”. Como diz Freud, em 1910:

Nenhum psicanalista pode ir mais longe do que aquilo que lhe permitem os seus próprios complexos e as suas resistências interiores. Por isso exigimos que ele comece a sua atividade por uma auto-análise e que continue a aprofundá-la enquanto aprende pela prática com os seus pacientes (LAPLANCHE, 1992, p.46)

Depois, em 1917, Freud vai redirecionar a questão:

Começamos por aprender a psicanálise em nós mesmos, pelo estudo da nossa própria personalidade [...] Os progressos neste caminho esbarram em limites definidos. Avançamos muito mais submetendo-nos à análise com um psicanalista competente (LAPLANCHE, 1992, p.46)

Foi Ferenczi quem mais contribuiu para salientar a função da análise na formação do analista, chegando a designá-la como a segunda regra fundamental da psicanálise. Enquanto a regra fundamental (o uso da associação livre pelo paciente e da atenção flutuante pelo analista) é uma recomendação técnica que visa à instauração da situação analítica, a segunda regra é, em especial, uma exigência ética, ressaltando a responsabilidade do analista na condução do processo de seus pacientes.

Ferenczi, ao longo de sua trajetória clínica, esboçará uma “metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante a análise”, revelando a complexidade do trabalho do analista. Em A técnica psicanalítica (1919), ele descreveu as diferentes tarefas do analista durante cada sessão - atenção flutuante, controle da contratransferência e atividade intelectual - e comentou:

Essa oscilação permanente entre o livre jogo da imaginação e o exame crítico exige do psicanalista o que não é exigido em nenhum outro domínio da terapêutica: uma liberdade e uma mobilidade dos investimentos psíquicos, isentos de toda inibição (p.367).

Em O problema do fim da análise (1927), Ferenczi insistiu em que, para exercer a sua função, é indispensável para o analista uma análise plenamente concluída, destacando o difícil lugar do analista como objeto da transferência. Ele falou “de uma tentativa inconsciente do paciente de testar a solidez da paciência do analista a seu respeito, de maneira metódica e variada ao extremo, e isso não uma, mas inúmeras vezes” (p.20), submetendo o modo de reação do analista a uma observação extremamente perspicaz e exigindo dele “uma perfomance quase sobre-humana” (p.21).

Em Elasticidade da técnica psicanalítica (1928), Ferenczi expressou a sua preocupação com a saúde do analista diante de seu ofício:

No decorrer de sua longa jornada de trabalho, [o analista] jamais pode abandonar-se ao prazer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao seu egoísmo, na realidade; e somente na fantasia, por breves momentos. Não duvido de que tal sobrecarga - que, por outra parte, quase nunca se encontra na vida - exigirá cedo ou tarde a elaboração de uma higiene particular do analista (p.35).

Ele designou como tato do analista a faculdade de “sentir com” o paciente, orientando o analista nas decisões singulares da clínica: quando e como deve fazer uma comunicação, como lidar com uma reação inesperada do paciente, como discernir se o seu silêncio favorece o livre curso das associações ou se está sendo “uma tortura inútil” para o seu parceiro de análise.

A elasticidade da técnica preconizada neste texto diz respeito à atitude do analista de procurar colocar-se no diapasão afetivo do paciente, sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus humores, mas também ater-se com firmeza, até o fim, à posição analítica ditada pela experiência.

Em uma carta a Ferenczi, de 1928, Freud utilizou os termos “tato” e “elasticidade”, demonstrando tratar-se não somente de elementos da clínica ferencziana:

Recomendações sobre a técnica, que escrevi há muito tempo, era essencialmente de natureza negativa [...] Tudo aquilo de positivo que alguém deveria fazer deixei ao tato [...] o resultado foi que os analistas obedientes não perceberam a elasticidade das regras que propus e se submeteram a elas como se fossem tabus (FIGUEIREDO, 2000, p.12-15).

O resultado ideal de uma análise terminada seria precisamente essa elasticidade que a técnica exige do analista. Portanto, a análise do analista, além de responder a uma exigência ética, é condição necessária para uma boa técnica analítica. Promove autoconhecimento e autocontrole, como também desperta e desenvolve qualidades analíticas no sujeito, tais como o tato e a elasticidade.

