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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório e os recursos no processo de simbolização

 

The adopted child and the psychoanalysis: the identificatory register and the sources in the symbolization process

 

 

Noeli Reck Maggi1

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Centro Universitário Ritter dos Reis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho aborda as marcas originárias, desde a constituição, do psiquismo humano em crianças que são adotadas e faz referência a casos clínicos em que as associações transferenciais revelam a possibilidade de retranscrição da história do paciente. O texto traz elementos sobre a formação psíquica e as manifestações sintomáticas que podem se manifestar a partir da perda do objeto originário materno. A análise teórica e a ilustração com os casos da clínica psicanalítica fundamentam-se especialmente na perspectiva de Piera Aulagnier, Françoise Dolto, Donald Winnicott e Silvia Bleichmar.

Palavras-chave: Adoção, Registro identificatório, Processo de simbolização.


ABSTRACT

The present paper approaches the early marks since the constitution of the human psyche in children who are adopted and makes reference to clinical cases in which the transferential associations disclose the possibility of a retranscription of the patient’s personal history. The paper elicits elements of the psyche formation and symptomatic manifestations that can be revealed upon the loss of the early maternal object. The theoretical analysis and the illustration through clinical cases are based on the psychoanalysis, especially in the perspective of Piera Aulagnier, Françoise Dolto, Donald Winnicott and Silvia Bleichmar.

Keywords: Adoption, Identificatory register, Symbolization process.


 

 

A adoção e a constituição da subjetividade

O tema da adoção e a análise de casos clínicos acompanhados de reflexão teórica constituem o presente estudo. As vivências traumáticas de crianças que são expostas a experiências de abandono e de desamparo desde o estabelecimento dos primeiros vínculos produzem um efeito que se traduz em reflexão e possibilidade de novas perspectivas de trabalho, tanto para gestores institucionais quanto para profissionais na área da saúde. A literatura referente a este tema remete às experiências dos vínculos iniciais entre a criança e os pais, sejam os adotivos, sejam os biológicos. A criança, por encontrar-se em momento de extrema fragilidade, expressa-se pela necessidade de sobrevivência; o adulto, por desejar a adoção, expressa-se pela ansiedade e expectativa de que seus objetivos sejam atendidos. Se, por um lado, a criança que vive o caos desintegrador do pós-nascimento experimenta a necessidade de um ambiente acolhedor, por outro lado, o adulto, ao iniciar com a criança a formação dos primeiros vínculos, pode estar confuso por reviver a sua experiência primitiva das relações de objeto.

Há que se ter entendimento sobre quanto a criança e o adulto encontram-se em situação caótica, embora se suponha que seja o adulto, como portador do objeto contensor, que possibilite à criança dar sentido ao que está experimentando. Esses estudos não preenchem as lacunas a respeito deste tema, embora procurem clarear cada vez mais nosso atendimento, seja como gestores de instituições dedicadas ao cuidado da infância, como pais, educadores ou psicanalistas. O trabalho aqui desenvolvido fundamenta-se na teoria psicanalítica, especialmente em autores que dedicaram estudo às primeiras inscrições psíquicas na constituição do sujeito humano: Aulagnier (1979), Winnicott (1975, 1993), Dolto (2006), Bleichmar (1994).

Silvia Bleichmar (1994) afirma que, no psiquismo de crianças adotadas ou que sofreram algum tipo de negligência, há uma interrupção no encadeamento entre o que o sujeito viveu num momento prévio da vida e o momento atual. A fratura é uma representação mal localizada, refere-se a algo que ficou nas margens do sujeito, significando um rompimento. O sujeito ficou aprisionado numa posição imaginária, sem condições de reordenar o desejo na ordem simbólica.

As primeiras inscrições maternas parecem definir as possibilidades do metabolismo das referidas marcas por parte da criança. O suporte do acolhimento materno tem de estar presente desde os primeiros tempos de instalação do processo arcaico e originário, mas também terá de ceder lugar ao pai (função paterna) para poder enfrentar as rupturas subsequentes. Ao separar-se do objeto originário, a criança necessita transcrever a sua história para não revelar através do ato alguns nexos que não permitem a interpretação da sua experiência.

