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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

A interpretação nos estudos psicanalíticos

 

The interpretation in psychoanalytic studies

 

 

Maria Beatriz Jacques Ramos1

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O tratamento psicanalítico é uma história de encontros. O analisando fala, oferece um tema; o analista começa a escutar. A assimetria nem sempre é duradoura, pois a transferência traz histórias e significações imaginárias. O processo analítico é complexo, é um emaranhado de ações, interações e retroações. O analista pontua o discurso com interpretações, liga espaço e tempo, procura trabalhar com a pulsão de morte. Para ilustrar essas reflexões, apresentamos uma história entre tantas outras, que inquietam e possibilitam mudanças de vértice, de olhar, sobre a constituição e estruturação psíquica como no caso do Guardião de Memórias.

Palavras-chave: Escuta analítica, Interpretação, Narcisismo, Perversão.


ABSTRACT

The psychoanalytic treatment is a history of meetings. Analysing speech, it offers a subject; the analyst begins to listen. The asymmetry not always is lasting, so the transfer brings histories and imaginary significations. The analytical process is complex, it is a tangle of actions, interactions and reciprocal actions. The analyst punctuates the speech with interpretations, tie space and time, it tries to cancel the work of the impulse death. To illustrate these reflections I present a history between so many people others, which worry and make possible changes of apex, of looking, on the constitution and psychological structuring I eat in case of the Guardian of Memories.

Keywords: Analytical listening, Interpretation, Narcissism, Perversion.


 

 

Ao considerar a configuração do campo analítico, alguns fatores se destacam: o discurso explícito do paciente; a configuração da percepção de si mesmo e das defesas; a fantasia inconsciente, que inclui a transferência e a contratransferência; e a atenção à narrativa do paciente, na qual aparecem elementos que podem suscitar uma interpretação. Nesse paradigma, a escuta analítica descentra o discurso do paciente para procurar um novo centro, que não está no conteúdo latente atrás do manifesto, mas em outro lugar.

O trabalho analítico caracteriza-se por examinar as modalidades de relação do paciente, que se repetem e são causadoras de sofrimento, e por seguir o curso da associação livre. O foco de atenção do analista pode concentrar-se na relação transferencial e contratransferencial ou nos percursos do inconsciente e do consciente, pois o analista deve colocar-se como um copensador.

Escutando e falando com o paciente, surgem as fantasias inconscientes, pensamentos, intuições que apontam a natureza da situação e da emoção correspondente. Sabemos que o paciente tem dificuldade de falar de si mesmo e de vivências, por isso é melhor “lavar os pratos em água fria no lugar de água quente, contrariamente ao que habitualmente se acredita”. (FABOZZI, 2006, p. 239)

Outro aspecto a ser considerado na escuta analítica é a capacidade de deixar fluir o desejo, o pensamento e as associações do próprio analista. Na situação de análise, a autenticidade passa por um contato afetivo e um conhecimento, já que, “antes de curar a ferida é necessário cuidar da faca”, da verdade desvelada que pode apresentar-se como expressão de autoridade ou superioridade moral.

A noção de campo analítico tenciona a relação que se estabelece no aqui e agora, pois essa apresenta desafios teóricos e clínicos, exigindo do analista um trabalho psíquico contínuo, uma auto-observação mais detida e sua inclusão mental na trama das emoções e pensamentos que o paciente traz.

O trabalho consiste na escuta de narrativas que encontram um aparato no setting e no analista, predisposto à transformação das mesmas. Se as coisas funcionam bem, as turbulências emocionais e sensoriais são transformadas em imagens oníricas, em pensamentos oníricos e, especialmente, inicia-se o processo que permite a introjeção no paciente do método para digerir e modificar suas narrações.

Spillius (2002) acredita que só pode haver mudança psíquica se a interpretação se dirigir para a experiência emocional do paciente no setting. Assim, ele obterá insight, caso contrário será construído um conhecimento teórico, mas o paciente não mostrará nenhuma transformação.