O aspecto do autoconhecimento é bem evidenciado na metáfora da escultura utilizada por Freud (1905), inspirando-se em afirmações de Leonardo da Vinci sobre as artes. Freud coloca que as técnicas sugestivas atuam, como na pintura, per via di porre, depositando tintas na tela psíquica do paciente, enquanto a psicanálise não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes esculpir, per via di levare, o ser do sujeito, eliminando os seus sintomas e promovendo o acesso às suas verdades.

Já a formulação lacaniana de criar um analista a partir do analisante privilegia o aspecto das qualidades analíticas desenvolvidas durante a travessia de uma análise. Para que isso aconteça, o sujeito se identificaria, ao longo da análise, não com o analista, mas com o seu trabalho de investigação.

Ferenczi, em 1928, antes de Lacan, comentando a respeito da metapsicologia da técnica, acrescentou:

Uma verdadeira análise de caráter deve pôr de lado, pelo menos passageiramente, toda espécie de superego, inclusive o do analista [...] Somente essa espécie de desconstrução do superego pode levar a uma cura radical; os resultados que consistirem apenas na substituição de um superego por outro devem ainda ser designados como transferenciais; não correspondem certamente a um objetivo final de tratamento: desembaraçar-se igualmente da transferência (p.34).

Kehl (2002) admite que, “num determinado ponto do percurso, possa ser inevitável que o analista tente substituir de um modo mais benigno a severidade do supereu do paciente”, mas ressalta que “esse lugar, de uma autoridade superegoica mais complacente, não é um lugar onde o analista possa se instalar” (p.147).

O que está em questão no ato de criar um analista, como destino de uma análise, é a relação que o sujeito passa a estabelecer com o seu desejo, uma relação de saber e de insuficiência:

[O analisante] deve deixar de indagar a um Outro sobre quem ele é, ou sobre o que ele deve fazer da vida [...] e tornar-se autor de seu próprio destino [...] um autor bizarro, cuja obra é feita em parceria com um desconhecido – a dimensão da determinação inconsciente, que nenhuma análise tem o poder de desfazer. [O sujeito torna-se mais inventivo] à medida que aceita a condição de seu desamparo fundamental: não existe saber prévio, nem plano pré-traçado do qual ele possa se valer para orientar sua vida. Nem mesmo o desejo de seus pais, a que o sujeito não tem acesso. Nem mesmo os ideais que os pais lhe legaram, pela via do supereu (KEHL, 2002, p.153).

Green (1988) afirma que “o objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” e, baseando-se em Winnicott, diz que o sujeito deve

ser capaz de usar o analista e suas interpretações como objetos que servirão para estabelecer a capacidade de estar só (sem o analista); primeiro, na presença do analista e, depois, sem ele, como se ele estivesse potencialmente presente, quando não está (p.302).

Diante dessa dialética entre ausência e presença, no confronto com o desamparo fundamental, o sujeito conquista uma solidão que nos faz pensar na Ausência de Carlos Drummond de Andrade (2007, p.31):

Por muito tempo achei que a ausência é
falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada
nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações
alegres,
porque a ausência, essa ausência
assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Na vigésima oitava conferência introdutória sobre psicanálise, intitulada Terapia analítica, considerada uma das mais completas exposições de Freud (1917) sobre a teoria dos efeitos terapêuticos da psicanálise, outra vez, ele se utiliza de uma analogia para diferenciar o procedimento analítico de outros métodos terapêuticos. O tratamento hipnótico age como cosmético, procurando encobrir e dissimular algo existente na vida mental, enquanto a psicanálise busca expor e eliminar algo como na cirurgia. Um aspecto fundamental é salientado: enquanto, em qualquer outro tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente preservada e mantida intocada, na análise, a própria transferência é sujeita a tratamento e é dissecada em todas as formas sob as quais aparece. No final, abordando os preconceitos contra a terapia analítica, Freud (1917) não esconde a sua posição crítica e cautelosa:

Os senhores ouviram uma exposição daquilo que realizamos com nossos pacientes, e podem formar seu próprio juízo quanto a saber se nossos esforços são destinados a produzir qualquer prejuízo duradouro. O mau uso da análise é possível, em diversos sentidos; em especial, a transferência é um instrumento perigoso nas mãos de um médico inescrupuloso. Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso; se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar (p.539).