A análise pode tecer o entramado do que não foi falado, mas reendereça a uma representação mal localizada. Quando se fala dos primeiros tempos da constituição psíquica, abre-se a possibilidade de pensar os movimentos e as falhas no ordenamento do desejo e no processo de subjetivação.

A atividade clínica pode facilitar a nomeação dos elementos que tecem a trama inicial da vida do sujeito, até então impedida de se tornar consciente. Os movimentos do paciente e do psicanalista se superpõem e podem transcrever, através das associações transferenciais, o que está à margem de ser instaurado como experiência psíquica própria.

Vera tem oito anos e vem ao consultório acompanhada de uma tia paterna. O motivo da consulta é, segundo os familiares, o excesso de retraimento e a falta de diálogo, especialmente com a mãe. A menina revela dificuldade de relacionamento com as irmãs e resistência para se identificar com as normas e rotinas estabelecidas pela família. Expressa-se de modo mais espontâneo na escola, quando está entre colegas de aula. Nas festas, prefere ficar próxima de pessoas com maior idade; sente-se, dessa forma, mais descontraída. Durante o trabalho clínico, vai aos poucos falando das suas dificuldades.

É filha adotiva e diz não saber quem são os seus pais biológicos. Expressa dúvidas sobre as razões da sua adoção e justifica esse sentimento porque nunca lhe foram confirmados os verdadeiros motivos por que os pais biológicos a abandonaram. Através do contato que estabelece com as pessoas, necessita confirmar que é amada, reconhecida e verbaliza seu desafeto frente aos maus tratos, molestamento ou exclusão que observa no seu contato social. Expressa, através do trabalho clínico, sofrimento e angústia quando fala da infância inicial. Vive em uma família que diz tê-la adotado como filha, embora os registros de identificação tragam o nome dos avós paternos. No atendimento clínico, Vera manuseia e observa atentamente os detalhes dos braços e pernas de uma boneca retirada dentre jogos e demais brinquedos. Tece comentário sobre as lesões no corpo da boneca e levanta como possibilidade a agressão física de um adulto. Nesse momento, Vera desfaz-se da boneca e lembra a fala de sua avó quando ainda pequena, em um tempo da sua infância durante o qual não gostava de se alimentar.

Vera parece viver em busca de uma filiação. Seu nome, os documentos legais, os espaços por ela ocupados não dão sentido à sua existência; necessita a cada dia reeditar a sua história. Compartilho dos seus momentos de dor durante a análise, especialmente ao sentir a paciente buscar sentido no que faz, falar de seus desejos e vivenciar o caos interno para reconhecer-se como pessoa diferenciada. Por vezes elege uma pessoa a quem idealiza e com a qual se identifica maciçamente como uma forma de recuperar a sua subjetividade. A tia e madrinha que a acompanha desde os primeiros tempos da adoção e que ainda faz o papel de mãe totalmente boa é a pessoa a quem Vera dedica seus afetos mais genuínos.

Medo, ódio e idealização são revividos com frequência pela paciente, que parece não conter a angústia de fragmentação experimentada quando bebê. Na mesma intensidade em que manifesta seu apreço e apego ao trabalho desenvolvido nas sessões clínicas, expressa rechaço diante das intervenções, conferindo, de modo persistente, a presença de um adulto que possa suportar e conter a sua ansiedade. O abandono aos três meses de idade, a fragilidade nas relações objetais dos primeiros tempos de vida, a ausência da palavra que dá nome à sua pessoa através da função materna e paterna necessitam de uma reconstituição. Aos poucos Vera se autoriza a falar e reconstituir imagens dos objetos internos a partir das pessoas, espaços e objetos de suas relações. Sua persistência e assiduidade às sessões clínicas, as manifestações espontâneas enquanto joga, e as associações com situações do cotidiano parecem permitir à criança abandonada a reescritura da sua história.

Para falar do psiquismo em crianças adotadas, Bleichmar (1994) busca na atividade clínica as marcas identificatórias da mãe sobre o filho. Segundo a autora, o elemento que aparece através do ato não foi transcrito. Seu estatuto não é interpretável, apenas possível de ser ligado, e isto coloca o analista na posição de estabelecer nexos, nos quais a ponte deve ser construída, já que as vias estão rompidas. Nesses casos, produziu-se uma fratura na simbolização. O narcisismo derivado da função materna exerce função na constituição do psiquismo, nos modos de inscrição e de ligação do que a autora denomina o entramado de base, de modo a impedir que a identificação caia no vazio. A passagem do autoerotismo ao narcisismo é propiciada nos cuidados precoces da mãe, nas ligações que ela proporciona a partir da diferenciação instaurada pela própria sexualidade.

