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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  n.32 Belo Horizonte nov. 2009

 

 

Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente

 

Psychoanalysis and Dentistry in the unconscious rebellion

 

 

Ricardo Azevedo BarretoI,II,III1; Marlene GuiradoIV2

ICírculo Psicanalítico de Sergipe
IICírculo Brasileiro de Psicanálise
IIIUniversidade Tiradentes
IVUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho faz um balizamento de considerações acerca da noção psicanalítica de inconsciente, ressignificando-a sob o crivo de uma análise de discurso assentada no pensamento de Marlene Guirado. Tal percurso possibilita, em um duplo movimento, acompanhar a rebeldia inconsciente e de seu conceito, ilustrando-a por meio de cenas na Odontologia.

Palavras-chave: Psicanálise, Análise de discurso, Odontologia.


ABSTRACT

This paper considers about the unconsciousness psychoanalytic notion to renew it under the screen of a discourse analysis seated by Marlene Guirado’s thought. In a double movement this way allows to follow the unconscious and its concept rebellion through Dentistry scenes.

Keywords: Psychoanalysis, Discourse analysis, Dentistry.


 

 

Quer dizer que eu me contradigo?
Pois bem, então me contradigo [...]

Walt Whitman

 

Introdução

Sucção do polegar, bruxismo, fobia ou trauma do atendimento odontológico, vivências emocionais dos pacientes com lábio leporino e de seus familiares, relação entre dentista e paciente são apenas algumas das situações que contornam a importância da Psicanálise para a Odontologia.

À guisa de ilustração das intensas experiências emocionais no contexto de atenção odontológica, mencionemos a cena de uma criança que pediu à mãe uma sopa de pizza, deixando escapar seu desejo por iguarias italianas, após fazer uma cirurgia de palato, já que só podia se alimentar restritivamente com líquidos ou comida pastosa.

Neste texto, de modo delimitado, vamos trilhar algumas considerações sobre uma noção de inconsciente depreendida da perspectiva psicanalítica já no termo da Análise Institucional do Discurso proposta por Guirado ([1995] 2006, 2000, 2007), exemplificada por nós em cenas contempladas da Odontologia.

 

O inconsciente

É inquestionável a centralidade da noção de inconsciente no âmbito da(s) teorias(s) da Psicanálise e na constituição do(s) método(s) de trabalho dos psicanalistas.

O inconsciente, cujos efeitos são reconhecidos no ofício psicanalítico em esquecimentos, lapsos ao falar, equívocos no agir, sonhos, chistes, sintomas, entre outros exemplos, é vetor que atravessa toda a obra freudiana e conceito polissêmico, com várias nuanças, nos desdobramentos da instituição criada por Freud: a Psicanálise.

Zimerman (1999) comenta a respeito do inconsciente como o que há de mais arcaico no aparelho psíquico, relacionando-o, por meio da genética, às pulsões com suas energias e protofantasias (fantasias primitivas). Também o associa às representações de coisa e ao processo primário.

Diz nosso interlocutor (1999, p.83):

[...] uma função que opera no sistema Inconsciente e que representa uma importante repercussão na prática clínica é que ela contém as “representações de coisa”, as quais consistem em uma sucessão de inscrições de primitivas experiências e sensações provindas de todos os órgãos dos sentidos, como o da visão, audição, tato, etc., e que ficaram impressas na mente da criança numa época em que ainda não havia palavras para nomeá-las. Funcionalmente, o Inconsciente opera segundo as leis do “processo primário” [...].

Kusnetzoff (1982) fala da meta-psicologia freudiana fundamentada nos modelos tópico, dinâmico e econômico. No primeiro tópico, o aparelho psíquico é concebido por inconsciente, pré-consciente e consciente; no segundo, por id, ego e superego.

O novo Tópico inaugura uma nova linguagem prática. No Primeiro Tópico, a linguagem é predominantemente fisicalista: catéxias, representações, forças, recalques, etc. No Segundo Tópico, o modelo é antropomórfico, e parece então que as instâncias “falam”. O Superego, por exemplo, será “sádico”, uma parte do Ego “luta” contra outra parte, e assim por diante. Desta forma, existe uma aproximação analógica entre a teoria do aparelho psíquico e a vida fantasmática que “habita” dentro do sujeito (KUSNETZOFF, 1982, p. 127-129).

Poderíamos reconhecer, na segunda tópica freudiana, três personagens na cena intrapsíquica do sujeito: de modo bastante simplificado, o id como polo do desejo, o superego como juiz interno gerador de culpas e o ego no agenciamento das defesas; o inconsciente está presente nas três instâncias em maior ou menor grau, distintamente da primeira tópica em que ele era visto como exclusividade de um sistema. Além disso, problematizaríamos a dinâmica dessa cenografia intrapessoal tripartite, levando em conta o peso que Freud confere ao recalque e ao modelo da neurose nas teorizações que tecem relações entre inconsciente e recalcado. Remontagens da cena, por exemplo, de “um inconsciente a céu aberto”, como costumeiramente falamos de pacientes com estrutura psicótica, ou, até, peculiaridades em casos de estrutura perversa em que há dimensões particulares no desenvolvimento moral. Os fenômenos psicossomáticos nos exigiriam outras considerações.