Para Fabozzi (2006), a transferência do paciente evolui independente da contratransferência do analista, está relacionada com a personalidade do analista e com a atmosfera que introduz na forma de trabalhar.

As funções da interpretação são múltiplas, como comunicar informações ao paciente para compreendê-lo e para que se sinta compreendido; transmitir indiretamente, por meio de hipóteses, as funções da identificação, contenção, tolerância, atribuir um significado ao que ocorre em cada sessão; captar e modificar as angústias, as fantasias inconscientes para assim favorecer a integração psíquica, a visão da realidade interna e externa.

Passado e presente precisam voltar a dialogar, assim como a realidade emocional e a simbólica. Cada história clínica reflete a vivência do analista, um modo de estar consigo mesmo para estar com o paciente. Na clínica, nascem a teoria e o analista, o reflects back, o que reflete a espinha dorsal na comunicação do paciente.

A transferência, ou a interpretação da transferência, é o caminho da mudança psíquica. A transferência do mundo interno para a situação analítica é o que McDougall (1991) denominou Teatros do Corpo, expressando tudo o que o paciente diz, mostra e age. O paciente não transfere sempre o mesmo, por isso não cabem conceitos como transferências paternas e maternas.

O analista deve examinar o que é transferido; muitas vezes o que se transfere são uma função mental ou um papel no sistema de defesas do paciente, mantendo a patologia inalterada. Além disso, o analista precisa acompanhar a posição psíquica do paciente, pois isso definirá o conteúdo da transferência e seu contexto intrapsíquico.

A linguagem do paciente e do analista representa mais do que uma forma de comunicação, é uma forma de agir um sobre o outro. A situação analítica e a regra fundamental – a livre associação e a atenção flutuante – produzem desfraldar da palavra.

Na associação livre, produz-se um descolamento da imagem, da fala, incluindo diversas imagens caleidoscópicas, cujas combinações possíveis se multiplicam em ritmo, cadência e intensidade. A excitação explícita no gaguejar de uma palavra ou um sentido duvidoso de uma frase mal construída, dá mostra de tonalidades diferentes às figuras que passam na escuta da atenção flutuante. O paciente, ao ser escutado pelo analista, também se escuta. A imagem retorna. Uma imagem que pode desconstruir o discurso e adquirir nitidez no momento da interpretação.

É na palavra que a pulsão insiste. Pode ser a palavra não falada, mas que é evocada na compulsão à repetição. Ao seguir as repetições, acompanhamos as vicissitudes da pulsão para rastrear as pegadas das identificações.

 

DE QUE LUGAR O ANALISTA ESCUTA?

Do inesperado, do surpreendente e da transferência. O inconsciente está no analista e no analisando como um depósito ou uma panela de pulsões. Na transferência, há um rompimento da objetivação, pois inclui uma montagem entre analisando e analista. Um lugar onde os dois estão incluídos no mesmo campo, sem simetria ou igualdade de funções. O analisando se dirige ao analista como sendo o único destinatário de sua palavra, numa tentativa de articular seu desejo a uma presença concreta.

O analista mantém a transferência sem confundir-se com ela, remetendo o sujeito aos fundamentos infantis do amor. Isso é possível com a renúncia narcísica do analista, pois não pode ocupar o lugar de amo do desejo, nem converter a análise em sugestão; nem se oferecer como ideal a ser imitado, acreditando numa neutralidade absoluta, desconhecendo os obstáculos da escuta.

Para Stein (1971), “As sessões do paciente têm mais possibilidades de converter-se na sua psicanálise, se são para o seu analista, o lugar privilegiado de continuação da sua análise” (p.364). Por isso, a análise pessoal do analista é fundamental.