No relato de um caso clínico, Bleichmar (1994) apresenta as condições em que João, um menino com sete anos e que foi adotado aos quatro meses, desenvolve um jogo no qual se organizam e se desarticulam situações de conflito no decorrer de sua infância. O menino separa animais hostis dos que não o são, através de cercas de plástico que caem a cada momento. Ao perceber a inércia do fazendeiro, que no jogo também está caído, o menino reconcilia-se e sorri com a intervenção da terapeuta de que esse homem inerte do jogo poderia ser útil. Na sequência, o paciente, que parece estar em estado de devaneio, se aninha ao lado da terapeuta e, com a mão, contorna o sofá onde está sentada e a saia que veste. As questões levantadas pela autora sugerem a necessidade de que a criança transcreva na sua história as marcas dos primeiros meses de vida em que, separada do objeto originário, foi atendida por enfermeiras na sala onde permaneceu até que se concretizou a adoção.

Os signos de percepção decorrentes das primeiras experiências com o objeto constituem o aparelho psíquico. Em crianças com experiência de adoção, quando o objeto originário se perdeu, a recaptura das inscrições primordiais, como cheiro, voz e acolhimento podem potencializar os seus recursos para o processo de simbolização. As formas de relação do sujeito com o Outro e a contenção da angústia e da dor são observadas na sua experiência vivencial, reafirmando a concepção inicial de que algumas marcas poderão ou não ser transcritas.

Piera Aulagnier (1979) refere-se ao movimento da cura na criança adotada e que foi afastada dos pais quando ela transforma os fragmentos mnêmicos dos primeiros tempos de vida em uma construção histórica. Através do pictograma e das identificações primárias, um tempo não falado pode ser recapturado pelo simbólico. A ruptura existe quando os elementos se perderam, quando não houve inscrição, ou, ainda, quando houve uma interrupção no processo de identificação da criança com um terceiro na relação mãe-filho.

Piera Aulagnier reconhece a antecipação da palavra da mãe para que a criança possa situar-se num registro de existência de um corpo e, portanto, de uma subjetividade. Para ela os enunciados que vêm do exterior e de que a criança se apropria inicialmente através da repetição, constituem o Eu do sujeito. O Eu investido passa a apropriar-se do que lhe foi designado, transformando-o em projeto pessoal. Nesse momento, cujo tempo não é o cronológico, mas um tempo de separação e diferenciação, o Eu transforma os elementos da construção pictográfica em atividade de prazer e de pensar. O risco para a constituição psíquica é que o destino do investimento libidinal tenha como único objetivo o prazer, ao invés de ser transformado em atividade de pensar.

O que Aulagnier propõe em seu estudo sobre constituição psíquica do sujeito é ver como se dão as atividades de representação. A autora entende por representação o equivalente psíquico do trabalho de metabolização própria do organismo. Na atividade psíquica, o corpo recebe as informações e as metaboliza. Existem três processos que se sucedem temporalmente na atividade psíquica, sendo que a emergência de cada um resulta da necessidade que se impõe à psique de tomar conhecimento de propriedades do objeto. São eles os processos originário, primário e secundário e se expressam em função de atividades que lhes são próprias. Esses registros se constituem em período muito precoce do desenvolvimento da criança – nos primórdios da relação com a mãe – e a sucessão desses registros no tempo não é mensurável.

Na instância do processo originário prevalece o autoengendramento, em que não se evidenciam os segmentos da relação e em que ainda não estão situados os sujeitos implicados nela. Porque prevalece a unidade Eu-Outro, só pode haver registro no processo de memória do bebê quando o corpo materno inscreve suas marcas sobre o filho. A indiferenciação é prioritária nessa cena em que a mãe abastece o filho de interpretações a respeito do que emerge para ela na situação, e é esse tempo histórico-vivencial do psiquismo que a criança adotada necessita recapturar.