Como escreveu Freud ao pastor Pfister (BOKANOWSKI, 2002, p.44), a transferência é uma cruz para o trabalho analítico, mas ao mesmo tempo é uma bênção, na medida em que permite a descoberta, bem como a compreensão, das fantasias inconscientes do indivíduo. Ela é uma cruz a suportar, enquanto somente seu desdobramento e sua intensidade, quer a tenhamos por uma resistência ou por uma alavanca, fazem que haja ou não análise efetiva. Pela transferência sobre o analista, os movimentos psíquicos do paciente, os mais diversos, os mais opostos, encontram uma saída, atualizam-se. Como diz Pontalis (1998): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”(p.274).

A questão do amor de transferência considerada por Freud (1915) traz a compreensão de que é absolutamente proibido ao analista passar ao ato sexual. É certo que, na fantasia ou no pensamento, o paciente nutre a esperança de uma relação mais próxima com o analista, como a única pessoa com quem ele pode se entender. No entanto, o analista deve sempre garantir a análise, não pode dar respostas às necessidades do paciente.

Zygouris (1999) enfatiza que Freud inventou uma relação totalmente inédita, fundada sobre um interdito de relação sexual entre dois estrangeiros. O interdito que marca as relações não só sexuais como as de uma maior proximidade entre analista e paciente é muito mais radical que a reserva exigida em outros campos, como a Medicina ou a Educação.

A transferência de interdito evoca, quando não suscita, a situação edípica: a criança no adulto irrompe e entra em cena, frequentemente sem sabê-lo. Cabe ao analista a tarefa de percebê-lo e não se enganar de interlocutor em suas intervenções. Ora, quando um analista, suposto adulto para seu paciente, responde à demanda de amor de uma “criança”, mesmo em se tratando de uma pessoa adulta, através de uma passagem ao ato, faz o que Ferenczi (1933) chamava de “confusão de línguas”. A verdade é que não podemos subestimar a potência das pulsões: o desejo é contagioso, e o analista nem sempre é o adulto que imaginamos.

O amor que nasce na situação analítica é, desde o início, paradoxal: “Você pode me amar, pode contar comigo, mas te prometo que iremos nos separar um dia”. O analista promete presença e permanência, mas na sua promessa se insinua, de modo latente, a certeza de uma separação. A promessa de separação tem a ver não apenas com as capacidades terapêuticas do analista, mas é o seu próprio eixo ético.

Outro aspecto importante colocado por Freud é a questão do múltiplo no interior do amor. No amor há pulsões parciais, há sempre o amor mais a morte, o amor mais o ódio, há sempre o amor mais o negativo. Na posição analítica, a síntese não é possível. Análise é estar sempre em contato com o negativo e o analista é aquele que ocupa a posição da insistência do negativo (FÉDIDA,1988).

O trabalho do analista sobre a transferência não é fácil, as dificuldades são diversas, os obstáculos no caminho da cura são imprevisíveis. A transferência pode ser vista como uma encruzilhada trágica (BIRMAN,2003, p.103), em que o analista assume a função de coautor nos possíveis destinos do sujeito, e o ato analítico reveste-se de uma dimensão vital de responsabilidade. Essa tragicidade assume maiores proporções quando se trata da análise do analista. É justamente aí que se dá a experiência de transmissão do saber psicanalítico. O saber ensinado, os estudos teóricos, a experiência das supervisões, passam necessariamente pela filtragem, libidinal e mortífera, da transferência.

Nesse contexto, os problemas não são apenas de ordem teórica e ética, mas também de ordem política. Para Laplanche (1998), a análise didática é uma das formas mais perniciosas de “psicanálise por encomenda”, em que a instituição formula uma solicitação: a de que se fabrique, por meio da análise, uma personalidade de acordo com seus desejos. Ele oferece uma interessante analogia: enquanto, na análise de crianças, a mãe algumas vezes fica na sala de espera e uma análise de verdade só se instaura quando -simbolicamente e mesmo realmente- lhe fechamos a porta, na situação didática, a mãe-instituição fica presente, simbolicamente, com todo o seu peso, na sala de espera e não há negação capaz de fazer com que não seja assim. Laplanche defende que a análise do analista não pode ser senão um processo extraterritorial, fora de todo controle institucional e livre de todo fim profissional e ideológico. Na verdade, toda análise é “formação” se for um movimento pelo qual a pessoa, através das peripécias mais estranhas da viagem ao “estrangeiro”, encontra-se com o que lhe é mais “próprio”.