Reconhecer a possibilidade de escuta representa renunciar ao desejo pessoal. A escuta do analisando traz à cena uma história. Mas qual história? Possivelmente não é a história factual, mas a história constituída em suas fantasias. Fantasias que surgem na análise do sintoma e do seu deciframento, já que a causa do sintoma nem sempre está no passado. A causa do sintoma pode estar no presente, na inscrição do presente, que na análise atua como transferência. A construção de fantasias é uma teoria que, tal como um mito, tende a responder aos enigmas que o sujeito se coloca. Por isso, tudo pode se complicar, pois o analista também tem suas fantasias, sua teoria, sua história, assim como a história e o presente do movimento psicanalítico, mas, também, pode oferecer possibilidades ao analista em relação à escuta ou pode limitá-la. Suas fantasias podem limitar a escuta, pois têm pontos cegos. As teorias que entram na sessão, para serem aplicadas ou confirmadas, obstaculizando as possibilidades do analisando de construir uma teoria pessoal, uma teoria sobre sua história.

A seguir, apresentamos uma digressão literária, ilustrando com um caso clínico.

 

O GUARDIÃO DE MEMÓRIAS

Este é o título do livro escrito por Kim Edwards, em 2007, que descreve uma passagem das vidas de alguns personagens. Na introdução ele situa o leitor com o enredo da história fictícia:

Casados há poucos anos, Norah e David esperavam felizes a chegada de seu primeiro filho. Mas a alegria duraria pouco. O que deveria ser uma boa notícia transforma-se num terrível pesadelo. Norah dá à luz duas crianças: Paul, um menino saudável, e Phoebes, portadora da síndrome de Down. David lembra-se da complicada infância ao lado de uma irmã com a mesma doença. Desejando ardentemente poupar a esposa e a si mesmo desse sofrimento, ele decide expulsar a filha de suas vidas. Mas o preço dessa decisão acaba sendo alto demais. Pouco a pouco a culpa corrói o núcleo da família, e durante os 25 anos seguintes cada um vai lentamente se fechando em torno de suas próprias angústias. Atormentado pelo arrependimento, David fica obcecado por fotografar imagens de crianças. Norah, cada vez mais afastada da vida do marido, entrega-se ao álcool e a pequenas infidelidades, buscando em vão distrair-se da avassaladora dor da perda. Enquanto isso, Paul sente na pele a rejeição dos pais, que parecem mais envolvidos na suposta morte da irmã do que na sua vida. Em outra cidade, porém Phoebes cresce feliz e cercada de cuidados pela mãe adotiva, que luta para dar à menina uma vida digna e livre de preconceitos.

O enredo dessa história é a rejeição, a solidão, a dor e o luto. Recebi esse livro de um paciente, como forma de pagamento das sessões (além desse, foram mais três), depois de recombinações do contrato de trabalho, porque ficou desempregado durante um mês e passou a vender livros de ficção. Ele deu as obras de que dispunha e percebo que essa foi endereçada a mim.

Assim transcorre uma análise! De Narciso a Édipo, da transferência a contratransferência.

Pablo, nome fictício, é solteiro, tem vinte e cinco anos, mora com o pai desde os três. É filho do segundo casamento da mãe, o filho caçula. Quando os pais moravam juntos, ele acompanhava o pai no trabalho. Não se lembra da mãe como uma pessoa sustentadora e confiável.

Depois de alguns anos, os pais se separaram. O pai desconfiava da fidelidade da mulher, tinham brigas e discussões. A mãe ficou com os dois filhos do primeiro casamento. Pablo foi embora com o pai, sem oposição materna. Independente da decisão do pai salienta que jamais ficaria com ela, uma mulher fria, desligada e distante. Apresenta-se como heterossexual, teve duas namoradas. Elas tinham problemas familiares, com carências que ele não conseguia tolerar. Ficou com Andréa três anos e terminou o namoro quando percebeu que não sentia saudades dela. Lembrava-se de encontrá-la nos fins de semana para um contato sexual.