No desenvolvimento inicial, a mãe, olhando para o filho, empresta a sua voz, o seu sorriso, todos os sentimentos e expectativas que possam conferir algum significado para a criança. Não é dessa criança que ela fala, mas de si mesma, num desejo de atribuir uma certa continuidade de existência. O que marca no corpo do bebê é denominado pictograma. O toque, o olhar, o encontro com a voz da mãe são representações pictográficas. Fome, dor, desejo de proteção são anunciados na fala mãe-bebê. Não é somente a mãe que fala, mas também um bebê que ela traz dentro de si. As interpretações feitas por essa mãe trazem as representações que foram inscritas na sua história pessoal. A mãe atribui um nome a partir de sua história, do seu discurso, que é subjetivado, das marcas historicamente constituídas.

O registro do originário se dá através de um corpo falado a partir das funções sensoriais – um canal por onde escoam as experiências de revitalização para a sobrevivência, tanto de um corpo somático quanto psíquico. Esses registros constituem o pictograma. O analista pode intervir nas associações do paciente para atribuir sentido à experiência vivida, de modo a tornar cognoscíveis para o Eu os elementos do pictograma inacessíveis ao conhecimento.

A partir daí, surge o chamado processo primário, que é regido pela onipotência do desejo do outro. O discurso da mãe é prevalente sobre a imagem que a criança terá de si mesma. Nesse processo de identificação primária, aos poucos a criança vai se apropriando do discurso materno e vai, ao mesmo tempo, se alienando nele. A mãe interpreta e deseja o bebê com alguns códigos e qualificativos, e o bebê se reconhece nos mesmos, passando a aspirá-los como se fossem originalmente seus. É sobre esse processo de identificação primária que Aulagnier (1979) anuncia a formação do Eu e a necessidade da presença do terceiro, como uma referência demarcando a incompletude do discurso manifestado pela mãe. A autora explica que a criança ocupa uma função simbólica a partir do discurso que lhe é dirigido, e um lugar nas relações de parentesco. Os termos pai, filho, mãe, antepassados designam uma função que é independente do sujeito que a encarna durante a sua existência. Nesse sentido, prevalece a mobilidade dos ocupantes no registro identificatório, em oposição à fixidez da função relacionada ao símbolo. Assim, na adoção, o sujeito busca um lugar no registro identificatório entre os atores que passam a fazer parte de sua vida. Vera idealiza a madrinha como a mãe completa e boa e elege a mãe adotiva como objeto persecutório. Nas sessões de análise, a relação de transferência que dissocia a mãe-analista como boa ou má, aos poucos dá lugar à percepção de um mesmo objeto, capaz de ser amado e odiado.

Aulagnier também faz uma destacada referência à angústia de castração como um tributo que todo sujeito tem de pagar como uma condição para ser sujeito de seu discurso. Mesmo com sete anos, o menino adotado busca na terapeuta resposta para a negligência sofrida em função de os pais biológicos o terem abandonado. João reedita a sua história para encontrar sentido nas lacunas e fraturas no curso do desenvolvimento e que provocam fracasso na simbolização.

Dolto, ao se referir à adoção, diz que o ser humano não é redutível a seus vínculos biológicos. Para a autora, é na cultura e na linguagem que as relações se tornam estruturantes. O encontro entre a mãe e um casal que procura adotar uma criança teria como resultado uma mãe tranquilizada pela doação de seu bebê a um casal feliz, e uma criança saudável. O ato simbólico de fala e registro da doação “eu te confio a este senhor e a esta senhora, que serão teu pai e tua mãe”, segundo Dolto (2006, p.87), torna-se um registro compartilhado entre mãe biológica, pais adotivos e a criança.

Nesse sentido, a adoção deveria ser feita o mais cedo possível, com o cuidado de que essa decisão não se transforme em posse dos pais sobre o filho.

É isso que torna uma criança psicótica: ser o centro do amor dos pais adotivos, ser o substituto do filho, e não o filho deles. Para encaixar no molde do filho imaginário dos pais, ele é obrigado a se identificar com eles, o que um filho genético não precisa fazer, já que é a continuação deles. O filho adotivo é a continuação deles imaginariamente, antes de o ser simbolicamente. Aliás, ele pode se tornar simbolicamente sua continuação, o que nunca poderá acontecer se for reduzido ao estado de fetiche dos pais, em vez de ser seu descendente (DOLTO, 2006, p.93).