Com relação à transferência na análise do analista, Birman (2003) descreve duas posições subjetivas opostas delineando diferentes destinos para o sujeito em sua relação com o analista, com seu sistema de filiação e com a psicanálise. Pela servidão transferencial, o sujeito se submete aos percalços e desejos do analista, identificando-se com a sua figura e com seu sistema de filiação. Inscreve-se numa posição masoquista, perdendo, com isso, a liberdade de dizer e de pensar. O que ocorre aqui é a confluência da demanda de proteção do analisante com a demanda de imortalização do analista. Em contrapartida, na fidelidade transferencial, o sujeito pode desferir fortes golpes na figura do analista, afrontando a angústia e o desamparo que se coloca na cena da análise. Com isso, existe a possibilidade de invenção e de ruptura com as cadeias mortíferas da repetição.

Aulagnier (1985) considera o papel do analista como possível indutor de um estado passional no analisante, favorecendo uma deformação da transferência. A paixão de transferência resultante é contraditória ao projeto analítico e é caracterizada por uma atenuação máxima de todo sentimento de insatisfação e de conflito na situação analítica. O estado de sofrimento só aparece em raros e breves momentos. O estabelecimento de uma relação aconflitual leva a uma exclusão da cena da análise de toda mobilização da agressividade do analisante e de toda fantasmatização e interpretação que possam servir a uma desidealização do analista e da análise. Essa situação é preservada graças a um constante trabalho de negação e de exclusão de qualquer pensamento que poderia explicitar a patologia da relação e da paixão.

É evidente que a estrutura psíquica e o desejo inconsciente do analista não são onipotentes com relação ao destino do seu parceiro de análise. Não basta que as suas aspirações visem suscitar no sujeito um estado passional para que este surja. Contudo, existindo tal desejo no analista – desejo de alienar –, as chances de sua realização são muito grandes, porque, nesse caso, o analista encontra, paradoxalmente, seu melhor aliado no amor de transferência.

Se o analista, ao concluir sua própria análise, preserva um investimento passional em seu próprio analista, esta vivência transferencial tem grandes chances de se repetir naqueles que analisará. A presença de resíduos transferenciais é uma consequência natural da relação analítica. O problema surge quando há preservação em bloco da paixão transferencial, manifestando-se pela idealização de um pensamento, de uma teoria ou de um poder.

O campo da formação do analista é marcado por inegável mal-estar. As figuras da submissão, do domínio, da alienação e da paixão pertencem a essa estranha paisagem. A técnica criativa promove espaço para a vida se instalar e crescer. A ética do analista é a de Freud (1919) quando ele diz:

Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (p.424).

A psicanálise não promete a cura, não propõe modelos de conduta, nem veicula certezas, apenas possibilita ao sujeito conviver com seu intransponível desamparo, favorecendo a invenção de um estilo de vida condizente com a singularidade do seu desejo. De outra parte, os impasses entre o desejo e a lei, entre as pulsões e as exigências da cultura, são estruturais e fonte permanente de mal-estar para os indivíduos. Diante dessa situação, Freud se recusou a apontar saídas: cada um terá que encontrar seu próprio caminho para enfrentar a dureza da vida. Como um autêntico pensador, Freud

(...) nos força a pensar e, quem sabe, a não perder a esperança no deus Logos, ou no divino Eros, ou qualquer outro nome com o qual se queira caracterizar o esforço sobre-humano de construir e reconstruir um mundo ético (DI MATTEO, 2006, p.65).

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Fone: + 55 81 9975-8028
E-mail:marcelo.bouwman@gmail.com

Recebido: 20/06/2009
Aprovado: 25/08/2009

 

 

1 Psicanalista. Formado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco, com título de especialista em Clínica Médica. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Médico da Unidade de Saúde Mental do Hospital Barão de Lucena / SUS-Pe.

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