Nas lembranças infantis, conta que ficava na casa de famílias para que o pai pudesse trabalhar e dos jogos sexuais com crianças, que traziam alívio e satisfação. Sua primeira paixão, com cinco anos, foi por uma menina da mesma idade. Dos cinco aos vinte anos até sentiu algo com a mesma intensidade, mas depois isso não mais aconteceu. Na adolescência, assistia a filmes pornográficos, masturbava-se até ficar esgotado e pensava em relações homossexuais. Achava-se feio, tímido e inseguro. Apanhava dos colegas da escola.

No início do tratamento, frequentava parques e banheiros públicos para encontros com homens desconhecidos. Seguia a vida acompanhado de Hades com a sensação de estar só, perdido, caminhando para o fundo do poço. Na mitologia grega, Hades é o deus do submundo e das riquezas dos mortos e governa os subterrâneos da Terra.

O desejo e a exposição pública eram esporádicos, provocados pelo vazio, pela constatação de não contar com ninguém, não ter garantias. Comenta que gosta de olhar mulheres na rua e quer uma mulher que possa compreendê-lo sem exigências.

Depois de dois anos de tratamento, não se expõe sexualmente, mas a masturbação é uma compulsão que aparece de tempos em tempos. Às vezes, quando vê uma mulher bonita, imagina histórias, conversas, encontros, que nunca acontecerão. Atualmente está ficando com uma colega, inclusive nos fins de semana.

Não se acha incapaz, mas lhe faltam palavras quando está perto de alguém que admira, principalmente se a pessoa é bonita, vivaz, inteligente.

O vínculo com o pai é escasso. Ele é muito brigão, autoritário, reclama de tudo, um ressentido. Desde os dezesseis anos não passam juntos as comemorações no final do ano, brigam constantemente. Ele é um homem queixoso e irritadiço, tem problemas na próstata e faz tratamento. Lembra que chorou uma vez quando o viu deitado na maca de um hospital, gritando de dor, sem atendimento médico, porque não tem plano de saúde. Quando adoecem, recorrem a postos de saúde ou ao Pronto Socorro Municipal.

O guardião de memórias, expressão que uso quando penso nesse paciente, tem alguns amigos na vizinhança, colegas de faculdade, com quem sai algumas vezes. Frequenta um grupo de jovens, trabalha num projeto de ensino não formal, acompanhando mães e crianças com vulnerabilidade social. Foi diagnosticado com déficit de atenção e depressão por um psiquiatra, toma medicações.

A mãe mora no interior. Pablo vai visitá-la uma vez por ano, em seu aniversário, por pressão dos amigos. Ela conta intimidades com seus namorados, o modo como os homens a querem e a chamam de gostosa. É diabética, mas adora fazer doces para os namorados. Doces que ele tem que experimentar.

A aparência de Pablo é frágil. Percebemos sua idealização e ironia quando diz que gostaria que seu quarto fosse como nossa sala de trabalho, arrumada e organizada, já que não consegue se livrar dos papéis, livros e roupas espalhados no chão. Às vezes, chama-me de Dom Quixote e denomina-se de Sancho Pança. Quem é Dom Quixote, Sancho Pança e onde fica a Dulcineia? Inveja e projeção numa aparente passividade e polidez.

Fixação, frustração, carência e privação. Como ressignificar sua história? Uma história com desconhecidos, com momentos de medo, de rompimento e perdas, de choros incontroláveis, pois não sabia se o pai voltaria para buscá-lo nas casas em que ficava quando ele saía para trabalhar.

Hornstein (2008) comenta que a história pessoal não é linear. Supõe limites entre a história recente e a história infantil. “Ela conhece turbulências, bifurcações, fases móveis, estágios. São um conjunto de devires confrontado com risco, incertezas que envolvem evoluções, progressões, regressões e rupturas.” (p.53).

A compulsão à repetição é uma simbolização de que se está no meio do caminho entre o repetido e a criação. Criação de um Eu, de um projeto futuro que não se dobre pela nostalgia do que foi perdido.