De acordo com Laplanche e Pontalis (1994), o inconsciente, como adjetivo, é referido por vezes como conjunto de conteúdos não existentes no campo da consciência. Na primeira tópica do aparelho psíquico, é um dos sistemas, cujos conteúdos são delineados como representantes pulsionais, regidos por meio de mecanismos como o deslocamento e a condensação. Eles buscariam retorno ao campo da consciência e ação, todavia seu acesso ao pré-consciente/consciente ocorreria por meio de formações de compromisso e distorções da censura. Nossos interlocutores chamam atenção ainda para a implicação entre inconsciente e desejos infantis. Dizem também que, na segunda tópica, o inconsciente é posicionado qualificando o id, mas também, parcialmente, o ego e o superego. Comentam que muitas características atribuídas ao inconsciente na primeira perspectiva se manteriam no id na segunda tópica freudiana.

No panorama do avanço das duas tópicas de Freud, enfatizamos giros epistemológicos na estratégia de pensamento. Ressaltamos, por outro lado, embora não entremos muito nesses meandros, que existem particularidades entre os diversos autores da Psicanálise quanto à noção de inconsciente. Podemos falar, por exemplo, de Melanie Klein e da importância que configura às ansiedades nas posições esquizoparanoide e depressiva. Com Lacan e a escola francesa de Psicanálise, falaríamos, entre outros aspectos, de “um inconsciente estruturado como linguagem” e da cadeia de significantes.

 

O inconsciente nas interfaces da psicanálise com a análise do discurso

Guirado (2000), aproximando a Psicanálise da Análise do Discurso francesa de Dominique Maingueneau, faz articulações entre inconsciente e a noção de polifonia: várias vozes constitutivas do discurso, o que multiplica os sentidos em um mesmo dito. Propõe, então, uma escuta psicanalítica dos indicadores de polifonia, de divisão que se opera no discurso:

Pensar a polifonia como condição de divisão no discurso e como abertura à possibilidade de escutar o modo de organização da fala, na clínica psicanalítica, é poder prescindir de uma imagem tão poderosa como a dessa divisão de três em um, já quase um mito religioso (GUIRADO, 2000, p. 66).

Sobre a polifonia, Guirado ([1995] 2006, p. 50) salienta:

[...] Muito embora não seja o único a tratar do assunto, é Ducrot quem mais sistematicamente o faz, sendo difícil não ser referido por todos os analistas do discurso quando afirmam que se torna necessário ir além do sujeito e do conteúdo do enunciado [...] usa, ele, a imagem de “vozes” (tomada de empréstimo a Bakhtine) para configurar este argumento que implode a tendência de unidade e homogeneidade nas falas.

A autora (2000, p. 75) ainda delineia algumas dimensões do trabalho analítico:

Ironias, equívocos, denegações, pressupostos, discursos relatados, meta-discursos, polifonias, enfim um festival de tonalidades discursivas à escuta clínica, uma orquestração de estranhamentos sucessivos. Boas condições de análise, no horizonte.

Desse modo, reconhece Guirado (2000, p. 69): “resgata a significação no contexto, no dizer, no mostrar e não no dito, num inconsciente pessoal [...]”

Essa visão de Psicanálise na perspectiva de Guirado (2000) se contrapõe a uma substancialização do inconsciente ao construir outros modos de operar com a clínica psicanalítica ou com a Psicanálise em outros contextos, pensando, entre diversos aspectos, com base em suas fontes teóricas, em indicadores de heterogeneidade no discurso. Como desenhou a autora, uma clínica psicanalítica na sombra do discurso.

Em tal posicionamento, não nos referimos a personagens ou vozes dentro do sujeito numa tripartição, pois a subjetividade é pensada em sua constituição-efeito no discurso, visto como polifônico e não tripartite na perspectiva guiradiana. Em vez da obrigatoriedade de aproximações de noções como as de pulsão e recalque, entre outras clássicas à obra freudiana, aportes epistemológicos externos ao campo psi mobilizam o lugar psicanalítico com matrizes conceituais da Análise do Discurso francesa de Maingueneau, como, por exemplo, a de gênero discursivo, em seus diferentes níveis de abrangência. Localizemos: rebeldia na e da Psicanálise reconhecida com força instituinte. Não foi essa uma das grandes lições de Freud ao revisar tantas e tantas vezes seus conceitos?!