Essas considerações nos fazem pensar que a adoção pode favorecer um suporte familiar de referência para que a criança possa se identificar, constituir a sua subjetividade e ter acesso a uma rede social. As inscrições que uma criança adotada traz no seu psiquismo podem favorecer os recursos para um processo de simbolização operante, desde que a separação do objeto originário materno seja nomeado e ressignificado no sentido dinâmico das fantasias, de modo a libertá-la da angústia em relação ao que viveu.

As possibilidades de ruptura, trauma e quebra de fé no desenvolvimento inicial da criança podem ser originadas pelo rompimento no processo desadaptativo da mãe em relação ao bebê, no dizer de Winnicott (1993). Na linguagem psicanalítica, o ser humano se desenvolve a partir de uma realidade psíquica externa, em que é possível descrever os objetos, lugares e pessoas com as quais se compartilha a experiência. Há também, nessa experiência psíquica, a realidade interna, onde o sujeito se percebe e sente, tanto a riqueza quanto a pobreza pessoal, herança própria da organização da personalidade. Entre a experiência cotidiana diretamente observada através dos condicionantes sociais e a realidade interna subjetiva, movida pelo inconsciente, há uma terceira área a que Winnicott (1975) designou de espaço potencial.

Nas crianças em situação de adoção, o exercício do que Winnicott (1993) denomina de mãe suficientemente boa exige do cuidador atenção permanente às possibilidades de enfrentar frustrações e perdas, uma vez que o sujeito sofreu ruptura do vínculo básico com o gestor. Essas crianças podem apresentar dificuldades iniciais para conceber a incompletude da condição humana a partir da renúncia da idealização ou do próprio processo de ilusão.

Nestes casos, no momento em que a função paterna começa a se instalar, há uma ruptura no vínculo, uma vez que o fracasso ambiental se situa além dos limites da capacidade do sujeito para lidar com a frustração. Para Winnicott (1975), as perdas precoces na infância, como a morte ou o afastamento prolongado dos pais, podem significar o risco de perder a espontaneidade e a capacidade de brincar. Para o psicanalista e precursor dos estudos sobre a origem da criatividade e da capacidade de brincar, a criança privada é notoriamente inquieta e apresenta um empobrecimento da capacidade de experiência no campo cultural.

Os efeitos da perda em qualquer estádio primitivo remetem a um exame do espaço potencial, área que, segundo Winnicott (1975), se situa entre sujeito e objeto. O fracasso da fidedignidade ou perda do objeto podem significar, para a criança, perda da área da brincadeira e perda de um símbolo significativo. Ao analisar os efeitos da depressão dos pais sobre o estado emocional das crianças que se encontram em fase inicial do desenvolvimento, o autor expressa sua preocupação sobre os prováveis riscos de uma perturbação profunda no psiquismo infantil. No início, o filho necessita de uma adaptação materna quase completa às suas necessidades, para que mais tarde possa suportar o fracasso provocado pela mãe na continuidade dos cuidados.

Os aportes teóricos e clínicos de Piera Aulagnier (1979) alertam sobre as possibilidades de restituir e reconstituir a história do sujeito que vive a busca de sentido para a sua existência. Embora o tema da adoção seja o objeto central dessa reflexão, não podemos supor que, se os bebês forem bem cuidados, especialmente pelos pais biológicos, os problemas sejam minimizados. Na constituição do psiquismo, enquanto crianças recebem o acolhimento que lhes é oferecido e expressam os recursos da simbolização através da criatividade espontânea, outras podem revelar mecanismos de resistência à independência pessoal, fazendo os pais sentir-se responsáveis por tais manifestações.

 

Referências

AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Trad. M. C. Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago, 1979.        [ Links ]

BLEICHMAR, S. A fundação do inconsciente: desejos de pulsão, desejos do sujeito. Trad. K. B. Behr. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.        [ Links ]

DOLTO, F. Destinos de Crianças: adoção, famílias de acolhimento, trabalho social. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.        [ Links ]

WINNICOTT, D. A família e o desenvolvimento individual. Trad. M. B. Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 1993.        [ Links ]

WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade. Trad. J. O. A. Abreu e V. Nobre. Rio de Janeiro : Imago, 1975.        [ Links ]

 

 

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Recebido: 17/08/2009
Aprovado: 08/09/2009

 

 

1 Psicóloga. Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter.

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