Para Ferro (2008), as homossexualidades são campos que precisam ser arados. Há uma forma de manifestação que serve para aplacar uma parte de si mesmo, temida e violenta, impossível de ser contida, que é sedada com a masturbação, ou com a sodomização, por isso é projetada no outro. Há um funcionamento masculino no mundo interno que necessita ser aplacado, cindido, como meio de lidar com as defesas primitivas e administrá-las.

Também há outra forma que remete a um aconchego defensivo, desde um autoerotismo, que nega a ausência e a alteridade, até modalidades muito excitadas, acompanhadas por um cortejo de angústia, culpa e recriminação, que funcionam como uma droga, um antidepressivo, uma forma de eliminar a angústia.

Outra classe se refere à homossexualidade do tipo feminino que comporta uma harmonia indiferenciada, funcionando como uma barreira em relação às emoções primitivas, protoemoções, temidas e violentas, que precisam ser amortecidas.

Em termos de funcionamento mental, Ferro (2008) salienta que pode haver uma homossexualidade masculina e uma homossexualidade feminina, tanto em homens como em mulheres. Nesse caso, é preciso administrar os hiperconteúdos mentais, em relação aos quais nunca houve suficiente continência.

O que falta para o guardador de memórias? Alguém que faça um papel perdido, que exerça uma função deteriorada. Alguém que sinta o que sente e transforme em linguagem o que precisa, em palavra o que não foi nomeado. Penso que esse é o lugar do analista, o lugar em que sou colocada como analista em fantasia.

Na situação transferencial, percebemos a parte primitiva e cindida, temida e difícil de ser contida, que depois é encenada fora da sessão.

Numa das sessões, apontamos para a situação de adoção, a partir do livro que nos ofereceu. A maneira como queria ser adotado por nós para suprir as demandas insatisfeitas na relação com seus pais. Ele silencia e depois comenta que nada escapa dos psicanalistas.

As relações parentais são frágeis, não consegue conviver com eles, os pais, nem exprimir sua raiva. Vive ruminando um bico molhado na pimenta e compulsivamente experimenta vivências catastróficas. Busca aconchego no próprio corpo ou no corpo do outro, atua para fugir da depressão.

A parte narcisista assume o controle da parte saudável da personalidade e promove vínculos perversos, como um escape da angústia depressiva. Os atos perversos ilustram o discurso de um sujeito dividido no apego com o outro; conectado com o objeto da pulsão, causa do desejo (objeto a), representante do significante mestre, a metáfora paterna.

Nesse caso, a análise parece constituir-se numa experiência de significação desvelando os sintomas trocadilhos, que estão na base do jogo de significantes. O inconsciente aponta os significantes, segundo as leis da linguagem, que deslizam sem cessar, que não se detém em significados.

O significante como causa de gozo nos mostra que a linguagem traça as vias do gozo, promove seus caminhos, suas ruas e avenidas, seus compartimentos e comportas favorecendo umas, dificultando outras e impossibilitando ainda outras (QUINET, 2003, p. 143).

Atualmente, sua atividade masturbatória diminuiu. Já não representa uma posição excitante e antidepressiva, uma espécie de caleidocóspio de possibilidades com um divisor comum, uma mania para afastar o medo, o colapso.

Aí reside o trabalho analítico: captar a função da homossexualidade no funcionamento mental do paciente para que pense nos enganos construídos para suprimir o impacto dos sofrimentos emocionais.

Assim como há muitas homossexualidades, há diversas manifestações das depressões. Em algumas, a perda do outro ritualiza o desamparo infantil. Um desamparo ameaçador, pois o outro não está à disposição do sujeito, mas permanece como uma ausência onipresente.

Na depressão, o amor por si mesmo é empobrecido, esvaziado de sentido e de metas futuras. A perda não elaborada mobiliza a agressividade contra o objeto e contra si mesmo. As marcas afetivas preservam a memória do outro no psiquismo, movimentam as pulsões, a representação e a palavra (HORNSTEIN, 2008).