 

Exemplificando com cenas odontológicas

Barreto (1999), em seu trabalho na área da Odontologia, comenta a interlocução de uma dentista com uma paciente de nove anos: “se tiver vontade de vomitar, levanta a mão! [...] agora, por favor, solta a mão, a perna. Fica calma. Coitado do algodão! Quem vê, pensa que a tia[...] tá judiando de você[...]” (p. 43) (primeiro exemplo). Em um momento seguinte, a mesma dentista, com um paciente de três anos, diz: “oi, tudo bem? Como está bonito[...] Mas não estou chorando?![...]” (p. 45) (segundo exemplo). Outra odontóloga fala para uma criança também de três anos: “vamos abrir a boca que a gente precisa limpar o dente” (p.46) (terceiro exemplo).

Tais situações supramencionadas e similares são nomeadas por Barreto, em sua dissertação de mestrado e na síntese desta (1999 e 2003), como uma indiferenciação, uma espécie de troca ou sobreposição de lugares no discurso de profissionais.

Sobre o primeiro exemplo, não é o algodão que é coitado, com certeza! Por uma determinada concepção de inconsciente, poder-se-ia perguntar: quem o será? O coitado do algodão é algum tipo de efeito inconsciente da dinâmica pressão/repressão? É o retorno do recalcado, evidenciando as posições do id, ego, superego e as vicissitudes da pulsão?

Mas pensemos na cena, não para além dela. O lugar da paciente é associado à possibilidade do adverso, vontade de vomitar, ao que o acordo é poder levantar a mão. Por outro lado, a dentista, no antagonismo da relação, solicita que a criança solte a mão, e não apenas, mas a perna, por favor (ou por fervor?). O pedido é que fique calma ou coopere. No tensionamento dos lugares, da paciente e da dentista, o vocábulo coitado é abruptamente associado ao algodão, que parece pular para fora da boca nos movimentos da paciente, obstaculizando o trabalho da profissional. Ao outro, a tia, dentista, pode ser vista, ou não vista, judiando da criança.

A cena da rebeldia inconsciente na Odontologia está desenhada. São múltiplas as possibilidades de significação do termo (deslocado?) algodão. Nas posições discursivas da cena, são encontradas pistas ao sofrimento da dentista e também da paciente durante o atendimento odontológico.

No segundo exemplo, as imagens deslizam do “[...] tudo bem? Como está bonito[...]”, endereçadas ao paciente, para uma posição discursiva à dentista que causa estranhamento. “[...] Não estou chorando?![...]” deixa ambíguo, na identificação, quem chora. No terceiro exemplo: “vamos abrir a boca[...]” e “[...] a gente precisa limpar o dente” mostram que o sujeito singular se perde.

De quais lugares de enunciação emergem tais falas? Quanto tais acontecimentos discursivos dizem da cena odontológica?

Destaquemos, aliás, que temos reconhecido tal mecanismo de indiferenciação nas relações humanas com bebês, crianças, idosos e pessoas em adoecimento de modo geral. Muitas vezes, seus cuidadores falam por eles ou até assumem dois lugares no discurso: de si próprios e do outro.

Na abordagem psicanalítica localizada, pensar em tais cenas como indicadores de divisão no dizer, polifonia, é não marcá-las, necessariamente, ou inicialmente, como reedição de imagos infantis ou provas incontestáveis de uma mente tripartite. Nas múltiplas (e não indubitavelmente triádicas) facetas no e do dizer, é que emergem, nessa perspectiva teórico-metodológica, os efeitos de subjetivação/singularidade.

Aos psicanalistas, há, portanto, um desafio enorme no terreno da Psicanálise/Odontologia por existirem situações notáveis em que a expressividade do humano se apresenta não apenas no corpo anátomo-fisiológico, mas, sobretudo, na rebeldia inconsciente ou de seu(s) conceito(s).

 

Referências

BARRETO, R.A. A afetividade na Odontologia para bebês: lugares e nuances. 1999. 122 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999.        [ Links ]

BARRETO, R. A. Sobre a afetividade na Odontologia para bebês. Psicologia: ciência e profissão. Brasília, v. 23, n. 1, p. 30-37, 2003.        [ Links ]

GUIRADO, M. A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.        [ Links ]

GUIRADO, M. Psicanálise e análise do discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico. Edição revista e ampliada. São Paulo: EPU, 2006.        [ Links ]

GUIRADO, M.; LERNER, R. Psicologia, pesquisa e clínica. Por uma análise institucional do discurso. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007.        [ Links ]

KUSNETZOFF, J. C. Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.        [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1994.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 – São José
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
49010–410 – Aracaju/SE
Fone: + 55 79 3214-6906
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido: 08/09/2009
Aprovado: 29/09/2009

 

 

1 Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela USP. Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe e do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da divisão de Psicologia da FMUSP e professor da Universidade Tiradentes. Editor da Revista.
2 Psicóloga, psicanalista, analista institucional e professora doutora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autora de livros que articulam Psicanálise e Análise do Discurso. Criadora do método da análise institucional do discurso. Orientadora do autor supracitado em seu doutorado.

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