A história desse rapaz configura-se em diferentes lugares com perdas e separações. Suas vivências de satisfação e de dor apontam uma forma de organização psíquica na qual a fantasia insiste, a palavra é um interdito como o gozo tecido numa linguagem na qual o desejo busca formas para se encarnar num corpo que precisa permanecer infantil. A falta de investimento parental, o amor não correspondido, reduziu seu amor próprio. O que predominou foi a ferida narcísica, a agressividade contra o objeto e contra si mesmo.

O guardião de memórias evidencia a dor da sobrevivência não assegurada. Clama pelo direito de existir, porque os outros não ofereceram um espaço e tempo regados na ilusão, criatividade e simbolização. Sua vida é árida com alterações de humor, atuação e impulsividade.

Por vezes, as escolhas amorosas representam uma repetição das ligações infantis, uma manutenção do superego severo e punitivo, não permitindo o investimento afetivo de cuidar de si mesmo sem atacar o presente e o futuro numa constante agressão e busca de punição.

O superego denota uma realidade complexa, distingue o bem e o mau, culpabiliza. O superego é um cortejo de autoacusações e o ideal do ego fica perdido, abalando o narcisismo. Para se defender da cólera do superego, recorre à transgressão, mostra o desejo extraviado, desorientado, a fraqueza e a perda de si mesmo.

Isso o leva à transgressão, ao desafio, à indiferenciação, pois a discriminação entre a fantasia e a realidade implica reconhecimento do sujeito como ator de sua ação.

Na capacidade de reconhecimento, de ver o que o outro não vê, o trabalho analítico precisa ser retomado, o inconsciente, como uma verdadeira essência, precisa ser reunido e separado, vivenciado nas narrativas que aludem a uma parte de si mesmo, uma parte que Pablo coloca em contato comigo.

Nessa perspectiva, sua fala é o dito e o mal-dito, racionalização e negação, um cenário do mundo interno. Desse modo, a interpretação pode assegurar percurso da simbolização num movimento constante para produzir pensamentos.

Na linguagem saturada de subentendidos e de tropeços nos atos e nas palavras, nas rupturas da ordem do recalcado, procuramos questões do presente para apontar seu estilo de vida e o futuro.

Acreditamos que, para interpretar o material do paciente, é necessário descobrir seu significado e, principalmente, o significado que tem para ele, pois assim poderá sentir-se sustentado afetiva e emocionalmente. A realidade psíquica não pode ser confundida com a realidade material. Tem a ver com o inconsciente, com a realidade interna subjetiva.

É na capacidade de identificação, de adaptação do analista às necessidades do paciente, que pode ser resumida a idéia de colocar-se no lugar do outro, de construir a confiabilidade no objeto. O resultado do tratamento analítico consiste em criar no interior da comunicação um espaço potencial, para que a análise tenha lugar.

As manifestações narcísicas podem ser consideradas a partir do modelo continente-conteúdo de Bion (GRINBERG, 1991). A definição do narcisismo é inseparável de uma definição do Eu, uma dificuldade específica de elaboração edipiana, que se contrapõe à modalidade de relação dual e fusional de ideias de um fora. Entendemos que o processo de crescimento e de sentimento de apropriação do mundo suscita as angústias e as imagens espaçotemporais-distorcidas.

Assim como a existência do eu requer o outro, pois ambos se constituem numa interação, num vínculo influenciado por um mundo interno e um mundo externo a imagem interna é apreendida nas identificações com os outros, na progressiva internalização dos relacionamentos objetais, traduzidos em diferentes linguagens, infligindo uma marca no narcisismo.

É preciso fazer-se amar pelos outros, agradá-los, para conquistar seu amor. Assim começa a incompletude, o desejo de recuperar a perfeição narcísica, o desejo insatisfeito, o desejo incestuoso (NASIO, 1999).

Green (1988) usa a expressão Narcisismo de vida, narcisismo de morte, título de uma das suas obras, para ilustrar o que denomina de processos de ligação e desligamento psíquico. O principal objetivo da pulsão de vida é a função objetalizante, criar uma relação com o objeto, mas também transformar estruturas em objetos, mesmo quando esses não estão mais em questão.

A pulsão de morte tem como objetivo exercer uma função desobjetalizante com o desligamento. O ataque aos vínculos não ocorre apenas contra a relação com o outro, mas contra o ego, contra a capacidade de buscar ligações.

O discurso do narcisista é recitativo e narrativo, como se a simples desconexão da linguagem tivesse o poder de destruir a imagem do self, perseguida pelo despedaçamento.

A frieza e a indiferença tornam-se escudos para proteger o self do narcisista e afastá-lo da angústia de intrusão.

Diria inclusive que o que caracteriza a estrutura narcisista é este ponto fraco na armadura ou no brasão. Ponto rapidamente percebido pelo objeto, que sofre por se ver mantido assim à distância, excluído da relação de proximidade, congelado pelo sujeito narcisista (GREEN, 1988, p. 178).

A imagem narcísica é uma das condições do aparecimento do desejo e do reconhecimento. Compõe-se de um conjunto de representações que circulam em torno de uma falta. Uma falta que permanentemente busca a satisfação, o prazer.

É na manifestação do narcisismo que emerge a identidade inscrita ou marcada pelo conhecimento construído com o outro, na clínica.

O narcisismo altera a capacidade de pensar sobre as experiências, pois está relacionado com um ideal de bem-estar e de autoestima.

Pensamos que Pablo está entre o vivido e a reconstrução. Entre o reencontro com o objeto fantasiado e o objeto real.

Para Hornstein (2008), no narcisista há um longo caminho até a aceitação de si mesmo e de um vínculo com o outro. Assim como um compromisso entre o que permanece e o que muda, a compulsão à repetição é uma simbolização que se repete. O inconsciente não é só o reprimido, também é o repressor ao desvelar as pulsões e seus derivados.

Ao aceitar uma pessoa como paciente não se faz apenas uma escolha. Na clínica a escuta põe em suspensão os interesses teóricos em prol da singularidade e do tratamento, em benefício da construção de pensamentos. Por isso, pensamos que permanecer ensimesmado, com um sistema defensivo enraizado em si mesmo, é o patrimônio das memórias herdadas desse jovem guardião, que tem muito para sentir e tecer internamente.

Analisar é uma árdua tarefa. Nesse caso, requer a elucidação da função teórica em relação à escuta e ao poder da agressividade no movimento associativo do paciente. O trabalho analítico nos confronta com a violência secundária quando não percebemos a capacidade de transformação do paciente, quando desconhecemos os enigmas que temos para elucidar: os retalhos de uma história lembrada.

 

Referências

EDWARDS, K. O guardião de memórias. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 2007.        [ Links ]

FABOZZI, P. Formas del interpretar: nuevas perspectivas en la teoria y en la clinica. Buenos Aires: Lúmen, 2006.        [ Links ]

FERRO, A. Técnica e criatividade. Rio de Janeiro: Imago, 2008.        [ Links ]

GREEN, A. Narcisismo de vida narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.        [ Links ]

GRINBERG, L. In: Sandler. El studio acerca del introducion al narcisism. Espanha: Julian Yebes, 1991.        [ Links ]

HORNSTEIN, L. Depressões. São Paulo: Via Lettera, 2008.        [ Links ]

MCDOUUGALL, J. Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1991.        [ Links ]

NASIO, J.- D. Como trabalha um psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.        [ Links ]

QUINET, Antonio. A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.        [ Links ]

SPILLIUS, E. Uma visão da evolução clínica kleiniana. Rio de Janeiro: Imago, 2002.        [ Links ]

STEIN, C.“L’enfant imaginaire”, Paris: Denoel, 1971.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Protásio Alves, 1981/309
90410–002 – Porto Alegre/RS
Fone: + 55 51 3331-2057
E-mail:mbjramos@terra.com.br

Recebido: 16/07/2009
Aprovado: 18/08/2009

 

 

1 Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUCRS. Professora da Faculdade de Educação da PUCRS.

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